Home Colunas Plano Polêmico #48 | Faltou Representatividade em Sex and The City?

Plano Polêmico #48 | Faltou Representatividade em Sex and The City?

Uma análise panorâmica da falta de representatividade em Sex and The City.

por Leonardo Campos
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Vamos começar a reflexão sobre as questões raciais em Sex and The City um breve levantamento. Quantos personagens negros podemos acompanhar ao longo das seis temporadas do programa que começou em 1998 e terminou em 2004, antes de ser levado duas vezes ao cinema e agora, ter ganhado um revival? Engajado em escrever a análise da retomada dos personagens em 2021, decidi rever os seis anos da produção e tentar catalogar, detidamente com meu diário de anotações, a passagem de atores e atrizes negros nos 94 episódios que delineiam a trajetória de Carrie, Samantha, Miranda e Charlotte pelas ruas de Nova Iorque. No somatório, o resultado final é frustrante: nenhum momento permitiu a travessia de uma figura ficcional negra que fosse relevante ao longo de todas as temporadas da série que ao ser analisada sob um prisma retrospectivo, apresenta-se problemática, fruto de sua época, uma fase global da televisão que no olhar crítico brasileiro, ganhou o ótimo livro transformado em documentário pelo intelectual Joel Zito Araújo: A Negação do Brasil, produção que refletiu a presença de estereótipos raciais na história das telenovelas brasileiras. Aqui, salvaguardas das devidas proporções, tentarei fazer um levantamento do tipo, para tentar compreender se as críticas acerca da falta de representatividade em Sex and The City são legítimas.

Observe o panorama: o garçom que atende uma das personagens num hotel; uma modelo negra num manancial de colegas brancas durante um desfile no episódio que debate mulheres comuns com garotas que estampam as passarelas e as capas de revistas; o namorado peremptório de Stanford, o melhor amigo gay estereotipado de Carrie, numa badalada festa; os jogadores negros no vestiário do estádio, responsáveis pela volúpia de Samantha que naquele momento, atravessa uma fase sexual sem intensidade, haja vista o pênis minúsculo de seu amado James; uma figurante na aula de Ioga; uma garçonete numa das tantas passagens das protagonistas por sofisticados restaurantes; a cantora de ópera quando Carrie e Charlotte vão ao teatro e a protagonista reencontra Mr. Big com a sua atual esposa, Natasha; a enfermeira que entrega o resultado do exame de HIV para Samantha; o funcionário no set de filmagens que impede Carrie de fumar durante uma pausa na tensa reunião sobre a adaptação de sua coluna para um filme; as travestis que se prostituem na rua e incomodam o sono e a concentração sexual de Samantha; uma modelo sem fala que atravessa o caminho de Carrie durante um desfile. Estes são alguns dos momentos em que personagens negros atravessam os momentos cômicos e dramáticos desta série com viés progressista, mas prejudicada por alguns picos de regressão em suas temáticas sociais, afinal, discutia-se muito bem relacionamentos, mas noutros trechos, questões que pululavam nos debates midiáticos não foram aproveitadas pelos realizadores do programa.

Aos leitores que desejam um melhor aprofundamento do conteúdo da série, deixo como sugestão a leitura da análise mais pormenorizada das seis temporadas. Em linhas gerais, Sex and The City é um programa inspirado nas crônicas publicadas por Candace Bushnell num jornal novaiorquino ao longo dos anos 1990. Darren Star, criador deste universo para a televisão, montou o cenário que inspirou espectadores não apenas nos Estados Unidos, mas ao redor do planeta, estabelecendo discussões sobre sexo, consumo, moda e outros pontos comportamentais. Michael Patrick King entrou logo depois, como um dos produtores mais proeminentes, se mantendo fixo no quadro e adentrando o esquema de tradução para o cinema. Carrie Bradshaw, personagem de Sarah Jessica Parker, narra ao longo das temporadas, as suas aventuras juntamente com as amigas Miranda, Charlotte e Samantha, interpretadas por Cynthia Nixon, Kristin Davis e Kim Cattrall. Elas versaram sobre namoros, obrigatoriedades da sociedade tradicional, pressões no mercado de trabalho, relacionamentos tóxicos, preconceitos com a idade, dentre outros tópicos que ainda permitem reflexões e abrem espaços para debate mais de 20 anos após os primeiros episódios produzidos e exibidos pela HBO. O problema é que pelo olhar diacrônico, a série demonstra muitos problemas de representatividade: os negros, quando aparecem, estão em posição constantemente subserviente ou estereotipada.

Por isso, um questionamento importante: devemos cancelar o programa tal como o proposto por críticos mais acirrados quando debatem a obra de Monteiro Lobato ou produções do cinema clássico que também apresentam falhas representacionais? Não, ao contrário, devemos debater, considerar que era um esquema em todo cenário televisivo da época e no caso de Sex and The City, analisar se a sua retomada ao menos tentou ajustar os problemas estabelecidos no passado. Quando não damos a oportunidade de reflexão, autocrítica e chance para reconhecimento das mancadas alheias, nos situamos na sociedade do ódio e seus vexames constantes, como podemos observar bem na dinâmica de postagens das redes sociais, terreno de manifestações paradoxais que geralmente não querem permitir o diálogo, adentrando logo pelo caminho mais fácil, isto é, o linchamento público e a aniquilação definitiva de perfis. Sabemos o quão revoltante é a prática sistemática de aniquilação de um determinado grupo em prol de outros, na constante dinâmica do olhar do colonizador no posicionamento do “outro” como subalterno, mas é preciso abrir espaço pata debater estes privilégios por meio de iniciativas que permitam a reflexão e, concomitantemente, a educação que possibilite a conscientização do outro. A tarefa é complicada na prática, mas na teoria, precisamos tentar, pois ao contrário, tudo se transformaria num caos ainda mais absoluto. Como manifestado desde as primeiras linhas, Sex and The City foi, sim, falha na representação racial novaiorquina, mas não acredito que é por meio do apagamento de seu legado e impacto cultural que o debate tenha de ser empreendido.

Quando retomada para permitir a melhor conexão entre o passado e o presente das personagens deste universo, a série me fez dialogar com os atuais debates sobre racismo estrutural, pertinentes para melhor compreensão das críticas em geral direcionadas aos erros cometidos por Sex and The City no passado. Em sua dinâmica, o racismo estrutural, é devastador. Oprime-se e se deslegitima um determinado grupo social em prol de outro. Basicamente, apaga-se a história e a relevância de um grupo, tendo como favorecimento a história do outro. É a permanência do discurso do colonizador que esmaga a trajetória do colonizado. Conhecido por ser um conjunto de práticas interpessoais, culturais e institucionais de uma sociedade que cotidianamente, torna o ideal da equidade como algo utópico, celeuma que envolve questões educacionais, políticas, culturais, econômicas e culturalmente, como os menores salários e a menor oferta de oportunidades de desempenhos dramáticos justos para atores e atrizes negras, como ainda ocorre na contemporaneidade, não sendo apenas uma problemática de Sex and The City, mas algo perigosamente enraizado. Ao leitor interessado em aprofundamento, há uma série de publicações relevantes sobre o tema, sendo o livro Racismo Estrutural, de Silvio de Almeida, parte da coleção Feminismos Plurais, uma ótima opção para compreensão do assunto. É brasileiro, mas o debate pode ser ampliado e entendido associado com qualquer dinâmica global no que concerne aos debates sobre racismo.

Falta de oportunidades, presença pouco representativa, em sua maioria, como figurantes, ou então, situado dentro de discursos estereotipados. Os problema em questão aparecem em diversos momentos do programa, mas é na terceira temporada que as coisas estão mais acentuadas. Nas reflexões sobre as questões raciais em Sex and The City, o quinto episódio, intitulado No Ifs, Ands or Butts (veiculado por aqui como “Nada de Porém, Nem de Cigarros”), dirigido por Nicole Holofcener, traz uma série de equívocos que se destacam como os momentos de maior desagrado do público militante em relação aos questionamentos sobre os problemas de representatividade do programa. Samantha Jones conhece Chivon (Asio Higsmith), um sedutor homem negro lhe apresentado por Adeena Williams (Sundra Oakley), a irmã do músico que desenvolve uma relação breve com a publicitária conhecida por seu comportamento sexual livre. Adeena é uma chef em ascensão e na ocasião, Samantha e suas amigas conversam sobre os tópicos de sempre (relacionamentos) enquanto aguardam o jantar. Logo no primeiro contato, a loira se interessa pelo homem, vendo-o como um objeto sexual, algo repreendido por Charlotte, a mais “tradicional do grupo”. Deste momento ao desfecho do episódio, Adeena revela que não quer ver seu irmão com uma branca e logo apresenta um comportamento estereotipado, classificado em reflexões do tipo como a “a irmã negra furiosa”.

Mais adiante, outros personagens negros. Desta vez, um trio de travestis já mencionadas, personagens que tiram o sossego de Samantha em sua noite de sono. O problema de representatividade aqui é mais voltado aos tantos debates sobre as questões de gênero trabalhadas com desleixo ao longo de todas as temporadas da série, haja vista a função de mera muleta destes personagens no cotidiano do quarteto principal. Esta é uma discussão, por sua vez, que pede uma análise mais detida, noutro texto. Fiquemos, então, com a questão racial, tudo bem? Um personagem negro de maior presença em cena apareceria apenas na sexta temporada, momentos antes de Miranda Hobbes decidir voltar de uma vez por todas para Steve e terminar o programa casada e estabelecida. Ela se relaciona com um médico que atende os jogadores de um importante time esportivo estadunidense, com alguns bons momentos para o personagem que recebe falas mais dignas e se mantém relevante por uma quantidade nunca vista antes para um ator negro na série. Não resolve os problemas de percurso, mas ao menos insere um pouco mais de realidade na produção, afinal, como apontado pelos críticos, a tessitura social novaiorquina não é mantida apenas por homens e mulheres brancas, não é mesmo? A badalação cosmopolita deste lugar é um dos caldeirões multiculturais da globalização e apresentar personagens negros apenas como figurantes ou breves passageiros foi um grande equívoco não apenas de Sex and The City, mas da ficção televisiva em geral da época.

Os filmes, por sua vez, tiveram a chance de tentar fazer os ajustes necessários, algo que não aconteceu. Jennifer Hudson, uma atriz talentosa, apareceu num papel de algum destaque no primeiro, de 2008, mas sua posição ainda era menor, mesmo que debates do tipo já tenham sido esboçados na época. Ela interpreta a assistente de Carrie, alguém que é pressionada pela família no que tange às escolhas sobre casar ou ser uma solteira livre em Nova Iorque, além de aparecer em cenas para ganhar as roupas que Carrie Bradshaw, a musa do estilo, não se interessa mais. A inserção de uma personagem negra relevante não era uma obrigação dos realizadores, no entanto, depois de seis temporadas de representatividade nula, custava acertar com uma abordagem menos subserviente e mais realista com o tecido social novaiorquino, diferente da branquitude gritante de Sex and The City, um programa não consumido apenas por mulheres brancas, mas por uma considerável parcela de negras, asiáticas, latinas e brasileiras? No segundo e abominável filme, as coisas ficam ainda piores, haja vista o festival de xenofobia nos diálogos e ações das personagens numa viagem de férias para Abu Dabhi, vergonhosa abordagem num roteiro escrito de qualquer jeito, encenado por um elenco motivado por dinheiro ou por uma crença cega na relevância do material de baixa qualidade dramática, transformado num filme longo, cansativo e de péssima reputação para os envolvidos neste universo.

Agora, And Just Like That trouxe de volta o universo de Sex and The City, com chances de resolver os problemas. Com a primeira temporada de retorno, será que o programa conseguiu fazer os seus ajustes? A resposta, caro leitor, é positiva. Agora sem Samantha Jones, a série conseguiu organizar o esquema com novos personagens, num panorama representativo mais realista. Carrie continua estilosa, Miranda se dedicou ao mestrado e Charlotte segue a sua vida com o desafio de lidar com a filha adolescente com forte posicionamento de gênero. O sexo diminui em cena, afinal, noutro estágio de suas vidas, as protagonistas agora precisam lidar com outros pontos cruciais em suas existências. Lisa (Nicole Ari Parker) surge como a atual amiga de Charlotte, uma mulher negra bem-sucedida, com mais tempo em cena que o habitual nos episódios veiculados entre 1998 e 2004. O melhor deste esquema, por sua vez, é a professora de Miranda, Nya (Karen Pittman), intelectual que atravessa os obstáculos do racismo estrutural cotidianamente e coloca a advogada durona, agora uma estudante, numa posição bastante delicada em relação aos seus privilégios.

Como lidar com a confusão que faz no primeiro dia de aula, quando confunde a professora com um dos estudantes? E a sua tentativa de ser a branca salvadora, estereótipo bastante comum no cinema, ao ser testemunha de situações nada agradáveis para a sua professora negra. Pode parecer esquemático, mas para quem conhece o contexto, percebe-se que a equipe de realizadores tem tentado de maneira adequada e orgânica, submeter o programa aos seus erros do passado, corrigindo-os. Ademais, independente destas questões, Sex and The City voltou relevante, resgatou histórias e nos mostrou que tal como na vida real, nem tudo consegue permanecer como antes. Os males do racismo ainda continuam por aí assombrando a nossa realidade, mas a série vem buscando, com eficiência, levantar estas questões sem parecer forçada e panfletária. Ao que parece, os realizadores devem ter assistido ao entusiasmado último episódio de Pose, série criada por Ryan Murphy, em especial, no momento em que o quarteto principal se encontra num restaurante e começa a discutir a série que apenas Elektra (Dominique Jackson) não conhece. Elas falam sobre a branquitude do programa, sobre o consumo, a moda, os hábitos sociais e as bebidas que fizeram história e ditaram comportamentos. Desinteressada, a personagem critica a série protagonizada por Sarah Jessica Parker e diz que nenhum programa vai lhe dizer o que consumir. Pede ao garçom um uísque e não aceita a oferta do cosmopolitan, a bebida marco de Sex and The City. Recado dado, em alto e bom tom. O público e, ainda melhor, os realizadores, parecem ter compreendido direitinho a lição. Vamos aguardar os próximos capítulos.

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