Esclarecimento inicial: há duas cores no texto abaixo, a preta que representa o que eu, Ritter Fan, escrevi, e a verde que representa o que meu colega Luiz Santiago escreveu. A razão disso é que o artigo começou como algo mais de cunho pessoal meu sobre o fim do serviço de aluguel de DVD do Netflix e o que ele poderia representar e, em seguida, ganhou uma dimensão maior quando o Luiz viu o que eu estava escrevendo e se interessou. Sugeri uma colaboração, mas, para não perder o tom da pessoalidade do início do texto, decidimos manter separado o que escrevemos, quase como se estivéssemos dialogando. Eis o resultado.
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Na manhã do dia 29 de setembro de 2023, o Netflix remeteu seu último DVD, uma cópia da versão de 2010 de Bravura Indômita, encerrando definitivamente, com isso, o serviço de locação por assinatura de discos digitais que foi o pontapé inicial da empresa em 1998, com Os Fantasmas se Divertem, bem antes de começar a tornar-se a gigante de streaming, a partir de 2007. Trata-se de mais um prego no caixão da mídia física que, com a feroz concorrência online de conteúdo audiovisual, parece fadada a ser algo de nicho, com poucas empresas ainda lançando obras dessa forma, como é a sempre constante e sempre excelente Criterion e outras também muito boas como Kino Lorber e Arrow Video. Já no Brasil, quem resiste nessa seara, tentando manter a variedade e qualidade dos lançamentos, é a Versátil.
De agosto de 2003 a agosto de 2004, eu tive o privilégio de fazer um mestrado em Los Angeles (onde, agora, minha filha mais nova estuda Cinema – sim pai orgulhoso!) e foi lá que eu conheci e me viciei nos famosos “envelopes vermelhos” com DVDs que eram remetidos automaticamente pelo correio comum pelo Netflix a seus assinantes seguindo uma lista criada por cada um, na medida em que eles eram devolvidos. Não havia prazo para ficar com os discos e a quantidade de discos por vez poderia variar – se não me falha a memória – entre um e oito, dependendo do nível da assinatura.
Como era (e ainda sou) consideravelmente um bicho do mato, o retorno à vida de estudante mais de uma década depois de me formar na faculdade dividiu-se naturalmente entre estudar e ver filmes e eu fiz questão de me organizar de maneira que, de segunda a sexta-feira à tarde, eu focava exclusivamente nos estudos e, do final do dia de sexta até tarde no domingo, minha vida era dedicada ao audiovisual, seja vendo filmes no cinema – em Los Angeles e Nova York, todos os filmes, por mais obscuros que fossem, eram e ainda são lançados nos cinemas, sem contar com a variedade de cinemas dedicados a passar apenas clássicos das mais diferentes naturezas -, seja assistindo em DVD via assinatura do Netflix, com um catálogo gigantesco com, suspeito, a integralidade dos títulos lançados nessa mídia nos EUA. Uma época mais simples em minha vida, sem dúvida, mas memorável e muito divertida desse meu jeito ermitão de ser.
Mas rebobinando um pouco – ou muito -, o fim do serviço de assinatura de DVDs do Netflix me chamou atenção não só porque eu tive a oportunidade de assiná-lo (houve serviços parecidos no Brasil e eu até assinei um deles quando voltei, mas nenhum se comparava à facilidade e velocidade do original), mas também porque é um marco temporal na oferta de obras audiovisuais. Ou mais um marco temporal pelo qual eu passei e certamente muitos leitores aqui do site também passaram. Afinal, quando jovem (eu já fui jovem?), eu era rato de locadora desde a finada Vídeo Clube do Brasil, no Rio de Janeiro, que era chique e tinha uma bolsinha de plástico azul para levar duas fitas de VHS de cada vez, com a loja tendo um catálogo considerável de fitas importadas e então ainda não lançadas no Brasil.
Quando o VHS acabou quase que imediatamente com a chegada avassaladora do disco digital – antes houve uma fase intermediária do disco ótico semianalógico prateado batizado de LaserDisc, do qual fui adepto e até hoje tenho o caixotão da Trilogia Original de Star Wars na versão anterior às mexidas hereges de George Lucas -, o acesso a eles tornou-se mais fácil e prático, com as locadoras logo mudando seus catálogos e as distribuidoras nacionais aumentando exponencialmente a oferta de obras audiovisuais. No entanto, as próprias locadoras foram ameaçadas de morte pela chegada hegemônica da Blockbuster (sempre detestei, por só oferecer os filmes mais procurados, com um catálogo total pífio e funcionários que não faziam ideia do que estavam oferecendo), tornando-se algo mais de nicho na medida em que as lojas enormes da concorrente azul e amarela tomava conta de tudo. A fase seguinte foi justamente a do Netflix competindo diretamente com a Blockbuster que também sofria uma crise gerencial séria nos EUA, levando-a a seu fim lá pela segunda década dos anos 2000.
Não tenho intenção alguma de ser saudosista ou nostálgico aqui, ainda que eu verdadeiramente sinta saudades de caçar fitas de VHS e DVDs nas locadoras de bairro. Nada disso. Temos sempre que olhar para a frente e, na medida do possível, absorver os passos evolutivos da melhor forma. Meu único senão ao que podemos chamar do quase-fim da mídia física que o encerramento de serviços como o de locação por assinatura do Netflix inevitavelmente representa, é que, com isso, a oferta de obras audiovisuais cai, como caiu, e continuará caindo vertiginosamente. Mas Ritter, como assim cair se os serviços de streaming não param de proliferar e de produzir uma infinidade de obra novas facilmente acessíveis por todos, alguns podem me perguntar.
A resposta para isso é bem simples. Enquanto de fato os serviços de streaming inauguraram uma nova era de produção audiovisual, criando oportunidades vastas para uma enorme quantidade de filmes e séries novas serem produzidos e colocados a poucos cliques de distância do usuário, os títulos de catálogo diminuíram absurdamente. O serviço de DVDs do Netflix era MUITO MAIS VASTO E COMPLETO do que o serviço de streaming do Netflix jamais foi (e, hoje em dia, ele é muito menos amplo do foi no começo). E o mesmo vale para as locadoras aqui no Brasil que albergavam todos os títulos lançados localmente. Com o advento do streaming e a complicada questão contratual e financeira envolvendo obras passadas, apenas uma pequeníssima fração do que antes era oferecido fisicamente é oferecido online (não vou entrar na discussão sobre a oferta ilegal de obras audiovisuais, pois essa é uma outra conversa, até porque a vasta maioria daqueles que baixam filmes ilegalmente não baixam os títulos de “catálogo profundo” que estou falando aqui, mas sim os blockbusters que acabaram de sair no cinema ou no streaming).
Basta fazer um teste muito rapidamente e tentar encontrar filmes (especialmente não americanos) de priscas eras, como anos 30, 40 e 50 nos serviços de streaming. Normalmente o que vemos são os mega-clássicos das respectivas décadas e não aqueles filmes de cunho mais autoral ou que passaram despercebidos pela bilheteria ou pela época de premiações. Encontrar filmografias completas até mesmo de grandes e famosíssimos diretores como Alfred Hitchcock é uma tarefa literalmente impossível, algo que se tornou ainda mais difícil com a proliferação de serviços de streaming que obriga o espectador que quer ter acesso a tudo a assinar tanta coisa que, no final, a conta é altíssima e impagável por um ser humano normal. O mesmo vale para as obras de Akira Kurosawa, Ingmar Bergman, Agnès Varda, Andrei Tarkovski, Federico Fellini, só para citar alguns pouquíssimos.
E o pior é que a tendência é que, com o interesse do público sendo voltado a lançamentos e “obras famosas“, algo que os estúdios e distribuidoras também têm culpa, os filmes e até séries que não caem nessas duas categorias fiquem fadadas ao ostracismo e esquecimento na ciranda corporativa, não vendo a luz do dia sequer em novos lançamentos em discos digitais e permanecendo perdidos nos arquivos das empresas. E assim nasce mais um capítulo da moldagem do gosto das massas. No grande plano das coisas, à parte aspectos muito particulares de preferências artísticas de cada indivíduo, a indústria de distribuição de filmes tem forçado a percepção e inclinação das plateias para um determinado tipo de produção, ritmo de filme ou formato de se contar histórias. As pessoas não gostam de filmes contemplativos porque não possuem um “sentimento nobre de entendimento cinematográfico” ou porque a indústria do cinema injetou nelas, a vida inteira, doses cavalares de velocidade, explosões, eventos mirabolantes e sucessão de reviravoltas? Se você vai ao cinema e só tem comédias brasileiras escrachadas sendo exibidas; se você liga a TV e só tem produções nacionais com elenco que nasceu depois de 2001, falando palavrão e se beijando 90% do tempo; e se o streaming não se importa em exibir a grandiosa variedade do cinema brasileiro de ontem e de hoje, que tipo de pensamento generalizado você acha que a população terá sobre o cinema do próprio país?
Essa tendência do público voltada para “obras famosas“, que o Ritter cita, é um caminho de empobrecimento da experiência cinematográfica que, infelizmente, vicia. E alguém pode querer defender a indústria que oferta apenas o óbvio e a superfície, dizendo: “o público não consome esse tipo de filme; o público não gosta desse tipo de filme!“. E a pergunta é: por quê? Isso fala quase exclusivamente de acessibilidade e raramente de gosto. Afinal, gosto artístico é construído! Se você passa a vida inteira vendo tiroteios com câmera em convulsão e 500 ambientes aparecendo a cada 10 minutos de filme, achará um martírio assistir a um filme de câmara, de combustão lenta e com mais significados nas entrelinhas do que na superfície. Sob esta visão, Os Oito Odiados torna-se um filme intragável. Se a sua referência para filmes de bandidos são as produções pipoca do Netflix e as franquias calcadas em estripulias de gangues e heróis salvadores do dia (que não deixam de ser divertidas, mas não são as únicas coisas potencialmente interessantes que o cinema produz, não é mesmo?), jamais conseguirá passar da primeira hora de O Irlandês. E isso não é coisa de um “público burro e sem cultura“. A grande questão é que este público nunca ouviu falar de algo diferente. Nunca teve acesso a um tipo de produção como esta. Não teve a oportunidade de adicionar em sua experiência artística, um estilo de obra cinematográfica fora do “jeitão Hollywood de fazer cinema“. De quem é a culpa? Quem é que molda esse gosto? Como eu vou gostar de algo que eu sequer sei que existe? Como eu vou aceitar o Homem de Ferro do Wajda, se o único Homem de Ferro que eu vi no cinema e nos streamings foi o da Marvel?
Em outras palavras, não é uma questão de saudosismo ou de dizer bobamente algo como “na minha época era melhor“, mas sim da boa e velha oferta. Somos inundados por novas ofertas quase diariamente a ponto de nada mais ter aquele valor por ser especial e único e esquecemos – ou nem ouvimos falar – de uma imensa variedade de obras que simplesmente não estão mais acessíveis por aí. E o impacto disso para a memória cinematográfica das novas gerações é tremendo. Não é exagero dizer que um pedaço da História do Cinema está se perdendo. Porque a oportunidade de conhecer, mesmo que por acidente (quem nunca, numa prateleira de locação?) simplesmente não existe mais. E usarei aqui a mesma defesa que faço da necessidade de as escolas continuarem trabalhando os clássicos da literatura em sua grade. Se não tiver essas obras colocadas em sua frente naquele momento da vida, quando é que a maioria das pessoas ao menos se interessarão por saber do que se trata essas obras? Afinal, o mundo literário da geração delas é muito diferente. Mas essa raiz, essa base, não pode ser perdida, porque senão perde-se o entendimento da própria arte! Chegaremos, assim, a um ponto de supervalorização de coisas recém-lançadas que apenas requentam ou retrabalham, com novas tecnologias, algo que já se fazia há décadas/séculos, mas que as novas massas só estão encontrando agora e achando que é a verdadeira invenção da roda. Basta ver a avalanche dos puramente embasbacados com terrores da A24 ou longas similares, como se essas temáticas nunca tivessem existido na Sétima Arte. É claro que se você nunca ouviu falar de obras como A Carruagem Fantasma, A Hora do Lobo, Häxan, O Gabinete do Dr. Caligari, Uma Página de Loucura, Onibaba e tantas outras que deram base para o terror contemporâneo, você realmente vai achar que Robert Eggers é um GÊNIO INVENTOR do gênero e, pior ainda, acreditar nessa bobagem chamada “neo/pós-terror“.
O ciclo se fecha com a mesma reclamação de sempre: a oferta. A oportunidade de oferecer às pessoas coisas que não são o óbvio, criando aos poucos uma cultura cinematográfica fora da Disney. Voltando ao exemplo das escolas, não adianta desprezar a literatura do 1º ao 9º ano do Fundamental, e achar que um aluno do início do Ensino Médio vai morrer de amores com Memórias de Um Sargento de Milícias. O livro é ótimo, é hilário, mas se um amplo contato literário fora da farofa não for criado antes, a rejeição é certa. No audiovisual, os exemplos são ainda mais fortes e em maior número, pois atingem mais gente, por muito mais tempo. Variedade não é abrir uma plataforma e ver oitenta ofertas de filmes de ação produzidos nos Estados Unidos após a queda das Torres Gêmeas. Variedade não é ir ao cinema e se deparar com metade das salas exibindo filme de bonequinho (e nenhuma delas no idioma original). Isso não é variedade. E sabem o que é pior? Para a indústria de serviços de streaming (seja de música ou filmes/séries…), não há interesse algum em verdadeiramente democratizar o acesso à variedade artística, mas manter os nichos que se estabeleceram à força de “única oferta“, e, justamente por isso, se tornaram lucrativos.
A reação em cadeia me faz ser pessimista quanto ao futuro. Porque a coisa segue a lógica industrial: o vício num determinado produto artístico é criado, através de um excesso de oferta. Se as pessoas só conhecem aquilo e só têm aquilo para consumir (majoritariamente)… vão consumir e vão se divertir. O lucro sobe. A indústria vai produzir mais e, em futuras atualizações, manterão o mesmo padrão, apenas adicionando discussões e condições sociais do momento, como uma 007 mulher, um Doctor Who negro e gay, Barbies de todos os corpos e etnias, protagonistas indígenas e heróis latinos e asiáticos. Representações das inúmeras variedades humanas são necessárias e importantes, mas nem por um momento podemos nos esquecer que, quando isso vem de uma indústria, a intenção maior nunca será apenas a representação das muitas variedades humanas. Nesse modelo industrial, as produções diferentes são em número muitíssimo menor. Muitos produtores se recusam a investir em ideias que fujam do nicho massivo de proventos. E assim o monstro do “mais do mesmo” garante sua alimentação constante. Ao cabo, a indústria mantém os seus consumidores como ratinhos mortos, numa roda que continua girando e dando muito, muito lucro.
O fim do serviço de DVD do Netflix era inevitável (e durou até bem mais do que eu imaginava que duraria, sendo bem sincero) e o futuro é mesmo o streaming ou, mais amplamente falando, a oferta sob demanda e online de obras audiovisuais, mas fico angustiado quando, extrapolando o status quo atual e projetando-o para daqui a 10, 20 anos, tudo o que teremos para ver serão obras produzidas e lançadas na vizinhança temporal do momento em que clicamos no controle remoto. O presente condena o futuro por esquecer do passado (um problema que não aflige só obras audiovisuais, claro) e nós ficamos culturalmente mais pobres no processo. Será que há saída para isso sem precisarmos recorrer à ilegalidade?
P.s.: Durante a redação conjunta deste artigo, saiu outra notícia triste: a gigantesca rede americana de eletroeletrônicos Best Buy, que sempre dedicou enorme espaço à mídia física de obras audiovisuais, acabou de anunciar que, a partir de 2024, ela não mais oferecerá esses produtos. Isso, aliás, já vem acontecendo há algum tempo no Brasil, pelo menos nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo que, acredito, reflitam o restante do país. Ou seja, menos chances dos poucos discos que são lançados chegarem às mãos dos consumidores e mais uma demonstração de que o futuro é assustador para o resgate das milhares de obras que nem conseguem chegar próximo da superfície da percepção do público em geral.