É bem provável que as pessoas que gostam sem reservas de filmes em 3D sejam aquelas que acham que a estereoscopia é realmente uma novidade de alguns anos para cá. Mas é claro que isso é completamente errado. O 3D, de uma forma ou de outra, surgiu em fotografia ainda no século XIX e, nesse mesmo século (ou seja, no século ANTERIOR ao passado), ele migrou para as “imagens em movimento” pelas mãos do britânico William Friese-Greene.
Com a evolução constante do cinema, já em 1915 aconteciam projeções-teste da tecnologia para o público em geral, com base em tecnologia de Edwin S. Porter e William E. Waddell. Não eram exatamente filmes, pois eles não contavam uma história, mas a tecnologia anaglífica (aquela com os óculos com lentes verdes e vermelhas, que depois passariam a ser azuis e vermelhas) despontou já nesse momento. O primeiro filme 3D comercial efetivamente lançado para o público em geral foi The Power of Love, em 1922, mas foi apenas em circuito limitado e nenhuma cópia dele sobreviveu até os dias de hoje.
Os experimentos continuaram nos EUA, mas veio a Grande Depressão em 1929 e a coisa meio que parou, só voltando de verdade e quase para ficar entre 1952 e 1954, a chamada “Era de Ouro” do 3D. O primeiro filme desse ressurgimento foi Bwana Devil (Bwana, o Demônio, em português). Não pretendo tratar da evolução do 3D em detalhes no presente artigo, mas gostaria apenas de frisar a principal razão para o ressurgimento do 3D na década de 50, que atraiu até Alfred Hitchcock, com seu Disque M Para Matar: o temor dos estúdios em relação à fuga de público com o advento e sucesso absoluto da televisão.
E, olha que coincidência, mas a razão do ressurgimento do 3D nos anos 2000 também tem completa e absoluta ligação com a queda de receita com venda de ingressos no cinema. Só a razão para a queda é diferente: a pirataria. Mas não só a pirataria, mas o desenvolvimento de diversas outras plataformas digitais que permitiram ao consumidor ver filmes onde e quando quiser, tornando o cinema quase que uma experiência obsoleta (não concordo com isso, apenas estou expondo fatos, pois tenho ataques de cólera quando vejo gente vendo filmes inteiros – e alguns clássicos famosos – tela de seu telefone celular). O 3D seria uma maneira de forçar a volta do público à experiência coletiva do cinema. Lógico que o panorama mundial seria bem diferente se o campeão do 3D, James Cameron, não tivesse o sucesso que teve com seus Avatar, em 2009.
Foram os Smurfs gigantes os verdadeiros responsáveis pela absurda explosão do 3D, que, todos podem constatar hoje, é a regra e não a exceção nos cinemas. Aliás, nesse ponto, a tirania do 3D está ficando parecida com a tirania do filme dublado. Afinal, achar uma cópia de qualquer filme em 2D exige uma impressionante ginástica. E o pior é quando as duas tiranias se encontram, com a oferta, apenas, de cópias dubladas e em 3D. É o equivalente cinematográfico a ingerir jiló com óleo de rícino.
Meu ponto é: em que exatamente o 3D acrescenta alguma coisa à experiência cinematográfica? Vamos lá, faça aí uma lista mental do que realmente o 3D agregou em suas idas ao cinema. Pensaram bem? Aposto que a resposta será algo do tipo “o 3D permitiu maior imersão” ou algo do gênero, não?
Gente, por favor, se essa é melhor resposta que vocês conseguem arrumar, por favor vejam mais filmes clássicos. Imersão? O que exatamente é imersão? Casablanca, com as atuações marcantes de Bogart e Bergman, a trilha sonora inacreditável de Max Steiner, a fotografia em preto e branco inigualável de Arthur Edeson, a direção de arte de Carl Jules Weyl, o roteiros do Eptein e de Koch, além da direção perfeccionista de Michael Curtiz não permitiram a tão repetida “imersão”? E o mesmo eu poderia dizer de incontáveis (mesmo!) outros filmes, incluindo filmes de ação como O Exterminador do Futuro, Duro de Matar e Aliens ou obras-primas recentes como a trilogia O Senhor dos Anéis? Imersão é isso e não brincadeiras de criança, como receber cusparadas de dinossauros ou achar que a espada do guerreiro está saindo da tela. Se você quer emoções bobalhonas desse tipo, vá para um parque de diversões, não para o cinema.
“Ah, mas há diversões bobalhonas no cinema também”, alguns dirão. Várias. Dúzias e mais dúzias na verdade. Mas a pergunta permanece: em que essas diversões bobalhonas cinematográficas (Transformers, estou olhando para você!) se beneficiaram do 3D? Pedaços voando em sua direção? Batalhas em que parece que você está participando delas? Novamente voltamos à minha sugestão: vá para um parque de diversões, pois é isso que você quer, não cinema.
Estou sendo radical?
Talvez. Mas, considerando a quantidade de filmes lançados em 3D que sou obrigado a engolir versus aqueles em que o 3D realmente fazem algum tipo de diferença, preferiria o banimento completo da tecnologia, junto com os celulares de gente cretina que acha que aquelas telas enormes não atrapalham ninguém no escuro do cinema. É que o 3D virou a maneira de Hollywood gastar pouco e ganhar bem mais dinheiro. E, se o 3D nativo – filmes efetivamente filmados com câmeras 3D – é algo caro e mais trabalhoso sob o ponto de vista técnico, o 3D convertido é razoavelmente barato, tornando-o uma opção atraente para basicamente todos os lançamentos dos estúdios. E essa conversão em 3D, via de regra, é feita em filmes que não foram pensados originalmente em 3D, gerando resultados abissais em termos de qualidade.
Minha lista pessoal dos únicos filmes que merecem ser assistidos em 3D
Sou um cara rabugento (está até na minha biografia aqui do site) e fico que nem o Zé Barnabé, resmungando toda vez que sou obrigado a ver um filme em 3D. Mas, algumas raríssimas vezes – as proverbiais exceções que confirmam a regra – acabo de surpreendendo com o uso do 3D em algumas obras e acabo tendo que dar o braço a torcer para o valor (limitadíssimo, ainda) da tecnologia.
Querem saber que filmes são? Então é só continuar lendo. Mas notem que eles estão apenas em ordem de lançamento, não de preferência.
1. Avatar (2009)
Justificativa: Única e exclusivamente histórica. Esse é o filme que fez o 3D deslanchar e, apesar de ele ter visuais realmente impressionantes, especialmente nos voos, Cameron ainda estava experimentando e erra diversas vezes com a profundidade de campo. Esse filme está quase saindo da minha lista.
2. A Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010)
Justificativa: Aqui, o 3D é usado por Werner Herzog para fazer algo que nenhuma outra tecnologia nos permite, que é ver as concavidades e os relevos das pinturas rupestres da caverna de Chauvet, nunca aberta ao público em geral.
3. Pina (2011)
Justificativa: Aqui sim podemos falar de imersão. A câmera esteroscópica de Wim Wenders quebra a barreira entre a tela e o espectador e nos faz participar dos fantásticos números de dança que povoam o filme.
4. A Invenção de Hugo Cabret (2011)
Justificativa: Faz parte da narrativa. O filme conta a história do cinema pelas lentes de Scorsese e ele usa o 3D para exemplificar a estupefação e maravilhamento diante de uma nova tecnologia. Seu efeito em 3D funciona como o equivalente do que as pessoas sentiram quando os primeiros filmes passaram a ser projetados em telonas.
5. Gravidade (2013)
Justificativa: Em poucas palavras, esse é o melhor exemplo de narrativa que se beneficia quase 100% do 3D. A profundidade de campo é infinita e o 3D aumenta o sentimento de solidão ao mesmo tempo que nos permite uma visão intimista do que está acontecendo.
Menções Honrosas (que signfica que o 3D é bonitinho e tal, mas ainda assim dispensável):
1. Up: Altas Aventuras (2009) – Discreto e eficiente.
2. Coraline e o Mundo Secreto (2009) – Envolvente e delicado.
3. Como Treinar o Seu Dragão (2010) – Excitante e pouco intrusivo.
4. Residente Evil 5: Retribuição (2012) – Realmente bem pensado.
5. O Grande Gatsby (2013) – Esplendoroso.
No entanto, aparentemente, a galera adora “ver em 3D”, mesmo tendo que suportar aqueles óculos tenebrosos que escurecem a tela e diminuem o campo de visão. Mas acontece que todo mundo se esquece que nossa visão já é, fundamentalmente, em 3D. Façam um experimento simples: tapem um olho e percebam como vocês perdem a noção de profundidade. Não fica tudo “achatado”, no mesmo “plano”? Pois bem, os dois olhos funcionam como duas câmeras (a base da tecnologia 3D) e acrescentam profundidade ao que vemos. Capturar essa profundidade e entender que o que vemos está em “camadas” é o 3D do cinema. Ou seja, tecnicamente, o 3D em filmes é um completo e absoluto desperdício de dinheiro para deslumbrar o público que é tratado como gado.
E antes que alguém venha aqui se dizendo ofendido pois chamei quem gosta de 3D de, hum, bem… bovino, não fiquem tristinhos. Voltem rapidamente ao primeiro parágrafo e vocês verão que fui cuidadoso ao falar das “pessoas que gostam sem reservas de filmes em 3D”. Sem reservas é a expressão chave, caso o negrito não tenha sido pista suficiente. Não há problema em alguém gostar genuinamente do 3D. O problema está no raciocínio de gado, que só segue quem está na frente, sem restrições ou auto-crítica. É a mesma coisa dizer que gosta de Transformers (lá vou eu de novo implicar com as obras-primas do mestre Michael Bay) porque o filme é muito bom de verdade e que fez muito dinheiro, sem conseguir identificar os problemas óbvios da franquia.
Aceito quem gosta do 3D, mas não quem gosta do 3D cegamente (bem, até vai se você tiver 8 ou 9 anos de idade). Primeiro, há que se separar o joio do trigo e identificar os filmes-ratoeira. Sair de Fúria de Titãs 2 dizendo que o 3D do filme é a 8ª Maravilha do Mundo deveria levar ao banimento do cinema por 6 meses. Não reconhecer que o 3D só é bem feito quando sabe trabalhar a profundidade de campo (não, não vou explicar o que é isso) para permitir uma visão sem obstrução dos planos é o equivalente cinematográfico de não reconhecer que vinho em caixa de papelão é ruim.
E, como o 3D não foi criado por uma necessidade artísticas e sim econômica e, uma vez comprovado seu sucesso, foi estuprado de todas as formas possíveis pela indústria do entretenimento, o que temos, hoje em dia, é um dilúvio de filmes que usam a tecnologia da maneira para irresponsável possível, tudo para arrancar uns trocados a mais dos espectadores mais, digamos, crédulo. E que fique claro: não estaria aqui reclamando sobre o assunto se o 3D não tivesse tomado de assalto as telas do mundo de maneira chutar para o escanteio os filmes que não são em 3D. Se houvesse a verdadeira possibilidade de escolha, maravilha. O “crédulo” poderia continuar gastando seu suado dinheirinho para usar óculos no escuro e o menos crédulo poderia continuar vendo filmes da maneira “antiquada”.
A bola foi levantada. Agora está na hora de vocês, leitores, cortarem!