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Sagas DC | Crise nas Infinitas Terras

por Ritter Fan
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  • spoilers.

O Multiverso DC nasceu e morreu (e nasceu de novo, mas essa é outra história) em razão de necessidades editoriais específicas e contraditórias. Se, em sua gênese, esse artifício narrativo tinha como objetivo explicar e aproveitar os heróis da Era de Ouro, “transportando-os” para a Era de Prata, conforme brilhantemente feito por Gardner Fox em O Flash de Dois Mundos, com a primeira “crise” entre diferentes Terras surgindo não muito tempo depois em Liga da Justiça da América #21 e #22, pela mesma mente criativa, o fim do Multiverso veio para, grosso modo, facilitar a compreensão do Universo DC por novos leitores.

Afinal, como é comum nos quadrinhos mainstream, quando alguma coisa funciona e dá frutos, ela é repetida e amplificada em progressão geométrica. Se a noção de uma segunda Terra é interessante, então porque não uma terceira, quarta ou trigésima? E porque não usar o mesmo conceito para cada nova versão de um mesmo personagem ou para cada nova aquisição editorial da DC Comics? Entre 1961, quando Barry Allen visitou Jay Garrick na Terra-2 e 1985, quando Crise nas Infinitas Terras começou, a editora contava com dezenas e dezenas de “novas Terras” e conciliar os problemas de continuidade era uma tarefa hercúlea e frustrante.

Em uma página, a dupla Wolfman e Pérez explica o conceito do Multiverso.

Com isso em mente, e diante do cinquentenário da DC Comics, Marv Wolfman assumiu a ingrata tarefa de escrever uma grande história que resolveria de vez (não sabia de nada esse Wolfman…) essas questões, eliminando o Multiverso da equação e reunindo o “melhor de todos os mundos” em uma espécie de “Terra Amálgama”. Não foi a primeira grande saga dos quadrinhos, mas Crise nas Infinitas Terras foi a primeira com um propósito nobre, que reunia o ato de contar uma história com aspectos práticos ditados pela necessidade de se dar um semblante de ordem à confusão estabelecida ao longo de décadas, algo recentemente emulado pela Marvel Comics em Guerras Secretas. E, nesse processo, nascia um clássico. Mas não um clássico sem problemas, como lidarei mais adiante.

Catalisando esse cataclismo, Wolfman estabeleceu a existência de forças universais opostas: o Monitor, que, claro, monitora o Multiverso e o Anti-Monitor, seu exato oposto, que tem como objetivo exatamente destruir todas as realidades com antimatéria e criar a sua própria. Sem perder tempo, Wolfman, por intermédio da magnífica arte de George Pérez, consegue explicar o conceito de Multiverso em apenas uma página, em seguida introduzindo o trágico personagem Pária cuja sina é testemunhar a obliteração de um mundo após o outro, um processo que, aprendemos, já vem acontecendo há algum tempo. Esse brevíssimo início – especialmente se considerarmos que as 12 edições exclusivamente dedicadas à saga montam a mais de 350 páginas – é um primor de economia narrativa que catapulta a história principal envolvendo as Terras mais conhecidas pelos leitores da DC à época, a começar pela Terra-3, criada em 1964, em que a História do Mundo aconteceu “ao contrário”. Em mais algumas páginas sombrias e niilistas, que têm como objetivo deixar muito claro ao leitor a seriedade da empreitada, Wolfman e Pérez aniquilam, sem cerimônia, um universo inteiro.

E, em apenas uma página dupla, fica estabelecida a seriedade da saga.

É a partir desse ponto que, podemos dizer, a história efetivamente começa, assim como seus problemas.

Em uma misteriosa esfera que a tudo observa, conhecemos Lyla que, não demora, ganha poderes e passa a ser chamada de Precursora. Ela é enviada pelo Monitor – que ainda não vemos, pois Wolfman faz um esforço sobre-humano e, em última análise, desnecessário, para manter uma aura de segredo – para recrutar os mais diversos personagens de diferentes universos para formar uma espécie de Liga da Justiça para lutar contra a também misteriosa ameaça do Anti-Monitor. Esse processo todo é mostrando em detalhes excruciantes na narrativa que começa a tropeçar em sua ambição e a se repetir ad nauseam. É como se todo o poder de síntese de Wolfman tivesse sumido de repente, com o detalhe frustrante que essa equipe é, digamos, assim, desmantelada mais para a frente, com outros personagens tomando seu lugar, inclusive com equipes separadas de super-heróis e super-vilões e outra só dos personagens místicos da DC.

Creio, porém, que um dos objetivos do roteirista foi fazer um nostálgico passeio pelo Multiverso, reunindo personagens variados e menos usados pela editora na época, quase que como um “último adeus”. Se encarada dessa forma, uma espécie de “onde está Wally?” de personagens DC, Crise nas Infinitas Terras ganha em charme e, de certa forma, em melancolia. No entanto, é inescapável a conclusão de que a leitura da saga é, mesmo para os maiores conhecedores do Multiverso, uma tarefa complicada, cansativa e, na falta de um termo técnico melhor, consideravelmente chata.

A multidimensional primeira equipe reunida pela Precursora.

Antes que os leitores revirem os olhos e batam os pés no chão me xingando e dizendo que não sei nada do que escrevo, faço, aqui, uma qualificação: a abordagem que tento dar à presente crítica leva em consideração a importância da saga para a DC e para os quadrinhos em geral, assim como questões de técnica narrativa. Li Crise pela primeira vez na medida em que era publicada originalmente na década de 80 e a reli algumas vezes desde então, mas todas as vezes a conclusão foi parecida, de que a leitura atenciosa da saga é um suplício.

Os principais problemas estruturais poderiam ser resumidos a quatro, que se inter-relacionam: (1) a criação e manutenção de segredos que não se justificam (o Anti-Monitor só vem a aparecer na metade da saga!); (2) a repetição temática em que vemos os mesmos eventos acontecerem um sem-número de vezes e, na maioria delas, sem efeito duradouro dentro da própria saga; (3) a necessidade de se derramar a maior quantidade possível de personagens dentro do maior número possível de páginas e (4) a forte dependência de tie-ins.

Os dois primeiros pontos eu já abordei mais acima. O terceiro – a quantidade de personagens – claramente tem origem no “último adeus” que também comentei anteriormente, mas, além disso, há um fator importante nele, que é  banalização daqueles personagens que são realmente importantes na história. Por exemplo, apesar de completamente sem utilidade, Batman aparece algumas vezes ao longo da história simplesmente porque ele é o Batman. E o mesmo pode ser dito tanto de personagens bastante conhecidos, como o Nuclear (aliás, parte do primeiro time reunido pela Precursora) e de outros trazidos lá do fundo de baú cheio de traças da editora, como Anthro, um cro-magnon filho de neandertais (???) criado em 1968.

Dois dos mais icônicos – e trágicos – momentos da saga: as mortes do Flash (Barry Allen) e de Supergirl (Kara Zor-El).

Com esse desfile interminável de personagens, aqueles realmente importantes acabam tendo sua participação diminuída. Por exemplo, Kal-L, o Superman da Terra-2, que tem real importância na saga, acaba sendo esquecido por páginas e páginas e páginas, somente para ressurgir aqui e ali quando a história efetivamente precisa andar. Os famosos sacrifícios da Supergirl e do Flash (Barry Allen), por mais icônicos que sejam – especialmente em razão da arte de Pérez – acabam se perdendo em meio à história como lágrimas na chuva (no momento em que escrevo essa crítica, estou em meio a um especial sobre Blade Runner para o site, pelo que a citação foi inevitável).

E, como se isso não bastasse, a própria ameaça do Anti-Monitor, tão bem construída no começo da saga, acaba não fazendo jus a todo mistério ao seu redor. Como de praxe, tudo acaba em uma pancadaria de proporções épicas que, claro, tem seu mérito mais do que justificado pelo valor artístico da arte de Pérez, mas não pelo lado narrativo, já que é uma estrutura que é useira e vezeira em histórias de super-herói desde que o mundo é mundo. Se tudo começa com uma ameaça de proporções inimagináveis, o final é quase banal, só ganhando relevo efetivo diante das mortes mais importantes que embalam a saga como um todo.

Finalmente, é inevitável abordar a praga dos tie-ins. Como é comum em sagas – comum, pois Crise e a primeira Guerra Secretas antes dela tornaram comum, vale dizer – toda a linha editorial da DC Comics foi contaminada pela história. Ou seja, paralelamente à narrativa principal conduzida pelas 12 edições dedicadas, outras histórias foram contadas, com maior ou menor grau de conexão com a saga. Infelizmente, porém, em uma decisão editorial que reputo míope, a própria saga principal foi de certa forma esvaziada pela presença desses tie-ins. Na verdade, talvez a melhor palavra seja “manipulada”. Com isso, quero dizer que Wolfman acabou tendo que escrever “pedaços introdutórios” dentro das edições de Crise que só ganhariam resolução nas publicações específicas dos personagens. O resultado final é que, por diversos momentos, há buracos narrativos que ou ficam completamente sem explicação ou exigem uma recapitulação forçada no começo de cada número. Em outras palavras, apesar de seu tamanho, Crise nas Infinitas Terras não é completamente auto-contida.

Uma pequena demonstração da capacidade de George Pérez de lidar com um enorme número de personagens ao mesmo tempo.

Independente de seus problemas, não há dúvida que a primeira grande saga da DC é um marco dos quadrinhos. Houve ousadia em matar literalmente centenas de personagens menores e um punhado de outros mais importantes e de se eliminar, pelo menos por um tempo, a multitude de universos paralelos que a editora criara. Crise nas Infinitas Terras, pode-se dizer, é o modelo pelo qual todas as sagas seguintes – e não falo aqui apenas da DC – seriam pautadas, para o mal ou para o bem.

Grande parte desse mérito vem, sem sombra de dúvida, da estupenda arte de George Pérez, que já tive oportunidade de citar aqui algumas vezes. Arriscaria dizer que ele é o artista que melhor sabe lidar com eventos dessa escala em que uma quantidade insana de personagens é necessária. Não só ele é um mestre na progressão de quadros, trabalhando com uma arte variada que efetivamente é voltada para contar a história, como ele sabe como ninguém lidar com a disposição espacial dos personagens em cada quadro e página. Folhear Crise nas Infinitas Terras é como uma aula de desenho, com a proporcionalidade de cada personagem sendo mantida de forma quase científica, além de ele demonstrar um enorme respeito à mitologia estabelecida, resgatando uniformes clássicos e redesenhando-os em seu estilo próprio, mas sem jamais alterar a essência. Pérez, sozinho, é a encarnação do próprio Multiverso DC Comics nesta grandiosa saga.

Crise nas Infinitas Terras é material obrigatório para qualquer leitor de quadrinhos, mesmo àqueles que preferem fugir do mainstream. Mesmo com seus defeitos, a saga encapsula a variedade, a criatividade e a coragem da DC Comics em sempre manter-se renovada, pronta para enfrentar todos os desafios – e crises (ahá!) – que encontrar pela frente.

Crise nas Infinitas Terras (Crisis on Infinite Earths, EUA – 1985/6)
Roteiro: Marv Wolfman
Arte: George Pérez
Arte-final: Dick Giordano, Jerry Ordway, Mike DeCarlo
Cores: Anthony Tollin, Tom Ziuko, Carl Gafford
Letras: John Costanza
Capas originais: George Pérez
Editora nos EUA: DC Comics
Data original de lançamento: abril de 1985 a março de 1986 (12 edições)
Editora no Brasil: Editora Abril, Panini Comics
Datas de lançamento no Brasil: maio a julho de 1989 (Editora Abril – 3 edições), maio a julho de 1996 (Editora Abril – 3 edições), novembro e dezembro de 2003 (Panini Comics – 2 edições encadernada), janeiro de 2016 (Panini Comics – versão única de luxo em capa dura)
Páginas: 359 (versão encadernada americana sem extras)

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