Home Colunas Plano Polêmico #52 | Auntie Diaries: Notas Sobre um Ativismo Descontextualizado

Plano Polêmico #52 | Auntie Diaries: Notas Sobre um Ativismo Descontextualizado

Sobre trans, viados, pretos, ativismo que não pensa e aproveitadores semânticos.

por Luiz Santiago
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Heart plays in ways the mind can’t figure out.
This is how we conceptualize human beings.
.

No dia em que escrevo este artigo, 19 de maio de 2022, faz exatamente 11 meses desde que eu tomei a mesma estrada para falar sobre o musical Em Um Bairro de Nova York, no artigo Notas Sobre um Ativismo Que Tudo Quer, Mas Nada Reconhece. Naquela ocasião, eu refleti sobre uma questão étnica, apontando o patético discurso dos que realmente acreditavam que um filme de Hollywood iria genuinamente representar todas as nuances antropológicas presentes nos povos latinos. Nem um ano se passou e uma polêmica estruturalmente semelhante se armou nas redes, agora em cima da sensacional canção Auntie Diaries, presente em Mr. Morale & the Big Steppers (2022), o igualmente sensacional disco do rapper americano Kendrick Lamar.

A faixa é uma porrada, como praticamente tudo o que o cantor nos entregou até hoje. É uma composição direta, em termos líricos: fala de dois parentes que se identificam como pessoas trans, duas pessoas de diferentes gerações, com contextos e experiências de transição diferentes e com o eu-lírico da faixa, que é sobrinho de um e primo de outra, contando o que viu, falou, aprendeu, sentiu e ouviu durante os anos em que observou essas mudanças. A produção da faixa, que está no “disco dois” de Mr. Morale, é assinada por Bekon, The Donuts, Balmoris e Beach Noise, que escolheram uma batida simples, lenta e limpa, destacando a voz plácida de Lamar narrando com curiosa entonação em algumas sílabas ao final dos versos. O acompanhamento é engenhoso; sugere imediatamente algo “de outro mundo“, quase uma representação auditiva sci-fi para contextualizar a confusão de ideias, de pronomes e de percepções pelas quais o eu-lírico vai passar ao longo da obra, o que é a mesma sensação que ele pretende transmitir para o público.

Depois dos dois minutos de execução, a base de acompanhamento recebe uma camada que sugere orquestração. Um pouco de eco é adicionado e vemos o cantor elevar pouco a pouco o volume e a intensidade da voz, a partir do terceiro minuto e meio. A batida muda (se intensifica) e o acompanhamento orquestral ganha força, até que tudo é silenciado e Kendrick termina a faixa com uma explosiva autocrítica, referindo-se ao episódio em que ele convidou uma fã (uma mulher branca) para cantar com ele no palco, em um show. A fã cantou a palavra “nigga“. Todo mundo sabe o peso negativo e pejorativo que esta palavra tem nos Estados Unidos, referenciada por 99% das pessoas brancas como “n-word“. Na época, uma discussão tímida e paralela foi levantada sobre o CONTEXTO da situação e apontando que, mesmo Kendrick não tendo feito o “barraco” que muita gente na internet noticiou que ele fez, é evidente que poderia ter levado a situação de uma outra forma. E ele tanto sabe disso, que retoma o episódio ao fim desta canção, tornando ainda melhor e mais crítico algo que já estava em um alto padrão de abordagem.

Por acompanhar de perto a carreira do cantor, por ter escrito sobre a sua histórica obra-prima To Pimp a Butterfly e por ter escrito a quatro mãos (com meu colega Handerson Ornelas) sobre DAMN., vi a polêmica em torno de Auntie Diaries nascer e se desenvolver em diversas redes. Enquanto membros da comunidade trans e outras letras do alfabeto LGBT (eu incluso) elogiaram e reconheceram a fantástica criação do artista, um grupo infelizmente maior do que deveria existir surgiu problematizando de maneira um tanto quanto estranha essa faixa. Cheguei a ver um comentário de alguém dizendo que “se Macklemore tivesse lançado algo assim, todo mundo estaria caindo matando em cima dele“, o que não só é uma afirmação estúpida, como ignora aquilo que todo o restante dos comentários negativos em relação a Auntie Diaries está ignorando: o contexto. Porque contexto é tudo. Não faz sentido pensar que um rapper, de qualquer etnia, espaço ou histórico pessoal que fizesse uma abordagem com esse contexto, tivesse qualquer tipo de condenação massiva, justamente porque o contexto em Auntie Diaries justifica tudo o que os não-contextualizadores estão condenando.

Se a pessoa prestar a atenção, vai perceber que cada estrofe da canção possui um tempo (uma faixa etária) diferente na vida do eu-lírico, e ele vai modificando ou se acostumando a determinados pronomes e situações à medida que o tempo passa. Não há absolutamente nenhuma intenção maliciosa, nenhum “esquecimento disfarçado“, nenhuma proposital e agressiva “nomeação com nome morto” aqui. A poesia que Lamar compôs é uma crônica sob o ponto de vista de uma criança nascida em Compton, no seio de um Universo machista, homofóbico e transfóbico e que, em dado momento de sua vida, até reproduziu muitos desses preconceitos e atitudes segregadoras. Então a obra indica que, a partir de um momento de sua adolescência, ele entendeu de fato o que estava acontecendo e mudou o tratamento em relação ao tio, de modo que quando chegou a vez de a prima revelar-se uma mulher trans, ele já tinha conhecimento e empatia para enfrentar um certo pastor-condenador-de-almas e se colocar como definitivo aliado, não só na teoria, mas no dia a dia, de forma prática.

A impressão que eu tenho é que muitas pessoas não prestam atenção no que consomem antes de lançar alguma condenação barata, isolando ainda mais as pessoas em bolhas intocáveis. Ou nunca tiveram contato com uma poesia; não entendem a construção da narrativa de um eu-lírico; não são capazes de contextualizar a narrativa de uma história em uma música e, principalmente, não conseguem perceber que as imperfeições na exposição dessa mesma história (refiro-me especialmente ao uso trocado de pronomes ou do nome morto de um dos parentes trans, que são os maiores alvos de críticas) fazem parte da mentalidade desse eu-lírico em transformação buscando compartilhar uma fase de sua vida… e da vida de dois de seus parentes. O mais triste de tudo isso é que Auntie Diaries, por mais poderosa que seja, não é uma canção difícil de se interpretar ou mesmo de entender em sua base. Não dá para culpar um vocabulário hermético, não dá para dizer que existem muitas metáforas e que a ideia central não ficou clara. A temporalidade, as fases e as intenções do eu-lírico são cristalinas. E mesmo assim, um pedaço do ativismo enxerga suposta “transfobia” e/ou suposta “homofobia” em uma faixa que é, em absolutamente cada sílaba, o verdadeiro oposto disso.

Como se não bastasse, aparecem junto a esse ativismo que tem preguiça de prestar atenção nas coisas e militam em cima de coisas que dispensam militância, os aproveitadores semânticos com um bolo de estrume no lugar do cérebro dizendo que este é “o troco” que Kendrick recebe por “tentar lacrar” e ceder ao um tal de “discurso globalista“, seja lá o nada que este termo significa. Enquanto isso, muita gente perde, dentre tantas outras coisas, a fantástica reflexão que o músico faz nos versos finais da faixa, colocando em perspectiva o episódio da jovem branca que cantou “nigga” com ele no palco (clara e obviamente num contexto ou intenção 0% racista) e o fato de ele, um homem cis e hetero, falar “viado” e trocar pronomes e nomes de pessoas trans em uma música. Percebem o quão sensacional é o ponto de chegada que Kendrick Lamar estabelece aqui? Um ponto de chegada onde se procura debater, de maneira crítica e autocrítica, a posição de algumas pessoas ao se referirem a outras. E a importância do contexto e da honestidade no discurso, com o autor criticando a própria hipocrisia.

Quando a polêmica é imbecilizada e despropositada, coisas verdadeiramente interessantes e necessárias como estas raramente ganham destaque para ser debatida pela massa. E lá vamos nós em mais um episódio de dois diferentes ramos do ridicularizado tribunal da internet sendo o que sempre foi. Que tempos, minha gente. Que tempos.

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