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Plano Polêmico #36 | Temporada de Cancelamento Humano

por Luiz Santiago
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Este Plano Polêmico é a continuação de Há Arte de Podre no Reino da Tuitada, um texto que escrevi há oito meses e que precisava de um complemento para que eu, enfim, dissesse tudo o que tenho a dizer sobre o tema. Aliás, para quem não gostar ou discordar de tudo o que aqui está, esta certamente será a única coisa boa do texto: eu não voltarei mais a esse assunto. E claro, por se tratar de uma continuação, há semelhanças na conclusão do argumento, embora o meu recorte aqui seja mais cínico, ácido e eu tenha um foco mais específico. Para quem está se perguntando, a resposta é “não“. Não é necessário a leitura do outro texto. Este aqui fala de uma prática específica, quase uma atitude-meme hoje muito popular pelas uébes. É uma visão quase sociológica de um sinal dos nossos tempos. Então… Só vem.

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De certa forma, esta temática ronda muitas discussões que já fizemos aqui no site, com aplicações e pontos de vista levemente distintos. O problema, no entanto, não só persiste, como piora. E tudo isso tem a ver com Surfista Prateado: Parábola.

Bem… isso é uma mentira absurda. Mas vá lá, tem ALGO a ver com esta fantástica história sim. Uma relação simbólica. Algo que o roteiro de Stan Lee coloca como reflexão através do Surfista e que, na verdade, é um mal eterno das civilizações — notem a temporalidade e o plural propositalmente usados. Que mal é este? A busca por uma deidade entre nós. O impulso ou, para alguns, a quase obrigatoriedade de um modelo para seguir. De alguém para caber em nossas forminhas pessoais do que é um “bom comportamento“. De alguém para chamar de reizinho. De diva, divosa, dadivosa. De fada sem defeitos, fada sensata. E dizer, com peito estufado e um orgulho fervoroso, daqueles que olha com aprovação para o animal de estimação que faz exatamente aquilo que a gente sempre quis, aquilo que a gente mandou, aquilo que a gente aprova: “conte comigo pra tudo!“.

  • Problema Nº1: criar formas morais e querer que as pessoas que a gente admira caibam eternamente nelas. Sem concessões. Porque se não couberem; se não entregarem mais aquilo que a gente quer delas… a gente cancela.

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Amada? Beloved? Bien-aimée?

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Sim, eu sei, bee.

Este Plano Polêmico é pra mim também, eu não usei “a gente” ali em cima por um motivo religioso, nem nada do tipo. A verdade é que é inevitável a gente (hein? hein?) se enraivecer com o fato de alguém da nossa lista de admiração simplesmente ter “pisado na bola“. Daí a pergunta: “Que mal há nisso?“. Absolutamente nenhum! Todo mundo já pisou, pisa e pisará na bola, certo? E a gente fica bravo com quem pisa na bola com a gente, da mesma forma que ficam bravos conosco quando a gente faz o mesmo. O proverbial “fazer merda” é parte de ser humano e embora algumas pessoas façam muito mais que outras (diz-se ainda que há aqueles que fazem dia sim, dia não), ninguém escapa ao erro. A diferença está no olhar para a situação e no tipo de bola que o desafortunado pisou. A vaca, nesse caso, sequer consegue chegar ao brejo. Ela morre antes.

  • Conforto Nº1: é imperativo se emputecer com pessoas da nossa lista de admiração por suas ações ou falas condenáveis.

E é para olhar essa situação, a resposta midiática de alguns guerreiros por aí e as consequências sociais de pisadas na bola que eu vos convido a entrar comigo no mítico, úmido e dadaísta…

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Setor Melodramático & Engajador da

Macro-Proto-Maxi-Neo-Mega-Pseudo-Micro-Semi-Mini-Passagem-de-Pano

[ou não / ou quase isso / não é bem assim / tem que interpretar]

herege

Aqui é onde a coisa fica feia.

Simplesmente porque existem pessoas que apenas admiram seus artistas (e afins) e outras que são fanáticas por eles, querem-nos deuses, verdadeiras fadas sem defeito. Então, humano como é, essa pessoa faz algo errado. E aí vem a ordem do dia: “Fulano de Tal está cancelado“!

  • Exercício de Fixação Nº1: indivíduos que cometem crimes devem ser punidos pelos seus crimes. Simples assim. Está claro, portanto, que o crime e sua obrigatoriedade de punição está fora do escopo de todo esse Plano Polêmico justamente pela premissa imutável? Ótimo, então vamos prosseguir.

Uma vez que não estamos falando de crimes, vejam que a atitude do CANCELAMENTO de quem erra passa a ser algo um tantinho complicado. Porque, no mínimo, exige coerência e isso raramente vem no mesmo combo do cancelamento. E porque coloca para o cancelador a pergunta nunca respondida: por quanto tempo a sua Lei Pessoal de Justiça Canceladora irá punir a pessoa que errou? Se estamos falando de um crime, existe uma legislação que prevê uma punição X para o criminoso, correto? Então o “pagamento” é estabelecido. Mas quando se trata de falas imorais ou tweets nojentos de um ator que… por exemplo… falou algo contra uma minoria? Ou um diretor que foi sexista? Ou uma atriz que foi racista em uma declaração no tapete vermelho, às 22h57, em fevereiro de 1966? Por quanto tempo a gente cancela essa gente toda? E o que isso significa exatamente? Não reconhecer o valor da arte dessas pessoas? Dizer que tudo o que elas fazem é ruim (mesmo não sendo) porque elas foram canceladas?

E até que nível um cancelamento pode ir, em termos de ação? Cabe, nele, distorção de discurso do artista cancelado, para fazer com que se pareça pior do que é? Cabe produzir fake news sobre ele? Quem sabe fazer textão ou sequência de pequenos textos sobre um “flop de toda a carreira” que na verdade nunca existiu, mas que acabará sendo confirmado por seguidores porque, claro, o artista foi cancelado?

É perfeitamente compreensível que não se queira comprar nada de quem não se gosta mais, certo? Certo. Mas isso fica na escolha pessoal ou respinga em algo mais? Será que vem acompanhado de uma publicação sobre um diretor investigado por acusação de abuso da filha, e inocentado pela justiça, para culpabilizar quem escolhe assistir aos filmes dele? Ou será que vem com dizeres que um determinado veículo de comunicação perdeu qualidade e que nunca mais será visitado porque o crítico tal respondeu a um comentário imbecil com o melhor meme da praça e a melhor ironia do dia? E por fim: cabe, no cancelamento humano, cancelar as pessoas que não cancelaram o artista cancelado do momento? Ou tudo estaciona na acusação de “passagem de pano” para quem, ora ora ora, não pensa como os canceladores? Porque me parece que esta se tornou uma frase frequente. “Em que situações?“, você pergunta. Bem, vamos à feirinha de nojeiras abaixo.

1 – Acharam uma declaração de Tarantino defendendo Polanski, em 2003. Logo, vamos cancelar Tarantino. Primeiro passo: vamos chamá-lo de pior diretor da História. Um cara sem importância para o cinema. Flopado. Era uma Vez em… Hollywood é um lixo. Não sabe escrever. Não sabe dirigir. Cancelado.

2 – Assistiram à cena infame, racista, condenável de O Nascimento de uma Nação. Logo, D.W. Griffith é um lixo, vamos cancelar. Não tem importância nenhuma para a História do cinema. O próprio referido filme de 1915 é um lixo. Zero de importância para o cinema. Flopado. Cancelado.

♾ – Charles Chaplin abusava de atrizes e tem sobre ele acusações recorrentes e muito sérias de pedofilia. Flopado. Não fez nada que presta. Vamos destruir tudo e dizer que sua obra é ruim. Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock eram rigorosos assediadores morais, sendo o britânico também um assediador sexual. Flopados. Não fizeram nada que presta. Vamos destruir tudo e dizer que a obra de ambos é péssima. Daí a gente aplica a mesma receita a John Ford, que fez filmes racistas e xenófobos; a Elia Kazan que entrou na onda anti-comunista e colaborou para que a carreira de muita gente fosse aniquilada em Hollywood; a Faye Dunaway, por homofobia; a Leni Riefenstahl, por ter sido maior e melhor cineasta do III Reich, a queridinha de Hitler… E segue a lista até o ano que vem…
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Mas quando a gente faz isso com um diretor, diretora, ator, atriz, fotógrafo, figurinista que a gente pegou ranço… a gente faz isso também com todos os nossos ídolos da música? Das artes plásticas? Da dança? Da literatura? Dos quadrinhos? Da arquitetura? Do teatro? Da escultura? Das artes digitais? A gente cancela TODOS eles ou só aqueles que não acendem os nossos desejos? A gente cancela todo mundo que foi homofóbico, racista, misógino, antissemita, abusador na História da Arte ou a gente seleciona aqueles que queremos que sejam cancelados e… [olha aí o feitiço virando contra o feiticeiro…] passamos pano para todos os outros, fingindo que são reizinhos, fadas sensatas e sem defeitos? E por fim, a gente pode cancelar o “odiado da vez” e, três minutos depois, bater tambor pra outros até bem piores dançarem à luz do luar…?
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… ou a gente consome arte, condena e critica as ações condenáveis de qualquer artista e pressionamos para que essa pessoa se retrate, realmente mude e possa tornar o mundo um pouco melhor ao redor dela e principalmente para quem ela agrediu com o que disse ou fez? Para que angariar e ensinar se a gente pode cancelar, não é mesmo? Sim, sim, há os irredimíveis, mas esses se auto-cancelam! Fica então, a dúvida: quanto dura essa ânsia por espelhos, deidades e modelos que atendem às nossas vontades e que mergulham fanbases pela internet (e fora dela) um oceano seletivo, hipócrita e rancoroso dos artistas nojentos que devem ser cancelados, odiados, esquecidos e de outros artistas nojentos que a gente deve botar no pódio, fingir que está tudo bem e encher suas fotos de #hashtags sexuais, comprar seus produtos com o nosso pink money e dizer que podem contar com a gente pra tudo? Claro, claro, a gente paga a nossa internet, o dinheiro é nosso e a gente cancela quem a gente quiser e objetifica quem a gente quiser, afinal de contas, não importa ser coerente, importa mesmo é cancelar. E amar um nojentinho de nossa preferência. Tudo em segredo, claro. Surge uma nova classe de “faço, mas não sou“. CANCELOYS NO CANCELAGEMVERSO: BREVE NOS CINEMAS.
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Nonada. Me parece que o preço da cabeça, nessa Temporada de Cancelamento, está mais salgado do que a encomenda. Vou cancelar o vendedor. E este site. E este crítico arrombado bosta lixo prepotente do caralho. Flopados. Não fazem nada que presta. Vamos destruir tudo isso. Uma vergonha para a classe. Estão cancelados.

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