- Contém spoilers do status quo do Universo Marvel até a saga e da saga em si. Leiam, aqui, nossas críticas das histórias prelúdio Caminho para a Guerra Civil.
Sagas, sagas e mais sagas! Todo mundo reclama, mas ao mesmo tempo adora a estratégia mais visivelmente adotada pela Marvel desde Dinastia M, em 2005. Desde então, é um grande evento emendado em outro com menor ou maior influência na teia do Universo Marvel.
As reclamações de que as sagas exigem muito do leitor, especialmente quando elas sangram para diversas publicações paralelas, são perfeitamente compreensíveis. No entanto, por outro lado, se bem estruturadas, as sagas funcionam para dar maior coesão ao universo fictício onde elas se inserem e, também, a dar relevância a determinada situação. Acabou-se a era em que as duas grandes editoras mainstream de super-heróis podiam ter publicações quase que estanques que, mesmo dividindo teoricamente o mesmo universo, eram separadas uma da outra completamente.
Guerra Civil foi a grande saga da primeira década dos anos 2000 e, arrisco dizer, talvez a mais importante, influente e arriscada de todas as sagas até agora, incluindo aí as da DC Comics. Apesar de um premissa que, em um primeiro momento, pode parecer simples, a saga é fortemente politizada e coloca heróis icônicos da editora uns contra os outros por questões ideológicas, e não por questões rasteiras como “enganos”, “mal entendidos” ou “tramas vilanescas” que sempre levaram a páginas e mais páginas de embates toda vez que um herói se encontrava com outro.
Depois da morte de centenas de pessoas em Stamford ocasionada por uma ação impensada dos Novos Guerreiros (Speedball, Namorita, Radical e Micróbio) que só pensam em angariar mais espectadores para seu reality show, os heróis se dividem em duas frentes: aqueles que, liderados pelo Homem de Ferro, querem o registro dos heróis, com a consequente supervisão do Estado e outros que, liderados pelo Capitão América, lutam pela liberdade total. Esse embate, que reverbera no mundo real em relação ao controle do Estado em diversas nações sobre seus cidadãos, em maior ou menor grau, é simbolizado pela oposição de Tony Stark a Steve Rogers.
E a coisa fica feia, muito feia, com ambos os lados tomando todas as medidas que julgam necessárias para impor sua visão. Stark, ajudado por Reed Richards, cria um clone de Thor que chega a assassinar Golias, em momento decisivo da saga, levando o lado do Capitão América a angariar mais aliados. Mas Rogers também não se esquiva de empregar táticas sujas, como na luta final com o Homem de Ferro. Mas quem está certo? Ou, usando a pergunta que pontilhou a publicidade da Marvel à época: “de que lado você está?”
A resposta pode parecer fácil, mas não é. Longe disso. Tony Stark, bilionário industrialista, é pragmático. Ele sabe que o registro dos heróis é a única maneira de impedir que eles sejam transformados em vilões da noite para o dia, sendo caçados pela S.H.I.E.L.D. e outras entidades. É uma espécie de meio termo. Se olharmos por essa ótica, a posição de Steve Rogers, inflexível, idealista, é potencialmente perigosa para os próprios heróis, além da população em geral.
No entanto, sob o ponto de vista do Capitão América, a discussão gira em torno da liberdade. Afinal, ele é o Sentinela da Liberdade acima de tudo e faz parte de seu ser lutar por ela com toda a sua fibra. O que o controle do Estado pode trazer de bom? Olhem historicamente (na vida real) e verão que não é muita coisa. Além disso, se formalmente os heróis não passarem de funcionários públicos, inclusive remunerados pelo Estado (faz parte da proposta), então quer dizer que é o Estado que também determina contra quem eles vão lutar, certo? Em quanto tempo, então, os heróis não passariam de peões de interesses políticos e militares? A independência seria jogada no lixo. Esse é o perigo que o Capitão quer impedir a todo custo.
Como o leitor pode ver, Guerra Civil é muito mais do que uma mera “luta de super-heróis”. Está muito longe de ser uma arena gladiatorial criada por um ser superpoderoso, do que a busca por poder absoluto ou uma questão de paradoxos temporais e dimensões paralelas. Guerra Civil discute uma realidade com a qual podemos nos relacionar. Guerra Civil está muito mais próximo de nós do que qualquer outra saga superheroística por aí. E é isso que a torna especial, marcante e, sim, como disse, influente.
E é possível ir mais além ainda, pois o trabalho de Mark Millar, roteirista perfeitamente bem escolhido considerando seu domínio sobre linhas narrativas de gigantesco escopo (vide Os Supremos e Wolverine: Inimigo do Estado), discute o próprio papel dos super-heróis, se eles fazem mais bem do que mal, se eles não atraem mais destruição do que se o mundo se livrasse deles. São perguntas que costumeiramente só são levantadas em obras separadas dos universos normais das editoras, como Watchmen e Batman – O Cavaleiro das Trevas. Millar as traz para a continuidade normal da Marvel (Terra 616, como é chamada), imediatamente impedindo que essa saga seja simplesmente descartada apenas como caça-níqueis (ela tem essa função também, claro!).
Mas olhemos com mais vagar para a maneira como cada lado quer atingir seu objetivo. Stark emprega espiões, clones e também supervilões para derrotar o lado de Rogers. Os fins então justificam os meios? Que fim levou o lado nobre dos super-heróis? Mas o lado do Capitão também faz o mesmo, como disse mais acima, não só empregando táticas de espionagem, como, também, recrutando ninguém menos do que o violentíssimo Justiceiro para seu lado. Sim, há relutância em usar os serviços de Frank Castle, mas Rogers fecha os olhos para seu passado e para as consequências futuras, que, claro, não demoram a acontecer.
Para tornar essa saga possível, um trabalho árduo de preparação foi necessário pela Marvel, sob o comando de Brian Michael Bendis, que é o arquiteto por trás da estratégia “saga-após-saga” da editora. Primeiro, ele teve que tirar os mutantes da jogada, para não complicar a história. Isso foi feito com Dinastia M e o controle dos mutantes pelos Sentinelas. Depois, ele teve que se livrar do Hulk e, para isso, literalmente ejetou o Gigante Esmeralda para o espaço, iniciando Planeta Hulk. Thor saiu da jogada, por estar lidando com o Ragnarok em Asgard, o que o levou a hibernar como o pai. Além disso, Nick Fury, o grande estrategista, fica nas sombras. Sua presença é sentida, já que ele se coloca ao lado do Capitão, mas sua influência nos acontecimentos perde terreno. E, mesmo dentro da trama, Bendis – e aí graças a Millar, que soube inserir isso bem na narrativa – ainda tira o Doutor Estranho de combate, já que ele se auto-exila para evitar que tome uma posição e empregue seus vastos poderes para fazer a balança pender para um dos lados. O mesmo vale para os heróis cósmicos, como Nova, que ficaram quase que integralmente confinados em seus respectivos quadrantes da galáxia, ganhando duas sensacionais sagas próprias quase que simultaneamente. Coincidências demais? Talvez, mas, sem elas, Guerra Civil não seria completamente crível e Millar perderia muito tempo com narrativas paralelas para lidar com as mais diversas situações.
Mesmo assim – e aí volto ao aspecto “caça-níquel” das sagas – Guerra Civil contou não só com uma linha mestra narrativa, composta de sete edições dedicadas, publicadas originalmente entre julho de 2006 e janeiro de 2007, como também crossovers de maior ou menor relevância com literalmente todos os títulos Marvel então em publicação, além de alguns títulos próprios como Road to Civil War, Civil War: Frontline e Civil War: Choosing Sides (só para o leitor ter uma ideia, são algo como 100 números das mais diversas publicações que formam a integralidade do evento, para um total de 2.200 páginas). A leitura de efetivamente tudo é uma tarefa árdua, cansativa, longa, mas prazerosa, que dá uma visão de longo prazo sobre todo o Universo Marvel da época e explica muita coisa que, no título principal, é pouco explorado por razões óbvias. Ainda que não seja estritamente essencial ler tudo – e a presente crítica só leva em consideração o evento principal, para ficar bem claro – é importante, para o encerramento adequado da saga, que Capitão América #25 (na verdade, todos os números, de #1 a 25 do Capitão da época deveriam ser lidos, pois é uma série excepcional sob a batuta de Ed Brubaker) e Civil War: The Confession, sejam lidos, pois lida com a morte do Capitão após sua prisão na saga e a catarse de Tony Stark.
No lado da arte (lembrando novamente que só dos sete números da saga e não de tudo), Steve McNiven dá um show, com grande domínio imagético, criando, com isso, momentos realmente inesquecíveis. A imagem de destaque nessa postagem e a outra em que Steve Rogers é arrancado de cima de Tony Stark por homens comuns, policiais e bombeiros – homens que ele sempre procurou proteger, mas que se voltam contra ele – são incrivelmente impactantes. Apesar de ele não trabalhar muito originalmente com a transição dos quadros, o artista passa emoção com seus rostos contorcidos de dor, ódio, surpresa e tristeza, além de, em grande lutas, saber distribuir os personagens por todos os quadros e splash pages, dando um ar de guerra campal ao trabalho, exatamente como deveria ser.
Guerra Civil abriu espaço para uma renovação do Universo Marvel sem a necessidade de reboots ou golpes publicitários zerando edições. A saga é orgânica, bem construída, respeita as personalidades dos líderes dos dois polos em conflito e propõe debates e conversas sérias, como as que expus acima. Dificilmente a Marvel repetirá esse feito nos quadrinhos, mas espero, sinceramente, estar errado nesse ponto.
Guerra Civil (Civil War, EUA)
Contendo: Guerra Civil #1 a 7, publicados originalmente entre julho de 2006 e janeiro de 2007
Roteiro: Mark Millar
Arte: Steve McNiven (lápis), Dexter Vines (tinta), Mark Morales (tinta), John Dell (tinta), Tim Townsend (tinta)
Cores: Morry Hollowell
Editora (nos EUA): Marvel Comics
Editoras (no Brasil): Panini Comics e Salvat Editora
Páginas: 189 (somente a saga principal)