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Plano Polêmico #46 | Não Existe “Crítica Atrasada”!

por Luiz Santiago
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Numa linda manhã de sábado, estava eu lendo as cartinhas dos nossos leitores… e eis que uma dessas cartinhas se destacava, dentre as demais, pela estranheza. Escrita num papel de carta roto, com manchas de óleo e provavelmente lágrimas e baba verde, a missiva exibia, em letra pré-histórica, a seguinte frase:

Faz tempo que era pra ter escrito a crítica de Viagem à Lua, não? Ela “só” está atrasada uns 115 anos!!!

E foi a tarde, a noite, e o primeiro dia em que eu tive contato com a SEDOQAECA (Seita dos Que Acreditam em Crítica Atrasada).

O tempo passou. Eu envelheci uns 6 mil anos entre 2020 e 2021 e, por todos esses milênios, nunca deixei de me espantar com o retorno desse tipo de gente aqui no Plano Crítico. Vira mexe alguém que se julga verdadeiramente iluminado, alguém que com certeza acha que está fazendo “O Comentário-do Século“, alguém que acredita tem um QI de 900 bilhões, aparece dizendo que esta ou aquela crítica está “atrasada“. Cá com meus (nenhuns) botões, fico pensando como deve funcionar um cérebro que conclui algo desse nível. O curioso caso das pessoas que se acham no direito de colocar data-limite no texto dos outros.

Crítica é discussão embasada: uma sopa de caráter analítico que mescla opinião pessoal, contexto histórico/artístico, conhecimento técnico e de linguagem + um argumento crítico sobre uma determinada obra de arte. E obras de arte existem aos montes na História da humanidade, não é mesmo? Das pinturas rupestres até Banksy; da Vênus de Willendorf até as fotografias gigantes de JR; de A Chegada do Trem à Estação até Free Guy. Críticos, estudiosos e jornalistas possuem um arcabouço enorme de possibilidades para escrever sobre tudo isso e muito mais, sempre no tempo que quiserem escrever.

Esta coisa soez a que os fiéis da “Crítica Atrasada” chamam de “raciocínio“, no entanto, ignora o que vem a ser uma crítica. E para todos os efeitos, o que vem a ser qualquer tipo de estudo ou análise também. Imaginem só um especialista em História da Mesopotâmia. Ou dos Hebreus. Ou dos Assírios. Se um livro analisando a arte, religião ou o modo de vida desses povos cair nas mãos de um SEDOQAECA, ora ora ora, será o fim do mundo! Onde já se viu publicar um livro com milhares de anos de atraso? Pensem agora num livro sobre a arte greco-romana! É muita incompetência falar dessas obras depois de tantos séculos que ela aconteceu, não é mesmo?

Matuto sobre o nosso caso. Nós temos uma coluna aqui chamada Plano Piloto, onde a proposta é analisar pilotos de séries de TV. E temos críticas de séries desde os anos 1950! Mas segundo um SEDOQAECA, coitados de nós, meros, pobres e infelizes mortais. Como temos a audácia de publicar críticas desses pilotos com 70 anos de atraso? E daí que a gente nem era nascido? E daí que o Plano Crítico nem existia na época? Estamos atrasados e ponto! Isso vale para todos os clássicos literários que já publicamos. Temos críticas aqui para medalhões da literatura Universal, como Ilíada, Odisseia, História Verdadeira, Édipo Rei, As Mil e Uma Noites, A Edda Poética, entre dezenas de outros. Imaginem todos esses séculos de atraso para a publicação das críticas! Quem mandou a gente não estar vivo naquela época para escrever as críticas no momento em que essas obras saíam?

É demais, não é? Como se todo profissional da área tivesse a obrigação de ver TUDO e de escrever sobre TUDO, imediatamente. Como se isso fosse minimamente possível! E como se a data da publicação de uma opinião a respeito de uma obra de arte importasse ou significasse alguma coisa além de “eu só vi ou só quis publicar a crítica agora. Não gostou? Me processa!“.

A patetice não termina por aí, todavia. Se fôssemos seguir essa coisa da SEDOQAECA, os críticos e estudiosos deveriam:

  1. Viver para sempre;
  2. Escrever sobre TODAS as obras de arte, publicadas em TODOS os lugares do planeta Terra no exato momento de seu lançamento;
  3. Focar sua existência em manter as mídias num HYPE ETERNO, para que a SEDOQAECA não adicione o crítico ou sua página no Index de “Condenados Por Cometerem a Heresia de Publicarem Críticas Atrasadas“.

Uma crítica, uma análise, um estudo, um argumento sobre uma obra de arte deve ser feito quando a pessoa bem entender. Em qualquer momento, em qualquer lugar. Nunca existiu, não existe e jamais existirá essa abominação ridícula chamada “Crítica Atrasada”, porque não é nem perto disso que a crítica, a análise ou os estudos de arte funcionam. Indivíduos ao redor do mundo possuem tempos diferentes ou acessos diferentes a essas obras, e cada um irá analisá-las quando achar que é o momento de fazê-lo. Se isso acontece 1 hora ou 650 mil anos depois do lançamento original, é apenas uma questão de tempo, acesso e escolha de quem o fez. Nada mais.

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