Império Secreto, a polêmica saga que é a culminação da revelação que o Capitão América “sempre foi” um agente da Hidra, é, como prometido pela Marvel Comics, o último grande evento da editora por 18 meses, depois de mais de uma década, pelo menos a partir de Dinastia M, engatando uma grande história na outra com enormes variações de qualidade. No entanto, as 11 edições dedicadas que formam o coração da história não são apreciáveis de verdade sem conhecimento prévio de determinados eventos importantes na vida do Capitão América a partir de 2014. Portanto, começarei a crítica com uma necessária recapitulação dos pontos mais importantes, antes de entrar nos comentários sobre a saga em si.
Cenas dos capítulos anteriores
(com spoilers desses pontos, claro)
- No arco O Prego de Ferro, publicado em Capitão América #16 a 21, entre fevereiro e junho de 2014, o vilão do título anula os efeitos do soro do supersoldado e Steve Rogers reverte para a idade que teria hoje em dia, ou seja, pelo menos 90 anos.
- Steve Rogers, no arco seguinte, O Soldado do Amanhã (Capitão América #22 a 25, de julho a outubro de 2014), anuncia seu sucessor, Sam Wilson, o Falcão, seu parceiro de longa data, que passa a adotar o nome Capitão América, o escudo e um uniforme híbrido com as cores da bandeira americana, mas mantendo as características aladas de seu uniforme de Falcão. A partir desse ponto, a publicação solo do Capitão América como Steve Rogers acaba e outra, que começa do zero, tendo o mesmo nome, só que com Sam Wilson como protagonista, começa a ser publicada a partir de novembro de 2014.
- Na saga Vertentes (Standoff, de março a abril de 2016), a S.H.I.E.L.D., liderada por Maria Hill, criou uma prisão para supervilões a partir dos poderes infinitos de Kobik, a versão senciente do Cubo Cósmico, que apaga as mentes dos vilões e as substitui por versões dóceis deles mesmos vivendo no bucólico vilarejo de Pleasant Hill. Ao final da história, Steve Rogers volta à sua forma jovem graças aos poderes de Kobik e, em seguida, o personagem ganha uma publicação solo novamente, Capitão América: Steve Rogers, a partir de maio de 2016 (Sam Wilson também continua como Capitão América e com o escudo clássico, na publicação Capitão América: Sam Wilson).
- Ao longo da nova publicação solo do herói, cuja primeira edição já começa com Rogers assassinando (ainda que de forma hesitante) Jack Flag e falando “Salve Hidra!”, descobrimos que, Kobik, ao reverter Rogers à sua forma original, o fez sob a influência do Caveira Vermelha, em um maquiavélico plano que incutiu na cabeça da confusa menina super-poderosa que a Hidra é uma entidade que representa tudo que há de bom no mundo, ou seja, ao “recriar” Rogers, ela alterou toda a sua história, desde quando ele era criança, tornando-o aliado da Hidra desde sua origem.
- O Steve Rogers vilanesco, então, passa a colocar em movimento um complexo plano para dominar os EUA, começando por tornar-se diretor da S.H.I.E.L.D. depois que Maria Hill é defenestrada em razão dos acontecimentos em Vertentes, passando por um sem-número de traições para colocar a Hidra no controle e eliminar a ameaça que os super-heróis naturalmente significariam. Além disso, Rogers trai o próprio Caveira Vermelha, levando-o à sua morte (novamente) pelas mãos de Ossos Cruzados e Pecado.
A crítica da saga
(sem spoilers)
O verdadeiro objetivo de toda saga em quadrinhos não é contar uma boa história, mas sim vender mais. Quando há também uma boa história, ponto para a editora, mas isso não é o que se vê por aí. A Marvel Comics, por meio de um projeto de longo prazo carregado de sagas e crossovers que contaminam, de tempos em tempos, toda sua linha editorial, com direito até mesmo a soft reboot de seu universo na terceira versão de Guerras Secretas e seus vários (e muitos para lá de interessantes) tie-ins, acabou cansando os leitores que, mesmo assim, continuam prestigiando suas sagas (Império Secreto teve excelentes números de venda por toda a saga).
Império Secreto veio precedida de diversas edições de Capitão América: Steve Rogers que lidaram com a bombástica revelação que o símbolo máximo do patriotismo americano sempre foi da Hidra, o equivalente do nazismo em quadrinhos mainstream. O furor gerado pela história, como de costume, dividiu os leitores, muitos achando um absurdo alterarem a essência do personagem e, outros tantos, achando interessante justamente em razão disso. A saga, originalmente composta de 10 edições publicadas duas vezes por mês – contando com a #0 – foi expandida para 11, com Império Secreto: Ômega, que funcionará como um epílogo (possivelmente na linha de Guerra Civil: A Confissão e outras histórias do gênero), prometida para meados de setembro. Vale salientar que a presente crítica só leva em consideração as edições #0 a #10 integralmente dedicadas à saga e não seus vários tie-ins, ainda que sua influência ou não sobre a compreensão da linha narrativa seja objeto dos comentários.
Como a revelação da traição de Rogers já tinha sido feita, Nick Spencer, que já vinha escrevendo as histórias do Capitão, inicia a história com um estranhíssimo prólogo que estabelece que, 1945, quem ganhou a Segunda Guerra Mundial foram as forças do Eixo, com os Aliados revertendo a situação por intermédio do uso do Cubo Cósmico que, porém, não afeta o Capitão América em razão de uma cerimônia mística. A isso, adicionem as afirmações dos editores Tom Brevoort e Axel Alonso, além do chefão da Marvel Joe Quesada e do próprio Spencer, de que aquilo que vemos realmente aconteceu e pronto, está instalada a confusão que, aliás, foi brilhantemente abordada em tom jocoso por meu colega Luiz Santigo em sua anti-crítica da edição #0 da saga. A grande questão é que, por mais que queiramos acreditar que “tudo mudou”, sabemos, lá no fundo, que nada mudará, pelo menos nada tão relevante e fundamental como um evento histórico dessa magnitude, mesmo considerando que estamos falando de quadrinhos onde tudo vale.
E essa pulga atrás da orelha ganha proporções de um Godzilla quando relembramos que a origem de todo esse novo status quo é o Cubo Cósmico versão Kobik. Um artefato desse nível de poder empresta uma aura de “realidade alternativa” à toda história, muito na linha da clássica série O Que Aconteceria Se…, do que vimos em Dinastia M, com um mundo novo criado apenas pela magia da Feiticeira Escarlate e, mais ainda, curiosamente, do terceiro arco da quarta temporada de Agents of S.H.I.E.L.D., em que Aida cria um mundo digital dominado pela Hidra. Porém, seria uma traição de Nick Spencer se ele simplesmente varresse tudo para debaixo do tapete ao final, desfazendo 100% do que foi feito como se nada tivesse acontecido. Ainda que, claro, MUITA coisa volte praticamente ao normal quando a poeira assenta, é bom ver que diversas consequências dos atos do Capitão Hidra (vou chamá-lo assim, ok?) permanecem inalteradas ao final das 11 edições, notadamente duas importantes mortes. Por quanto tempo isso vai durar são outros quinhentos, claro.
Mas a história em si começa de verdade quando Capitão coloca em funcionamento seu plano final de dominação, com as seguintes medidas macro, logo nas duas primeiras edições: (1) ele manipula o Homem de Ferro e Coração de Ferro a colocarem em funcionamento um escudo impenetrável de defesa ao redor da Terra para impedir uma invasão Chitauri que ele secretamente fabricou e, com isso, é bem sucedido em manter os mais poderosos heróis “galácticos” em órbita do planeta (Capitã Marvel, a nova Quasar, Espectro, os Guardiões da Galáxia e diversos outros); (2) ele manipula o vilão Blecaute e o faz usar seu poder de controle da Darkforce para cercar Manhattan em uma impenetrável “bolha de escuridão”, prendendo ali os heróis urbanos como Demolidor, Luke Cage, Punho de Ferro e Jessica Jones, além de alguns super-poderosos como o Doutro Estranho; (3) ele manipula Visão, Odinson (a versão indigna de Thor), Feiticeira Escarlate, Deadpool e outros a formarem seu próprio grupo de Vingadores. Além disso, como já havia sido estabelecido, os mutantes ficam de fora do grosso do conflito em Nova Tian e os novos inumanos são enviados para prisões e campos de concentração.
Com isso tudo, a única linha de defesa contra o império da Hidra é uma resistência formada, dentre outros, por Viúva Negra, Gavião Arqueiro, Homem de Ferro (inteligência artificial), Coisa, Homem-Formiga (Scott Lang) em termos de heróis mais antigos e Hulk (Amadeus Cho), Vespa (Nadia Pym), Homem-Aranha (Miles Morales), Gigante (Raz Malhotra), Viv (filha do Visão) e Coração de Ferro (Riri Williams), da nova geração, que se esconde em uma base nos arredores de Las Vegas. Mesmo com as edições lidando também com os heróis exilados em Manhattan e no espaço, além de Maria Hill agindo independentemente, o grande foco da narrativa fica mesmo com o Capitão Hidra de um lado e a resistência de outro, resistência essa, aliás, que se biparte em dois grupos distintos, um menos radical comandado pelo Homem de Ferro e Gavião Arqueiro que busca os fragmentos do Cubo Cósmico espalhados pelo Dr. Selvig pelo mundo como forma de reverter a situação e o mais radical, liderado pela Viúva Negra (que comanda seus pupilos, os Campeões, em uma reedição da famigerada Sala Vermelha), que tem como objetivo matar Steve Rogers.
Grande parte da história, então, é consumida pela “corrida maluca” atrás dos pedaços do Cubo Cósmico e, nesse aspecto principalmente, o roteiro de Nick Spencer sofre muito com a “invasão” dos tie-ins que, muito mais do que em sagas como Guerras Secretas ou Guerra Civil II, funcionam como parte integrante da narrativa como um todo, detraindo um pouco da experiência de quem não os leu. Essa escolha, claro, é editorial e provavelmente acima do poder de decisão de Spencer e, confesso, é uma praga irritante. Ainda que essa imposição, quase venda casada, fosse comum em outros tempos, a dependência de tie-ins havia diminuído muito com o tempo, mas volta com força total aqui com um resultado que exige que o leitor que não quiser dispender o dinheiro com mais publicações ou não tiver paciência para ler centenas de páginas extras, tenha que se fiar nos econômicos resumos contidos em cada edição. Spencer, por seu turno, faz o melhor que pode, mas não é o suficiente e a leitura torna-se esburacada e por vezes frustrante.
A cada edição a partir da segunda, Spencer insere intrigantes interlúdios que lidam com um desmemoriado Steve Rogers barbado e com uniforme militar em um lugar incerto e não sabido, que dialoga bastante com uma das mais importantes características do herói, ou seja, ele ser um homem perdido no tempo (e por duas vezes, se considerarmos o arco Perdido na Dimensão Z). Todas essas páginas, é importante dizer, são desenhadas pelo brasileiro Rod Reis, em sua bela e característica arte com cores em guache que imprimem propositalmente uma atmosfera de sonho – ou pesadelo – ao que vemos. Na medida em que esses interlúdios evoluem, com Rogers encontrando parceiros e um ex-inimigo, o leitor já começa a entrever como exatamente a história acabará, uma estratégia inteligente do autor que, com isso, evita surpresas retiradas da cartola no último segundo e já estabelece que mesmo que aquilo que vejamos acontecer esteja acontecendo de verdade como Quesada quer, não é bem assim que a banda toca. E sejamos francos: algo assim já era perfeitamente esperado, pois ninguém em sã consciência, nem o mais ingênuo dos leitores, poderia achar que a Marvel Comics transformaria um de seus mais importantes ícones, criado por Joe Simon e Jack Kirby em 1941 para socar Hitler, passaria a ser um vilão fascista para sempre.
Além dessa revelação a conta-gotas que tem a vantagem de não tentar enganar o leitor, Spencer acertar no tom pessimista de toda a narrativa e ele o faz de uma maneira orgânica que tem o mérito de não esquecer as centenas de conflitos super-heroísticos ao longo de décadas, abordando, sem citações exageradas ou textos expositivos, momentos-chave de todo o Universo Marvel. As lutas, as destruições, as mortes causadas pela pancadaria incessante de seres super-poderosos é tratada como uma das causas para a emergência da Hidra que, do seu jeito militarístico, só “quer o melhor”.
Outro ponto que o roteirista acerta é na caracterização do Steve Rogers vilanesco. Não vemos um personagem recortado em cartolina. Aquele ali é mesmo o Rogers que conhecemos se fosse um vilão. Há hesitação no que ele faz e ordena, por mais atroz que o resultado final seja. Ele é um homem torturado não por estar sendo forçado a fazer o que ele faz – pois não está -, mas sim por guardar algum senso de moral e ética que o faz desgostar das medidas extremas que acaba tendo que tomar. Isso não reduz o impacto ou tem o condão de perdoá-lo. Nada disso! Mas escrever um vilão caricatural é sempre o caminho mais fácil e Spencer faz justamente o contrário, criando nuances para essa versão de Rogers, mesmo que, por diversos momentos mais para o final, ele seja obrigado a “pular” esse aspecto e lidar com as obrigatórias pancadarias.
Todo esse lado pessimista, então, funciona em forte contraste aos momentos positivos que vão sendo salpicados aqui e ali, com as pequenas vitórias daqueles que ainda lutam para reverter a situação. A forma como Spencer lida com essa versão etérea de Tony Stark mantém o personagem em xeque, mas constantemente ativo e importante para a resolução da história, abrindo espaço para uma bela liderança do Gavião Arqueiro e para o ressurgimento do Capitão América Sam Wilson, que marca o começo da propositalmente previsível virada. Quando o clímax chega, o roteirista evita lutas longas e protraídas no tempo, preferindo curtos e bombásticos conflitos com uma pegada intimista violenta e bem costurada, especialmente no que se refere à Viúva Negra e Maria Hill. Além disso, há toda uma edição dedicada ao encontro dos heróis e vilões com “Ultron Pym” (vide a ótima graphic novel A Ira de Ultron) que, em sua quase surreal neutralidade suíça, oferece talvez os melhores e mais profundos momentos da saga, com um personagem torturado, mas perfeitamente consciente do que foi e é, resgatando, mais uma vez, décadas de cronologia clássica da Marvel.
É evidente que, a pergunta que fica é: o final realmente funciona?
Sem entrar em detalhes para não estragar a leitura de ninguém, a resposta dependerá do quanto o leitor quiser ser enganado. Como já adiantei, Spencer não toma o caminho mais viajado e não reverte tudo ao que era antes, não completamente pelo menos. Se o leitor espera uma mudança total, um novo status quo, algo realmente desafiador e nunca visto antes, então ele sairá desapontado. Mas, se ele for realista e souber que alterações radicais do tipo “o Capitão América será para sempre um fascista genocida” simplesmente não acontecem, então é bem provável que saia satisfeito do desfecho. Não é, de forma alguma, algo do nível espetacular de Guerra Civil, mas está lá entre as melhores sagas dos últimos anos da editora. Ah, e em relação àquele prólogo que lida com a vitória aliada na Segunda Guerra Mundial somente em razão do Cubo Cósmico, bem… confesso que, ao terminar a 11ª edição da saga, não tenho certeza se Spencer realmente abordou o assunto ou se ele discretamente o varreu para debaixo do tapete assim como quem não quer nada (convido nossos leitores a debaterem esse ponto – e quaisquer outros – nos comentários).
A arte da saga tem apenas uma constante: Rod Reis no prólogo da edição #0 e nos interlúdios das edições #2 a #10). No restante da saga, vemos majoritariamente os bons trabalhos de Andrea Sorrentino e Leinil Francis Yu nos lápis, com um resultado bastante parecido e uniforme no que diz respeito aos desenhos em si. Sorrentino, porém, leva vantagem em seu trabalho na progressão de quadros, lidando bem mais eficiente com a pancadaria do que seu colega, ainda que Yu também consiga bons momentos. Mas as artes que realmente merecem destaque – fora a de Reis – são as de Daniel Acuña que, porém, só desenha as edições #0 e #8 e de Steve McNiven, só nas edições #1 e #10. Os dois, cada um com seu estilo, são os que capturam com mais exatidão tanto a atmosfera pessimista quanto, especialmente, os atos heroicos dos mais diversos personagens, com traços detalhados e respeitosos à mitologia de cada um e com transições que, por mais que não sejam revolucionárias, muito bem dão conta do recado sem permitir que o texto de Spencer atravanque a fluidez. Mesmo assim, há que se considerar que cada edição conta com mais de um artista e, mesmo descontando-se a atmosfera de “sonho” que Rod Reis propositalmente empresta à sua parte, há mudanças estilísticas com muita frequência, o que é sempre um ponto negativo.
Império Secreto, portanto, cumpre sua tarefa de ser uma saga potencialmente relevante para o Universo Marvel e que, apesar de seus problemas – especialmente sua irritante dependência dos tie-ins – surpreendentemente conta uma boa e divertida história. Nada como o casamento feliz entre uma jogada de marketing e uma narrativa de qualidade, não é mesmo?
Império Secreto (Secret Empire, EUA – 2017)
Contendo: Secret Empire #0 a #10
Roteiro: Nick Spencer
Arte: Daniel Acuña (#0, #8), Rod Reis (prólogo da #0 e interlúdios com Steve Rogers da #2 a #10), Steve McNiven (#1 e #10), Andrea Sorrentino (#2, #3, #5, #7), Leinil Francis Yu (#4, #6, #9), Joshua Cassara (#4 a #7), Rachelle Rosenberg (#4 a #7), Sean Izaakse (#8), Java Tartaglia (#8), Joe Bennett (#9), David Marquez (#10), Paco Medina (#10), Juan Vlasco (#10), Jesus Aburtov (#10), Ron Lim (#10)
Arte-final: Jay Leisten (#1 e #10), Gerry Alanguilan (#4, #6, #9), Leinil Francis Yu (#6, #9), Joe Pimentel (#9)
Cores: Mathew Wilson (#1 e #10), Sunny Gho (#4, #6, #9), Java Tartaglia (#6), Dono Sánchez-Almara (#9)
Letras: Travis Lanham
Capas: Mark Brooks
Editora original: Marvel Comics
Data original de publicação: junho a agosto de 2017
Editora no Brasil: Panini Comics
Data de publicação no Brasil: ainda não publicado na data da presente crítica
Páginas: 422