Este Plano Polêmico tomou forma no calor de minha análise sobre Gladiador (2000), uma reação contrária às visões que reduzem o valor do filme unicamente pela presença do que chamam de “imprecisões históricas“. A questão, contudo, faz parte da minha longa defesa da distinção entre a representação da realidade e a liberdade artística. Houve um tempo, na juventude, em que eu acreditava que filmes históricos precisavam refletir fielmente os eventos que retratavam. Mas, com o tempo, amadurecemos, estudamos, aprendemos e passamos a enxergar a criação artística com mais profundidade. É claro que existem exercícios de fidelidade interessantíssimos de se apreciar (a representação de um feudo na Alta Idade Média por Ingmar Bergman, em A Fonte da Donzela, por exemplo); assim como existem interessantes exercícios de identificação das mudanças históricas realizadas por diretores em seus projetos. Um filme, contudo, não deve servir como veículo de escrutínio comparativo com a realidade, pois ele não foi feito para isso .
Qualquer ficção histórica (seja ela cinematográfica, televisiva, literária, teatral, quadrinística, não importa!) tem como objetivo entreter o público. Não interessa o tanto de pesquisa a fontes reais, consultores capacitados, e “atenção aos detalhes” que um cineasta aplicou ao projeto. Todo produto artístico que adapta um momento histórico será, antes de mais nada, um produto artístico. A realidade, nesses casos, é um guia sugestivo que terá níveis diferentes de rigor — dependendo de quem realiza a obra — mas nunca será plena porque nenhuma peça de ficção se propõe substituir o estudo formal da História, nem representar fatos de maneira definitiva. Isso não acontece nem mesmo nos documentários, imaginem nas ficções!
Essa “Síndrome de Heródoto Arrasado” chega a tal ponto que a qualidade de alguns filmes é negada ou diminuída unicamente pelo fato de “não serem historicamente corretos”, como se essa “fidelidade histórica” fosse uma obrigação inerente à ficção cinematográfica. Salvo em casos em que a etnia de figuras históricas é fundamental para a essência da narrativa — onde a identidade étnica é inseparável das ações, das escolhas e das consequências vividas pelo personagem –, todo evento histórico pode ser adaptado por uma equipe de produção para tornar o roteiro mais cativante, apresentando, assim, um recorte específico de tempo, ações e espaço ajustado à proposta da película. A realidade histórica, em sua forma pura, é muitas vezes insuportável. É imprescindível, portanto, que os roteiros construam seu próprio universo sobre os fatos conhecidos, traçando um melhor caminho de narração. Claro que isso nem sempre dá certo, em termos de qualidade, mas esta é uma análise qualitativa da obra, não um cosplay blasé de João Kleber tentando transformar a Sétima Arte no programa Teste de Fidelidade.
Em tempo: esse mesmo problema acontece em ficções que envolvem ciências como Biologia, Astronomia, Física, Geologia, Matemática, e por aí vai. Eu já vi pessoas achando-se muito superiores ao passar horas tentando provar que Perdido em Marte (coitado do Ridley Scott, não tem um minuto de paz!) é “ruim” porque apresenta “inconstâncias científicas”. Filmes sobre engenharia aeroespacial, fenômenos naturais e profissões específicas são vasculhados milímetro a milímetro para terem seus “erros” expostos ao público como uma espécie de “denúncia de um serviço mal feito“; assim como sua qualidade questionada por não representar aquela ciência específica da forma que os seus profissionais estudaram para fazê-lo. Consideradas as particularidades de cada área, todos os argumentos que apresentei para a História (que é a MINHA disciplina), podem ser aplicados diretamente aqui. A telona não é a extensão de um laboratório e ninguém liga para o cálculo exato da trajetória de um disco voador na cena final de um filme. Apenas descansem, Cine-Pitagóricos! Descansem.