Vivi em uma época que filme falado em português no cinema era limitado aos filmes nacionais que, à época, tinham qualidade de som abissal ao ponto de tornar o entendimento da língua pátria bastante complicado. Na televisão, ficávamos à mercê do material dublado mal e porcamente para essa mídia, em que os demais efeitos sonoros da obra eram emudecidos, para dar espaço à voz do dublador nacional.
Essa época passou. Os meios de comunicação e de divulgação de filmes e séries de TV foram ampliados exponencialmente e as técnicas de dublagem melhoraram infinitamente. Hoje, o espetáculo de horrores de vozes não sincronizadas ou sem som ao redor não mais existe, com algumas raras exceções aqui e ali, mas nada realmente significativo.
Da mesma maneira, ao longo das décadas, a população brasileira com capacidade econômica para frequentar os cinemas ou ter acesso à TV à cabo aumentou e muito. Com isso, as produtoras, distribuidoras e agregadoras de conteúdo repararam na necessidade econômica de se oferecer mais e mais obras audiovisuais dubladas em português. Mais dublagem igual a mais acesso e mais acesso igual a mais dinheiro. Fórmula infalível.
Essa evolução, se é que realmente podemos chamar assim, pode ser ilustrada – se você tiver idade o suficiente – pelos lançamentos de animações no cinema. Em priscas eras, quando eu mesmo era criança, desenhos dublados no cinema inexistiam se não fossem os curtas da Turma da Mônica, tendo o português como língua nativa, obviamente. Ao longo dos anos, começaram a aparecer, de maneira tímida, cópias dubladas no cinema, normalmente em sessões no começo do dia. Mais para a frente, a divisão entre desenho dublado e legendado passou a ser, grosso modo, de 50-50, com as sessões legendadas mais para o turno noturno.
Hoje, encontrar uma única sessão oferecendo cópia legendada de um desenho animado estrangeiro é, literalmente, encontrar a proverbial agulha no palheiro. E pior, quando ela existe, normalmente está relegada à última sessão do dia, lá pelas 21h ou 22h, de maneira que só adultos podem assistir já que pais responsáveis não deveriam levar crianças ao cinema nessas horas. Ou seja, sou pai e sou obrigado a levar minhas filhas a filmes dublados quando elas querem assistir a uma animação no cinema. Que se dane a liberdade de se escolher se você quer ver um filme dublado ou legendado não é mesmo?
Mas a coisa não parou por aí. Filmes teen foram os alvos seguintes do que chamo de Tirania da Dublagem. Depois, foi a vez dos filmes de ação, os blockbusters do verão americano. Esses filmes ainda são oferecidos razoavelmente na proporção de 50% dublados e 50% legendados. Mas até quando? Vejo um futuro próximo em que não haverá mais essa escolha e a Tirania da Dublagem terá se instalado completamente no país. E, claro, o mesmo vem acontecendo nos canais de televisão por assinatura – a Sony foi o mais recente canal a se curvar a essa estratégia, oferecendo primordialmente séries dubladas, com horários “alternativos” com legendas – e até em videogames.
Muita gente dirá que em outros países, como Portugal, França e Alemanha, a coisa também é assim. Bem, posso dizer, de cadeira – pois viagens fazem parte da minha profissão – que esses países estão justamente caminhando na direção oposta, cada vez mais oferecendo filmes na língua original (seja ela qual for) com legendas ou, às vezes, no caso da Alemanha, até mesmo sem legendas (quando a língua original é o inglês). Se antes era difícil assistir a um filme em Paris que não fosse dublado em francês, agora é muito fácil. Escolha. Respeito. Palavras-chave tão esquecidas por aqui.
Notem, prezados leitores, que não sou contra a dublagem. Não sou contra a oferta de filmes assim no cinema e na televisão. Mas eu sou absolutamente CONTRA a falta de escolha, o mandamento de que eu, agora, serei obrigado a assistir filmes dublados. Se alguns de vocês preferem filmes dublados, ok, maravilha, respeito a escolha, mas é uma escolha, não? Esse é o bacana dessa palavra. Eu me vejo cada vez mais distante de minha capacidade de escolher para mim e para minha família.
Voltando ao passado novamente, apesar de eu sempre ter tido acesso ao inglês – minha mãe era professora de línguas – e ter tido o privilégio de aprendê-la ao longo de muitos anos de estudo árduo (nada de cursinho de “aprenda inglês em 3 meses”), fato é que filmes em inglês SEMPRE me ajudaram a aperfeiçoar a língua. E digo mais: aperfeiçoei tanto minha capacidade de entender o inglês como, também, de ler em português mais rapidamente. Vejo que, hoje em dia, muitos daqueles que escolhem filmes dublados o fazem por uma questão muito simples: PREGUIÇA.
Preguiça de se esforçar no inglês. Preguiça de se esforçar na leitura das legendas. Preguiça de ler em geral. Preguiça eu não respeito. Se sua escolha é consciente e motivada por outros fatores que não a preguiça, novamente maravilha, parabéns; mas se o que o faz escolher a dublagem sobre a legendagem é a preguiça, então eu só tenho a lamentar profundamente.
E novamente àqueles que se sentirem ofendidos eu digo: se você não teve a oportunidade de aprender uma língua estrangeira e se seu português é claudicante ao ponto de não conseguir acompanhar as legendas ou se você cai na categoria de analfabeto, o que infelizmente ainda é muito presente em nosso país, ou se você é deficiente visual, LÓGICO que você simplesmente tem que ter acesso ao filme dublado. Fora essas e outras circunstâncias, pois não pretendo esgotar as hipóteses, parece-me (não serei categórico aqui) que você tenta justificar o que é injustificável. Parece-me que a preguiça impera.
Afinal, a atuação de um ator é composta não só de suas expressões faciais e corporais, como também por sua voz. Privar-se da voz original é privar-se de assistir a atuação por completo, da maneira que o diretor imaginou para seu filme ou série de TV. É ver um pedaço de filme e não o filme em sua integralidade. Faça o contrário, se puder, e assista a um filme nacional dublado em outra língua para ter um gostinho do que estou tentando passar.
E isso por mais que a qualidade da dublagem brasileira seja boa. Ela é boa, mas não é, como dizem por aí, a melhor do mundo. Ela é tão boa quanto as de países que dublam constantemente filmes estrangeiros. Vamos deixar o patriotismo exacerbado de lado e encarar a realidade por um momento. Se sua memória afetiva só consegue lembrar das queridas vozes de seus programas de TV antigos com as vozes brasileiras, ótimo. Mas isso não significa que, então, o padrão deve ser esse ou que nossos dubladores são, necessariamente, Deuses do Olimpo da dublagem.
Mas, na verdade, isso pouco importa. O padrão deve ser a escolha. Sim, eu quero ver Scooby-Doo no original. Sim, eu quero ver Os Simpsons no original. Sim, eu quero ver Spectreman no original. E não, eu não quero que você, que prefere a dublagem (por preguiça ou não) fique privado dela. Eu quero, vou repetir, uma coisinha chamada ESCOLHA.
Há também o ataque à legendagem por aqueles que consideram que ela atrapalha a apreciação do filme como um todo. Aqui eu digo veementemente: bullshit (assim mesmo, sem dublagem…)! Se você foi alfabetizado normalmente, não sofre de nada que o impeça de ler normalmente, mas tem que se concentrar tanto na legenda ao ponto de não conseguir apreciar o filme, então, talvez, você precise ler mais livros. Sim, não se sinta ofendido, mas é a realidade nua e crua. Vá até a biblioteca pública de sua cidade e pegue uns livros para ler. Livros, não quadrinhos. Se um filme passa na minha frente com legenda, não consigo não ler a legenda. É um impulso natural, automático e que me permite, ao meso tempo, descrever cada detalhe visual do que acabei de ler.
Mas, de novo, se sua preferência por dublagem importa, então porque a minha preferência por legendagem não importa? Sou elitista? Metido à besta? Tirador de onda?
Bem, se você acha isso, o que também significa automaticamente que você não é lá muito chegado à liberdade de escolha, então não tem salvação mesmo. Fique com seu filme dublado e seja feliz! Deixe-me com meu “elitismo” resmungão…
A bola foi levantada. Agora está na hora de vocês, leitores, cortarem!