Quando reflexões deste tipo são veiculadas na mídia, muita gente acredita que as abordagens estão contaminadas por vitimização e discurso inflamado. Será? Com o recente O Infiltrado na Klan, de Spike Lee, as discussões sobre racismo no bojo do cinema ganham novas dimensões. Posturas são ressignificadas, situações de preconceito são denunciadas, no entanto, o problema parece ser parte de uma cadeia engendrada para não ter fim.
Ao olharmos para Spike Lee e seu Faça a Coisa Certa, em 1989, podemos perceber que as mesmas críticas realizadas na década de 1980 continuam pertinentes para questões bem contemporâneas. Desta forma, creio que seja importante reiterar a questão do racismo e suas representações, em especial, na cinematografia hollywoodiana, um campo de produção com rizomática dimensão de alcance global..
Antes do cinema, alguns estereótipos comuns na cultura estadunidense…
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Jim Crow – criado pelo comediante Thomas D. Rice, o “tipo” era representação do que ele acreditava ser um escravo negro: um cara desprovido de inteligência, vestido com roupas esfarrapadas, dono de atitudes atrapalhadas e constrangedoras. O seu personagem era apresentado nos palcos das casas de shows com o comediante pintado de preto, o que fazia a alegria da plateia racista. A projeção do estereótipo foi tão grande que a Disney o utilizou como personagem em Dumbo, de 1941.
Utilizado durante bastante tempo como sinônimo para pessoas negras tratadas como inferiores e com nível intelectual baixo, a expressão pode ser associada ao MOBRAL, programa da Educação de Jovens e Adultos no Brasil. Durante muito tempo, pessoas que cometiam deslizes de interpretação ou alguma incorreção gramatical eram chamadas, em forma de “brincadeira ofensiva”, de “mobral”.
Sambo – oriundo de uma história infantil, criada pela escritora Hellen Bannerman, o personagem foi utilizado como referência para muitas crianças negras. Incoerente e cheia de imprecisões, a história versava sobre um menino negro que driblou alguns tigres por conta de suas habilidades, dentre elas, a malandragem e a destreza, sobrevivendo em seu “meio”, juntamente com seus pais, Black Mumbo e Black Jumbo, casal de negros preguiçosos e estereotipados.
Tio Tom – boas intenções, às vezes, são meigas, mas podem designar a ideia incorreta. Em 1852, a escritora Harriet Beecher Stowe lançou o romance A Cabana do Pai Tomás, narrativa que ela acreditava ser uma obra-prima antiescravagista. A história de um escravo idoso que foi espancado até a morte por negar informações acerca do paradeiro de escravas fugidas fez sucesso, pois denunciava as celeumas da escravidão, mas infelizmente era também a representação de um negro servil, leal ao homem branco e traidor do seu povo. Samuel L. Jackson interpretou uma versão deste tipo em Django Livre, de Tarantino, lançado em 2012. Interpretado incorretamente pelo público racista da época, a obra veiculou novos estereótipos e forneceu novas caricaturas, dentre elas, a criança incivilizada e a mulher negra como objeto sexual.
Mommy – escrava considerada como “quase da família”, tais personagens não trafegaram apenas pela cultura estadunidense, mas também foram parte integrante de muitas narrativas brasileiras. Em quase todos os romances de José Lins do Rego, escritor brasileiro associado ao que se convencionou chamar de Romance de 30, as mulheres negras, gordas, cabelos crespos escondidos por debaixo dos lenços que encobrem sua cabeça, além de seios enormes capazes de amamentar as “crianças brancas de todo o mundo”, tais mulheres são estereótipos marcantes do determinismo de sua existência, isto é, pessoas que precisam desenvolver, exclusivamente, a função de serviçal, sem outra perspectiva de vida.
Conselheira das filhas e esposa do patrão, elas agem com postura religiosa e são boas “amigas”, donas das receitas inesquecíveis, feitas especialmente para os habitantes da “Casa Grande”. Assexuada, a Mommy não serve para nada além dos afazeres domésticos. Hattie McDaniel, de E o Vento Levou, primeira mulher negra a sair premiada de uma cerimônia do Oscar, representou o papel em sua totalidade, num estereótipo com missão ideológica: colocar as mulheres em seus devidos papéis, isto é, “os afazeres domésticos”. De tanto sucesso, ganhou presença na Publicidade, na Televisão e no Cinema.
Jezebel – personagem bíblico do Velho Testamento, Jezebel foi uma princesa fenícia que se casou com um rei de Israel e tornou-se a rainha dos hebreus. Tida como manipuladora e tirana, Jezebel acabou se tornando o símbolo da decadência e do pecado, haja vista as suas posturas pagãs, sempre a utilizar a beleza e a sensualidade para conquistar as coisas. Com o passar do tempo e o avanço da história da humanidade, ela emulou o conceito de “demônio feminino”. Os europeus colonizadores, ao entrar em contato com a cultura africana, dando de frente com a liberdade em relação ao corpo nu, bem como a poligamia, associou erroneamente/imediatamente a imagem das mulheres africanas ao mito bíblico da promiscuidade e da impureza. O resultado: estupros e mulheres negras subjugadas, tendo como justificativa a relação com Jezebel.
Mandingo – um forte estereótipo, utilizado largamente na mídia: filmes, quadrinhos, séries e telenovelas. Escravo perigoso e de caráter indomável, com dote exacerbado, comportamento lascivo e dominador, perigoso para as filhas e esposas do patrão branco colonizador. Atraídos sexualmente por mulheres brancas, tais homens que se adequam ao personagem são violentos e nervosos, sem capacidade de raciocinar, agindo sempre de maneira animalesca. Em 2008, uma capa da Vogue fez uma relação pouco adequada entre o jogador de basquete Lebron James e a modelo Gisele Bündchen. Coincidência? Óbvio que não, certo?
E as melancias? Fruto que não existia na América antes da escravidão, por ser de origem sul-africana, as melancias foram trazidas pra cá nas circunstâncias que já sabemos. Os negros eram os que cultivavam para a venda (os libertos), haja vista a necessidade de sobrevivência, outros se alimentavam com as melancias. Por isso, tornou-se símbolo da liberdade do povo negro, ganhando contorno racista com o uso feito pelos brancos para representa-los no consumo do produto.
A versão de 1970 para A Metamorfose, de Franz Kafka, traz um curioso caso do uso deste estereótipo. No filme, um homem branco racista acorda e descobre que uma transformação o tornou um homem negro. A ideia da narrativa era fazê-lo passar por dilemas de uma pessoa negra, mas dentre tantos problemas que demonstram a falha do filme ao tentar passar uma mensagem antirracismo, dentre elas, o fato de nomeá-lo de O Homem Melancia não ajudou em nada na aparente proposta de reversão do preconceito..
Memórias de um negro em perigo ou quando um branco salva um negro!
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Um dos mecanismos mais comuns na indústria hollywoodiana. Há quem acuse Green Book – O Guia de chegar próximo deste segmento, apesar da narrativa avançar em alguns aspectos quando comparados aos demais que serão citados. Nos filmes sobre as memórias dos negros e personagens brancos que precisam salvá-los para a reafirmação de suas respectivas importâncias, podemos destacar Um Sonho Possível, Mentes Perigosas, Música do Coração, Hardball – O Jogo da Vida, Escritores da Liberdade, Histórias Cruzadas, etc. Nestas narrativas, os negros são salvos por brancos que os tiram da miséria absoluta. Para Spike Lee, Amistad e Um Grito de Liberdade são filmes de pessoas brancas travestidos de tramas sobre heróis negros. Desta maneira, podemos encaixá-los perfeitamente aqui, antes de adentrarmos nas mulheres negras desaforadas, outro problema na construção de personagens no sistema hollywoodiano..
Casos de família ou quando uma mulher negra não leva desaforo para casa!
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Norbit, Vovó…Zona e A Casa Caiu: estereótipos perigosos.
Dreamgirls – Em Busca de Um Sonho, A Casa Caiu, Um Salão do Barulho, Norbit, Vovó… Zona e uma numerosa lista de outras comédias estão enquadradas dentro deste segmento. Irreverentes e “cheias de atitude”, tais personagens são constantemente copiadas por mulheres brancas que se dizem “abaladoras”. Os trejeitos geralmente envolvem meneios com a cabeça, movimentos circulares, etc. Pode surgir na empregada que repreende o patrão e dita ordens no lar quando preciso, mas sabe que no momento certo, será colocada em seu devido lugar, isto é, no espaço que os personagens brancos acharem conveniente adequá-las.
É um estereótipo menos ofensivo, mas trafega por um caminho perigoso, pois pode se bifurcar numa negra perua, promíscua ou barraqueira, algo comumente apresentado no cinema. É um segmento que nos remete ao estereótipo “Sapphire”, isto é, a mulher que está sempre furiosa, nunca dá um sorriso e exerce o que a sociedade diz ser “o papel de homem”. Versão estúpida e grosseira da Mommy, a Sapphire é uma mulher castradora, dominadora, problemática, instável e perigosa. Rasputia, da comédia Norbit, com Eddie Murphy, pode ser talvez um dos melhores exemplos. A atriz Ernestine Wade interpretou Sapphire, uma personagem do tipo em 1951, num programa de TV, dando nome ao estereótipo em questão..
O preço de uma escolha ou quando um homem negro não merece uma mulher branca!
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Os conflitos do personagem de Sidney Poitier em Adivinhe Quem Vem Para Jantar são ilustrações para o segmento de homens que não merecem uma mulher branca. Em Hitch – Conselheiro Amoroso, o personagem de Will Smith seria Cameron Diaz, mas os produtores, preocupados com possíveis reações, escalaram Eva Mendes, uma latina. Vai que o personagem recebe a alcunha de “Palmiteiro”? Para quem não sabe, o termo foi utilizado recentemente por uma feminista brasileira para tratar dos homens que dão preferência às mulheres brancas, o que promove a chamada “solidão das mulheres negras”, uma discussão que noutro suporte, rende uma discussão ampla. Por Um Triz, Scrubs, Homens de Preto 2 e o citado filme com Will Smith fazem parte deste segmento, reformulado na comédia A Família da Noiva, com Ashton Kutcher, comédia romântica sobre um namorado branco levado para jantar na casa da namorada negra, reversão paródica do clássico com Sidney Poitier..
Abracadabra ou quando um negro mágico invade a cena e ilumina a vida dos protagonistas!
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Não chega a ser um estereótipo ofensivo, mas infelizmente apaga o protagonismo de personagens negros, como a maioria das figuras interpretadas por Morgan Freeman ao longo de sua carreira. “Gente boa” e responsável por iluminar a vida do homem branco, o Negro Mágico é responsável por guiar o protagonista rumo aos seus objetivos, sem direito ao delinear adequado de seu personagem no bojo do roteiro. Spike Lee trouxe o termo “Negro mágico” numa palestra na Universidade de Yale, alegando saturação por conta dos filmes que ainda recorrem insistentemente ao estereótipo como representação de personagens negros. Lendas da Vida, Todo Poderoso, Conduzindo Miss Daisy, À Espera de Um Milagre, Um Homem de Família, Endiabrado, etc. A lista é extensa.