O cinema possui imenso impacto na vida cotidiana e isso não é novidade alguma. Há tempos as discussões sobre como personagens, conflitos e situações dramáticas em geral se infiltram na realidade e moldam a maneira como as pessoas interagem em sociedade. Diante do numeroso painel de ilustrações para estas afirmações, resolvi elencar algumas poucas que pude vivenciar ao longo de minha experiência como cinéfilo, leitor e, posteriormente, crítico de cinema. Basta lembrar do caso envolvendo o atirador durante uma sessão de Clube da Luta, de David Fincher, aqui no Brasil, situação que deixou muitas pessoas com medo de frequentar uma sala de cinema novamente. Culpa da violência nos filmes? Wes Craven, em Pânico 2, juntou-se ao roteirista Kevin Williamson para estabelecer de maneira formidável tal discussão. Quem viveu a curiosa década de 1990 antenado na televisão aberta deve se lembrar do Cine Trash e dos filmes exibidos pelo SBT, dentre eles, Brinquedo Assassino 2, repetido exaustivamente.
Certa vez, numa dessas exibições, duas crianças brincavam e assistiam ao filme. De repente, uma delas resolveu desferir golpes na outra com objeto pontiagudo, criando uma polêmica na televisão, um tópico temático que teve como ponto central, os desdobramentos da violência cinematográfica na vida real. Segundo depoimento das testemunhas, a criança responsável se inspirou em cenas do filme de terror para promover a sua “brincadeira”. Estes casos, em especial, vivenciados ao longo de minha formação, são apenas alguns dos milhares de exemplos que transformariam esta breve reflexão numa gigantesca tese de doutorado. Mas não é o caso. Trouxe os dados apenas como processo introdutório para pensarmos os motivos que levaram o cineasta Steven Spielberg e o escritor Peter Benchley ao arrependimento diante da criação de Tubarão, um filme que, tal como os exemplos mencionados, teve grande impacto ao ser lançado, estabelecendo o medo das pessoas ao entrarem na água na praia. Fosse apenas esse o problema, tudo bem, mas especialistas apontam que tais histórias reforçaram outro comportamento, extremamente negativo para o meio ambiente: a caça aos tubarões.
Em Tubarão, temos o seguinte mote: num verão onde a população de Amity espera a chegada de turistas para badalação, um tubarão branco de enormes proporções aterroriza as praias com ataques violentos e assustadores, situação que coloca o xerife Brody, um pesquisador de vida marinha e um caçador de tubarões na caça ao animal misterioso que tem causado pânico e desequilibrado os planos do prefeito e dos demais comerciantes da região, temerosos da imagem negativa da região para os negócios. Metáfora do Watergate, tópico temático para debater a situação de abertura das praias na época da mais recente pandemia, dentre tantas outras reflexões passadas e presentes, Tubarão é um filme que após quase cinquenta anos de seu lançamento, ainda gera muitos debates e polêmicas, além de ter estabelecido um segmento dentro de outro segmento, isto é, os filmes com tubarões assassinos no horror ecológico, um subgênero do cinema que geralmente traz os seres humanos diante de ameaças selvagens, tais como ratos, aranhas, felinos, serpentes, etc.
Confronto entre a humanidade e as forças da natureza já existiam muito antes, mas o filme baseado no romance de Peter Benchley estabeleceu um formato ainda recorrente na contemporaneidade, uma estrutura dramática demasiadamente copiada. Ademais, este clássico moderno que moldou a publicidade e propaganda, bem como as estratégias de lançamento, se apresentou como um fenômeno cultural tão abrangente e magnético que adentrou nas discussões sobre como o cinema pode impactar na vida real, causando alguns estragos, como o caso desta reflexão sobre desequilíbrio ambiental. Em Os Dentes do Diabo, por exemplo, a jornalista Susan Casey descreve as tentativas fracassadas de alguns parques aquáticos, inclusive o suntuoso Sea World, ao trazer a espécie para os seus aquários, animais que pereceram diante da estrutura adversas para a sua sobrevivência. Esse imaginário deturpado em torno dos tubarões também pode ser refletido em Rebelião de Tubarões, 10 Anos em Busca dos Grandes Tubarões, A Isca, O Olhar da Vítima, Mar de Sangue, Mitos e Verdades Sobre Ataques de Tubarões no Recife, dentre outras publicações analisadas por aqui.
Mas, afinal, Steven Spielberg se arrepende de ter feito Tubarão?
Recentemente, o cineasta responsável por conduzir este marco da história do cinema, alegou numa entrevista radiofônica do grupo BBC, ter se arrependido do filme pelo impacto negativo que a aventura teve na dizimação dos tubarões brancos, haja vista a deturpação oriunda de alguns interessados em pesca que iniciaram uma cruzada contra esta espécie, tendo o animal morto como um troféu. Spielberg não traz essa informação em tom de lamentação aleatoriamente, mas disse conhecer as pesquisas no campo dos estudos biológicos que afirmam o aumento da pesca predatória contra estes ferozes animais marinhos após o lançamento do filme em 1975. Com o advento do filme houve a potencialização desta ideia, algo já germinado pelo romance de Peter Benchley que serviu de base para o roteiro da narrativa cinematográfica. São histórias que colocam os tubarões como seres vingativos, à espreita para aniquilar humanos na praia. Em linhas gerais, as reportagens sensacionalistas da época alegaram que o diretor se arrependia de ter feito o filme, quando na verdade seu depoimento é sobre renegar o impacto do filme, não exatamente a obra-prima em si, um exercício intertextual formidável com o clássico Moby Dick, de Herman Melville, bem como as conexões com temáticas do horror ecológico predecessoras.
Para Oliver Crimmem, curador do Museu de História Natural de Londres, Tubarão de certa maneira moldou a percepção da humanidade diante destas criaturas, consideradas inimigos dos humanos, como feras selvagens em busca de vingança. Vagamente inspirado em incidentes ocorridos em 1916 na costa de Nova Jersey, o livro e o filme retratam um processo de antropomorfização da criatura, aparentemente em busca de certos indivíduos, como se estivesse programada para matar determinados humanos ao longo da trama. O problema, aqui, não é o material audiovisual ou literário, mas a ignorância humana, sempre a deturpar valores e utilizar pontos de partida ficcionais para legitimar as suas escolhas cruéis. É o que podemos confirmar no depoimento de George Burgess, diretor do Centro de Pesquisa de Tubarões da Flórida, especialista que também delineou a busca por tubarões brancos como troféus após a massificação do filme nos cinemas, algo que ele chamou de “corrida coletiva de testosterona”.
Neste processo, não foi apenas Steven Spielberg que se diz arrependido de ter realizado o clássico moderno que é um grande ponto em sua extensa carreira. O escritor Peter Benchley, autor do romance homônimo e também colaborador do roteiro de Tubarão, tornou-se um embaixador da causa, defensor ferrenho dos tubarões, chegando a não fazer questão do seu nome nos créditos da narrativa cinematográfica supostamente responsável por aniquilar os tubarões brancos e coloca-los na listagem das espécies em risco de extinção. No entanto, as pesquisas em torno dos impactos do filme e do livro apontam que as obras são percentuais minúsculos diante de outro grande problema ambiental: a pesca excessiva em território asiático, para a famosa sopa de barbatana de tubarões, além da captura acessória na pesca comercial.
Sendo assim, não podemos afirmar que o livro e o filme sejam grandes responsáveis por esta celeuma ambiental, mas deixaram a sua parcela considerável. Anteriormente ao sucesso de bilheteria de 1975, a imaginação da sociedade em relação aos tubarões brancos era diferente, mas, ao contemplar uma criatura vingativa e devoradora de humanos, o imaginário em torno destas feras marinhas estabeleceu medo, repulsa, pavor, dentre outras palavras-chave que ajudaram nas já mencionadas cruzadas em prol da destruição deste mal. Neste processo, confirmamos o potencial da ficção e suas influências ao urdir o tecido da vida cotidiana, nalgumas vezes de maneira positiva, moldando escolhas, gerenciando comportamentos, noutras de maneira negativa, potencializando as ações de quem utiliza do material ficcional para justificar as suas ações, como é o caso dos caçadores de tubarões, seres humanos que se portam, sem sombra de dúvidas, como a escória de nossa espécie, mais irracional que as criaturas selvagens.