Vocês já pararam para pensar como as grandes sagas em quadrinhos surgiram? Hoje, o conceito de sagas ou grandes eventos reunindo uma enorme quantidade de personagens que normalmente não se encontram é, basicamente, lugar comum, algo básico e natural do próprio tecido da Nona Arte, especialmente a super-heroística (há vários e vários outros não necessariamente do mundo mainstream de super-heróis). Mas, se formos a fundo na História dos Quadrinhos, encontraremos, claro, uma primeira vez, o começo de tudo.
Afinal, o que é uma saga, no conceito atual, do que uma versão parruda de eventos dos quadrinhos, como a reunião de um grupo de heróis, sejam eles formando a Sociedade da Justiça da América (de dezembro de 1940, considerado o segundo crossover dos quadrinhos) ou Os Vingadores (formados bem mais tarde, em 1963). E o que são esses eventos que não grandes crossovers, ou seja, quando um ou mais personagens de uma publicação “cruzam” para a publicação de outro personagem ou personagens? Quando Batman luta ao lado (ou contra) Superman, estamos diante de um crossover. Quando Groo cruza espadas com Conan, como aconteceu recentemente graças à Dark Horse Comics, estamos diante de outro crossover, por mais inusitado que seja (aliás, falando sobre inusitado, como não lembrar do crossover entre Archie e o Justiceiro, de 1994?). O mesmo vale para outras mídias como televisão (Flash e Arqueiro Verde, Law & Order), obras literárias (A Torre Negra, obras de Isaac Asimov, de Edgar Rice Burroughs), games (Mario e Sonic nos Jogos Olímpicos, Super Smash Bros.) e cinema (o Universo Cinematográfico Marvel é puro crossover, mas há muitos outros exemplos como King Kong vs. Godzilla, Freddy vs. Jason e Alien vs. Predador).
Assim, detectar o primeiro crossover em quadrinhos é achar o elo perdido, o Santo Graal dos quadrinhos que, para o mal ou para o bem, abriu as portas para a enxurrada de sagas a que hoje as editoras – mesmo as independentes – sujeitam seus leitores. Mas, no meu livro, as possibilidades que essa ideia (hoje banal) criou permitiram a verdadeira evolução dos quadrinhos de super-heróis, pois trouxeram o conceito de “universo compartilhado”, literalmente a pedra fundamental da Nona Arte mainstream. Sem ele, não teríamos acontecimentos de uma publicação afetando outra, não teríamos multiversos, não teríamos as sagas hoje tão queridas e tão odiadas.
Com isso em mente, não tive dúvidas em trazer para a coluna Sagas Marvel aquele que é considerado o primeiro crossover em quadrinhos, pai de todos os eventos posteriores e de todas as sagas, seja de que editora estivermos falando: o encontro entre Namor e o Tocha Humana! Isso se deu exatamente na revista Marvel Mystery Comics #8, de junho de 1940, ou seja, há quase 75 anos, quando os quadrinhos ainda estava em sua infância, e durou três números, até a Marvel Mystery Comics #10.
O primeiro aspecto que o leitor menos experiente deve atentar é para o fato de que o Tocha Humana desse crossover não é o Tocha Humana do Quarteto Fantástico. Afinal, estamos falando de uma publicação de 1940, uma época em que a Marvel Comics ainda não existia, na Era de Ouro dos quadrinhos. A publicação era originalmente da Timely Comics, uma divisão da Timely Publications, antecessora do que hoje conhecemos como Marvel Comics. Além disso, o Quarteto Fantástico somente foi criado 21 anos depois, em 1961, por Jack Kirby e Stan Lee. O Tocha Humana do crossover é o primeiro Tocha Humana, criado em 1939, por Carl Burgos e ele é um androide inventado pelo cientista Phineas Horton que tem o poder de controlar o fogo. Sua primeira aparição foi na revista Marvel Comics #1 (título anterior da Marvel Mystery Comics e que, claro, tornar-se-ia o nome da consagrada editora). O Namor que vemos no crossover é o mesmo Namor de sempre (criado em 1939, por Bill Everett), ainda que, à essa época, sua herança mutante nem fizesse parte dos sonhos do autor ou da editora.
É a premissa do crossover é literalmente a premissa que se tornaria padrão em quase todos os encontros de super-heróis: a pancadaria entre eles. No caso, Namor foi traído pelos humanos, apesar de ter tentado ajudá-los (evento que aconteceu no número anterior da revista) e ele, com a cabeça quente, sai literalmente cometendo atos de terrorismo (sem mortes) contra a raça humana em Nova York. O primeiro número do encontro é uma sucessão desses atos por Namor, que explode uma bomba no fundo do rio Hudson, destrói um metrô suspenso, liberta animais de um zoológico e ataca a ponte de Brooklyn. Mas Bill Everett, que escreve e desenha o primeiro número, deixa clara a bondade no coração do príncipe submarino, ao fazê-lo salvar um bebê abandonado por uma mãe na confusão do zoológico.
O Tocha Humana só aparece no final dessa primeira metade da história, para um breve combate com Namor. Ato contínuo, em uma interessante jogada narrativa, vemos exatamente os mesmos eventos causados por Namor, mas pelos olhos do Tocha Humana, sempre um passo atrás de seu inimigo. Com isso, aprendemos que o Tocha Humana, agora, faz parte da força policial da cidade e ele faz de tudo para consertar os estragos causados pelo atlante enfurecido. O número acaba com a mesma breve luta, só que pelo ponto de vista do Tocha.
O segundo número é composto, unicamente, do conflito entre os dois por toda a cidade. É pura pancadaria, só que dessa vez desenhada por Burgos, com roteiros de Everett que trabalham em sincronia e ritmo, permitindo uma boa cadência entre textos expositivos desnecessários (mas que não atrapalham a diversão) e sequências de ação bem pensadas, ainda que, sob a ótica mais cínica dos dias de hoje, completamente clichê. No entanto, há que se destacar a incorreção política do texto – ah, como eu adoro um mundo politicamente incorreto! – com o Tocha Humana querendo literalmente matar Namor por intermédio do uso de substâncias química, mais precisamente ácido sulfúrico. E isso em plena Segunda Guerra Mundial, depois de o mundo passar pela Primeira Guerra, marcada horrivelmente pela guerra química. É ou não é algo impensável nos dias de hoje?
E esse número acaba em um impasse, com o Tocha dentro de um tubo de borracha gigante que o impede de pegar fogo, mas que Namor não pode largar justamente para impedir que o ar entre. O cliffhanger ao final pergunta aos leitores o que eles sugeririam como final e que ele seria revelado no próximo número.
E, para minha mais absoluta estupefação – e boas gargalhadas! – o último número vem e o conflito é literalmente encerrado em UMA página. Sim, caros leitores, a luta entre o Tocha Humana e Namor acaba em UMA página apenas, com a interferência completamente deus ex machina de Betty Dean, uma policial de Nova York e única humana em que Namor confia. Ela aparecer (já havia aparecido brevemente, conversando com o Tocha, no número anterior) e, sem cerimônia, manda os dois fazerem as pazes. E é isso. Tudo acaba assim, sem mais nem menos. Vai, é hilário, não?
O fã de quadrinhos precisa, de tempos em tempos, voltar às origens do meio e navegar pelas páginas da história da mídia que ama. Ler esse crossover de 75 anos atrás é uma necessidade. É como literalmente sentir a evolução dos quadrinhos a cada página que passa. Um divertimento só.
Namor vs. Tocha Humana (Namor vs Human Torch, EUA – 1940)
Conteúdo: Marvel Mystery Comics #8 a 10, publicadas originalmente entre junho e agosto de 1940
Roteiro: Bill Everett, Carl Burgos
Arte: Bill Everett, Carl Burgos
Editora (nos EUA): Timely Comics (depois, Marvel Comics)
Páginas: 60