A cultura do cancelamento consiste em expor um fato, geralmente pelas redes sociais, tendo em vista anular, suprimir, excluir, negar, em linhas gerais, tornar sem efeito, a existência de uma figura pública. Ligado ao termo trending topies, isto é, assuntos do momento, o cancelamento é visto por seus apoiadores como uma estratégia de ajustes da ordem social e, no caso de figuras não recentes, mas ainda presentes em nosso imaginário, de reparações históricas, tal como ocorreu nos últimos anos com a figura de Monteiro Lobato, ovacionado no campo da literatura infantojuvenil, mas execrado pelo tratamento aos personagens negros, posturas racistas consideradas inaceitáveis em nossa atual conjuntura social. Se olharmos mais detidamente, há o lado bom do cancelamento, pois temos na prática, a oportunidade de colocar algumas questões em seu devido lugar e demonstrar que determinados comportamentos, tais como o machismo, a homofobia, o racismo, dentre outros. Há, no entanto, a preocupante negação do debate por muitos envolvidos na cultura do cancelamento, pois essa suspensão não deveria ser algo vitalício, afinal, a ideia racional seria “vigiar”, “punir” e depois disso, permitir que o cancelado tenha aprendido uma lição com o seu erro e dado continuidade ao seu direito de existir.
Se Monteiro já não está entre nós, como se defender desse cancelamento após o autor ter se tornando um trending topies acirrado na última década? Até projeto de lei foi esboçado para impedir a distribuição de seus livros pelo Ministério da Educação. Coube aos pesquisadores, críticos literários e até mesmo aos habitantes da esfera virtual pública estabelecerem o debate que tem como direcionamento, o título desse texto: devemos ou não cancelar Monteiro Lobato? Para alguns, o linchamento e a degradação visam impedir que a obra do autor circule no âmbito educacional e forme leitores racistas. Enquanto uma parcela favorável ao cancelamento busca negar a existência de Monteiro Lobato como agente literário no preâmbulo do século XX, tornando-o um “apedrejado”, por outro lado, há quem acredite que a solução é não apagar os rastros de sua literatura, mas mantê-la presente para a formação de leitores críticos e mais ativos, problematizada por professores devidamente preparados. Em um mundo que vive constantemente em processos de desconstrução, aparentemente não é mais tolerável o racismo, o sexismo e outras posturas. Mas, será que cancelar é mesmo o melhor caminho?
Brasil, Uma Nação de Cancelados!
O Brasil é uma nação de cancelados. Alessandra Negrini, por exemplo, foi criticada quando utilizou uma fantasia indígena, escolha considerada inapropriada por alguns grupos. Atualmente, qualquer BBB que haja incorretamente ou deixe transparecer algum preconceito, algo que a psicologia social dos estereótipos já comprovou ser inerente aos seres humanos, mas controlado nos impulsos que regem as relações cotidianas. Karol Konká e Sarah, cada uma dentro de sua perspectiva, foram linchadas publicamente após a eliminação no famoso reality show. Regina Duarte, após alguns surtos e envolvimentos com a pedagogia do ódio e da falta de bom-senso que permeiam a nossa mais recente e desastrosa gestão política brasileira, tornou-se forte candidata ao cancelamento e recebeu “empurrões” e “cusparadas” virtuais em 2020. A resposta de Nego do Borel para a postagem elogiosa da transexual Luísa Marilac gerou buscas pelo botão do cancelamento nas redes sociais recentemente. Anitta, ao chamar o artista para o seu palco, também foi alvo de cancelamento, como se compactuasse com a postura errônea de Borel. MC Biel, ao chamar uma jornalista de gostosinha durante uma entrevista, foi cancelado na internet.
Lá fora, a coisa também não é diferente. Woody Allen, cineasta de longa carreira, provavelmente não consiga mais filmar nada, tamanha a ojeriza diante dos supostos casos de abuso sexual e pedofilia, potencializados pelo #metoo. J. K. Rowling, a famosa criadora do universo de Harry Potter, também foi dizimada por comentários transfóbicos. O termo cancelamento, sabemos, caminha mais conectado com debates acirrados nas redes sociais e na internet de forma geral, mas tomei emprestada a abordagem para associar ao movimento de busca por exclusão, algo que também pode ser pensado como cultura do cancelamento, envolvendo o criador de um dos maiores acervos da literatura juvenil em território brasileiro: Monteiro Lobato, ponto nevrálgico de nosso texto, um dos escolhidos para ter abertura de processo e julgamento nos tribunais da internet. Nas polêmicas mais recentes em torno de sua obra, algo que vem ganhado bastante força com a imposição legítima dos militantes do Movimento Negro, temos uma questão norteadora: devemos cancelar a obra de Monteiro Lobato, considerada nociva para a formação das identidades de muitos leitores das gerações recentes?
Um Estudo de Caso do Racismo na Obra de Monteiro Lobato
Há quem o venere. De fato, Monteiro Lobato, o escritor, entregou ao nosso imaginário cultural, uma série de produções literárias interessantes. Personagens bem delineados, humor constante, fábulas moralizantes ideais para o direcionamento pedagógico de sua obra, mas também é um dos acusados do nosso atual e militante tribunal da internet, espaço que há algum tempo, tem discutido a legitimidade do conjunto de narrativas ficcionais desse autor que defendia a criação de uma Ku Klux Klan no território brasileiro, além de ter retratado Tia Anastácia e outros personagens afro-brasileiros pelo perigoso viés do racismo. Para alguns, ler Monteiro Lobato na escola pode criar estigmas nas crianças negras, pois as instâncias de representação são perturbadoras. Por outro lado, há quem defenda a leitura com posicionamento crítico, mas sem o apagamento das marcas do autor, como muitas leis outorgaram nos últimos ano.
Numa interessante roda de conversa entre Marisa Lajolo e Lilia Schwarz, realizada pela editora Companhia das Letras, as pesquisadoras debateram a exclusão da obra de Monteiro Lobato, proposta por alguns políticos militantes, conversa que também versou sobre o apagamento realizado pela mudança de termos da época e explicações em nota de rodapé, escolha de encaminhamento para os leitores que na visão das especialistas, fere os princípios de formação de cidadãos mais críticos e autênticos, algo tão preconizado pelos discursos contemporâneos das metodologias ativas de ensino e aprendizagem. Lajolo, num dos momentos, questiona se teremos, então, que transformar as personagens femininas submissas do século XIX, salvaguardas as comparações entre o machismo e o racismo no discurso da debatedora. Salvaguardas as devidas proporções, há alguns pontos coerentes na articulação de Lajolo.
Noutro momento, desta vez, para um editorial da Nova Escola, a especialista, agora sozinha, expôs as suas considerações sobre esse movimento de exclusão do escritor Monteiro Lobato, comportando-se um tanto diferente do evento para a Companhia das Letras. No intenso tribunal de acusações contra a postura literária do escritor, Lajolo, merecidamente reconhecida como uma especialista em estudos literários, em especial, por sua atuação no campo de produção infantojuvenil, se comporta como uma espécie de advogada de defesa do responsável por tantas obras, dentre elas, Caçadas de Pedrinho, alvo de maior destaque para o cancelamento mais recente do escritor, haja vista o tom altamente racista da publicação. Para a pesquisadora que é parte integrante do corpo docente da UNICAMP, Monteiro Lobato mudou a sua postura ao longo da vida e pelas cartas devidamente registradas em acervos, podemos acompanhar a sua evolução. Ademais, ele já chamava outros personagens dos seus livros de “macaco e macaca”, não apenas Tia Anastácia. A sua defesa em relação ao movimento eugênico da época, também, deve ser refletida diacronicamente, com base na linha de pensamento da época.
Como professor de literatura, reforço que o disfarce com a mudança de termos nas edições mais atuais de alguns livros do autor promove um equívoco na formação do leitor, haja vista a necessidade de estabelecimento de estratégias que fomentem o senso crítico. O que é preciso fazer, neste caso, não é promover o cancelamento efetivo da figura de Monteiro Lobato, tornando a sua existência nula, sem sentido, suprimida e negada em nossa rica história literária. Tudo bem que a figura supostamente simpática que tínhamos na época escolar, a alegria diante das homenagens do criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo e das peripécias de Emília em tantas outras trajetórias literárias, neste momento, deve ser cautelosa. O criador deste universo de beleza, transformado em série televisiva marcante para numerosas gerações, precisa sim ser levado ao tribunal das problematizações contemporâneas, mas jamais esquecido e apagado.
Ao contrário, Lobato deve continuar em seu lugar de agente de discurso do que a história literária chamou de pré-modernismo, época conhecida pela organização da cultura para o que viria a ser, posteriormente, o modernismo, período com fases diversas e ebulição intelectualidade e na produção artística brasileira, em especial, nas artes plásticas. O ato de ler Monteiro Lobato não deve ser algo excludente no percurso dos jovens estudantes em formação de caráter e identidade. É preciso investir na preparação dos professores, na inclusão de prefácios e posfácios para filosofar junto ao leitor, sobre a obra a ser lida, mas nunca apagar os rastros, pois nesta perspectiva, deixaríamos de compreender o que de alguma forma, ficaria latente numa superfície frágil, a curiosidade humana, pronta a descer para o convés da obra de Monteiro Lobato a qualquer momento. Desta forma, creio que não devamos cancelar o autor, mas tornar a sua produção literária um tema de problematizações. E você, leitor, o que acha?