Home Colunas Plano Polêmico #56 | Ficções Não Têm Obrigação com Exatidão Histórica

Plano Polêmico #56 | Ficções Não Têm Obrigação com Exatidão Histórica

Chora mais, Clio!

por Luiz Santiago
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Este Plano Polêmico tomou forma no calor de minha análise sobre Gladiador (2000), uma reação contrária às visões que reduzem o valor do filme unicamente pela presença do que chamam de “imprecisões históricas“. A questão, contudo, faz parte da minha longa defesa da distinção entre a representação da realidade e a liberdade artística. Houve um tempo, na juventude, em que eu acreditava que filmes históricos precisavam refletir fielmente os eventos que retratavam. Mas, com o tempo, amadurecemos, estudamos, aprendemos e passamos a enxergar a criação artística com mais profundidade. É claro que existem exercícios de fidelidade interessantíssimos de se apreciar (a representação de um feudo na Alta Idade Média por Ingmar Bergman, em A Fonte da Donzela, por exemplo); assim como existem interessantes exercícios de identificação das mudanças históricas realizadas por diretores em seus projetos. Um filme, contudo, não deve servir como veículo de escrutínio comparativo com a realidade, pois ele não foi feito para isso .

Qualquer ficção histórica (seja ela cinematográfica, televisiva, literária, teatral, quadrinística, não importa!) tem como objetivo entreter o público. Não interessa o tanto de pesquisa a fontes reais, consultores capacitados, e “atenção aos detalhes” que um cineasta aplicou ao projeto. Todo produto artístico que adapta um momento histórico será, antes de mais nada, um produto artístico. A realidade, nesses casos, é um guia sugestivo que terá níveis diferentes de rigor — dependendo de quem realiza a obra — mas nunca será plena porque nenhuma peça de ficção se propõe substituir o estudo formal da História, nem representar fatos de maneira definitiva. Isso não acontece nem mesmo nos documentários, imaginem nas ficções!

Essa “Síndrome de Heródoto Arrasado” chega a tal ponto que a qualidade de alguns filmes é negada ou diminuída unicamente pelo fato de “não serem historicamente corretos”, como se essa “fidelidade histórica” fosse uma obrigação inerente à ficção cinematográfica. Salvo em casos em que a etnia de figuras históricas é fundamental para a essência da narrativa — onde a identidade étnica é inseparável das ações, das escolhas e das consequências vividas pelo personagem –, todo evento histórico pode ser adaptado por uma equipe de produção para tornar o roteiro mais cativante, apresentando, assim, um recorte específico de tempo, ações e espaço ajustado à proposta da película. A realidade histórica, em sua forma pura, é muitas vezes insuportável. É imprescindível, portanto, que os roteiros construam seu próprio universo sobre os fatos conhecidos, traçando um melhor caminho de narração. Claro que isso nem sempre dá certo, em termos de qualidade, mas esta é uma análise qualitativa da obra, não um cosplay blasé de João Kleber tentando transformar a Sétima Arte no programa Teste de Fidelidade.

Observem que há filmes que alteram eventos históricos movidos pela manipulação ou pelo revisionismo negacionista; mas também há aqueles que fazem ajustes para enfatizar um sentimento, uma personalidade, uma perspectiva ou uma interpretação particular dos fatos. Em outras palavras, existem alterações que enriquecem e outras que empobrecem a narrativa. Há também uma intenção propagandística em ação; e, nesse contexto, é a própria propaganda e sua elaboração estético-narrativa que se tornam o foco da crítica. Ao criar arte, por pior que ela seja, o artista pode manipular a história o quanto quiser. Numa segunda etapa, numa outra conversa, virão as análises de qualidade, proposta ideológica, execução de ideias e até mesmo a intenção manifesta em diversas camadas pela direção, podendo ter consequências tanto positivas quanto negativas, dependendo da habilidade com que foi executada e da sua adequação à proposta original. Leiam alguns exercícios simples, neste padrão, nas críticas de Hamilton (2020), Marighella (2021), Emancipation (2022), Golda (2023) e Virgínia e Adelaide (2024) — só para citar filmes de safras próximas à escrita desse Plano Polêmico. 

Produções audiovisuais devem ser vistas, por exemplo, como um complemento analítico, funcionando tanto como fonte de entretenimento quanto de debate sobre abordagens históricas, discussão de conteúdo, construção de contextos imagéticos, e abertura para novos caminhos de pesquisa. Além disso, podem proporcionar o contato com personagens, eventos, autores e situações reais que, posteriormente, podem ser estudados e analisados além da ficção. Cinema não substitui o Ensino Fundamental ou Médio, a literatura acadêmica respeitada, a formação oficial ou informal e os debates honestos dentro da arte de Clio.

Não é através do cinema que você vai “aprender História”. Através dele você poderá viajar por versões da realidade; conhecer inúmeras interpretações dos fatos ou ter um primeiro contato com personalidades e acontecimentos que antes lhe eram desconhecidos. Mas nunca se engane ao pensar que um filme ou série, mesmo quando inspirado em personagens reais ou em eventos significativos para nossa civilização, tenha como propósito ser “fiel” à fonte original. E sejamos francos: você jamais seria capaz de assistir a um filme “fiel” à realidade, assim como não consegue sequer acompanhar com fidelidade as notícias do dia em sua própria vida, simplesmente porque a experiência seria detestável.

Ao assistir a um filme, lembre-se de que você não está testemunhando a história de forma literal, mas mergulhando numa interpretação única, forjada pela visão criativa de roteiristas, diretores e um time imenso de outros artistas. Em vez de buscar a verdade crua na tela, permita-se abraçar a ficção histórica e julgá-la pelo que fez com a proposta. Deixe o cinema ser cinema! A história real estará intacta, do lado de cá da tela, quando a sessão terminar. Não precisa chorar por isso.

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Em tempo: esse mesmo problema acontece em ficções que envolvem ciências como Biologia, Astronomia, Física, Geologia, Matemática, e por aí vai. Eu já vi pessoas achando-se muito superiores ao passar horas tentando provar que Perdido em Marte (coitado do Ridley Scott, não tem um minuto de paz!) é “ruim” porque apresenta “inconstâncias científicas”. Filmes sobre engenharia aeroespacial, fenômenos naturais e profissões específicas são vasculhados milímetro a milímetro para terem seus “erros” expostos ao público como uma espécie de “denúncia de um serviço mal feito“; assim como sua qualidade questionada por não representar aquela ciência específica da forma que os seus profissionais estudaram para fazê-lo. Consideradas as particularidades de cada área, todos os argumentos que apresentei para a História (que é a MINHA disciplina), podem ser aplicados diretamente aqui. A telona não é a extensão de um laboratório e ninguém liga para o cálculo exato da trajetória de um disco voador na cena final de um filme. Apenas descansem, Cine-Pitagóricos! Descansem. 

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