É mais do que sabido que a Marvel, para chegar onde chegou, teve que, ao longo do tempo, se desfazer de algumas de suas propriedades, licenciando-as para outros estúdios. E essa é uma prática antiga.
Tudo começou com Howard, o Pato, que, por mais inusitado que seja, foi protagonista do primeiro longa-metragem produzido para cinema com algum personagem da editora. A licença, em meados dos anos 80, foi para a Lucasfilm, hoje parte da Disney, que também é proprietária da Marvel.
E a coisa continuou com Blade, licenciado para a New Line (que é da Warner e, portanto, do mesmo grupo da DC Comics, o que é algo inusitado) e que resultou em uma benquista trilogia entre 1998 e 2004. Até aí, nenhum grande personagem da editora havia saído de seu controle absoluto, pois as licenças eram efêmeras.
No entanto, o sucesso de Blade e do Batman de Tim Burton da Distinta Concorrência antes ainda, abriu as portas para o renascimento dos super-heróis no cinema cuja Era de Ouro parece estar sendo vivenciada agora mesmo, na segunda década dos anos 2000. Seguiram-se, então, X-Men, Quarteto Fantástico, Demolidor e Elektra, todos licenciados para a Fox e Homem-Aranha e Motoqueiro Fantasma, ambos licenciados para a Sony. Isso além do Hulk, claro, licenciado para a Universal.
Personagens Marvel que não podem ser usados em filmes da Marvel Studios
X-Men (todos) e todo o universo mutante (incluindo a menção a mutantes) – Fox
Personagens não-mutantes ligados ao universo dos mutantes, como Henry Peter Gyrich,Dra. Moira Kinross MacTaggert, Robert Edward Kelly, William Stryker e Bolivar Trask – Fox
Quarteto Fantástico (e seus inimigos como Doutor Destino e Toupeira, além de personagens ligados à mitologia, como Alicia Masters) – Fox
Galactus e Surfista Prateado – Fox
Os Baddoon e os Skrulls – Fox
Homem-Aranha (e todo o universo aracnídeo, incluindo inimigos, amigos, parentes e aliados com poderes de aranha, como Ben Reilly e outros) – Sony
Homem-Coisa – Lionsgate
Personagens Marvel na Zona Cinzenta
Feiticeira Escarlate e Mercúrio – Os gêmeos podem ser usados tanto pela Fox, por serem mutantes, como pela Marvel Studios, por serem membros antigos dos Vingadores. No entanto, a Marvel não pode fazer menção ao legado mutante deles e nem mesmo mencionar que são filhos de Magneto.
Namor – Recentemente, Kevin Feige disse que os direitos sobre o herói de Atlândida havia voltado para a Marvel, saindo da Universal. No entanto, o próprio Feige, depois, explicou que a situação desses direitos não é tão simples assim. Hoje, a situação é incerta.
Principais personagens licenciados que já voltaram para a Marvel
Blade – New Line
Capitão América, Thor, Pantera Negra, Punho de Ferro e Deadpool – Artisan
Thor – Sony (sim, ele foi licenciado em momentos diferentes para a Artisan e Sony)
Homem de Ferro – New Line
Hulk – Universal
Demolidor e Elektra – Fox
Motoqueiro Fantasma – Sony
Os Vingadores – Paramount (antes da Marvel ser adquirida pela Disney, todos os personagens que hoje fazem parte do chamado Universo Cinematográfico Marvel estavam com a distribuição de seus respectivos filmes amarrada à Paramount)
Cada licença dessas inclui não só os personagens em si como, também, uma espécie de “fatia ideal” do Universo Marvel correspondente ao personagem. Assim, a licença de Quarteto Fantástico cobre não só o Sr. Fantástico, o Coisa, a Mulher Invisível e o Tocha Humana, como, também, os vilões clássicos do grupo como o Doutor Destino e Galactus e personagens ligados à mitologia, como o Surfista Prateado. O mesmo vale para os X-Men, cuja licença, basicamente, engloba tudo que se relaciona a mutantes, o que, por si só, já é uma enormidade sem tamanho.
E, apesar de eu não ter lido os contratos celebrados, conheço um pouco da prática jurídica de acordos como esses e tais licenças são difíceis de serem encerradas. Basicamente, há um prazo para que o filme seja produzido e esse prazo é renovado a cada nova produção (leia-se continuação ou reboot com os personagens). Assim, se os estúdios licenciados demonstrarem interesse, é provável que eles nunca percam os direitos que obtiveram, desde que, claro, produzam os filmes nos prazos e paguem os royalties acordados.
Mas por que estou falando sobre isso tudo? Bem, meu ponto é que, com o filé mignon licenciado “para sempre” para terceiros, quando a Marvel resolveu começar seus próprios filmes, ela se viu diante de um impasse: que super-herói adaptar para o cinema? Afinal de contas, apesar do Homem de Ferro ser conhecido dos leitores, ele não era lá muito famoso fora desse círculo restrito. O mesmo valia para Thor e para Capitão América, esse último ainda com o agravante de ser um “símbolo” dos Estados Unidos, algo que, por si só, é suficiente para irritar muita gente (ridículo, eu sei, mas é a triste e idiota verdade).
Portanto, sem suas estrelas, a Marvel teve que administrar o risco. Partiu para as duas escolhas mais óbvias, acertando na mosca com o Homem de Ferro e patinando com O Incrível Hulk em termos de bilheteria, muito provavelmente em razão da obra anterior de Ang Lee, que serviu para literalmente “queimar o filme” do Gigante Esmeralda.
Dali em diante, a Marvel fez história com Thor, Capitão América e, claro, Os Vingadores, com filmes recheados de muita ação e produzidos com inteligência, quase que fora do esquema hollywoodiano comum de gastar muito dinheiro com tudo. Sob a liderança austera de Kevin Feige, a Marvel Studios vem triunfando a cada novo filme.
E isso me leva a Guardiões da Galáxia.
Quem raios já havia ouvido falar desse grupo? Pergunto às pessoas normais, claro, pois as anormais, como eu, já conheciam os Guardiões de longa data. Minha reação pessoal do lado racional de meu cérebro no momento do anúncio do filme, há dois anos foi: “pronto, é agora que a Marvel conhecerá seu primeiro retumbante fracasso”. Por outro lado, minha reação nerd/geek quase me causou um ataque cardíaco, pois eu JAMAIS poderia imaginar que algo tão obscuro como os Guardiões seria um dia adaptado para as telonas.
E não só foi adaptado como foi uma retumbante e completamente inesperado sucesso, daqueles de destruir diversos recordes de bilheteria para o mês de agosto e se tornar uma das maiores bilheterias de 2014, superando franquias estabelecidas como a de X-Men. Quem poderia imaginar, não é mesmo? Claro, muito do mérito vai para o marketing da Marvel, que vendeu o filme como algo independente e de tom cômico, mas o maior mérito mesmo vai para a qualidade da obra de James Gunn como um todo.
Mas será que a Marvel, em sã consciência, se arriscaria com uma franquia dos Guardiões da Galáxia se ela tivesse, a seu dispor, todos os heróis que hoje estão licenciados para terceiros? Claro que não! Imagine só a equipe criativa da Marvel chegando com material audiovisual para uma apresentação para a diretoria da Marvel e da Disney e falando que, apesar de o Quarteto Fantástico ainda não ter sido adaptado para o cinema, seria muito melhor ir na direção dos Guardiões da Galáxia. Não só a equipe seria sumariamente demitida, como também seria arrastada para fora da empresa em ambulâncias do manicômio mais próximo. Os executivos, em toda sua sapiência, contratariam uma outra equipe novinha em folha e determinariam que, primeiro, os heróis mais “importantes” deveriam ser completamente esgotados.
E vocês, prezados leitores, conseguem imaginar quanto tempo demoraria para isso acontecer? Provavelmente a vida inteira de nosso leitor mais novo. Afinal, considerando a estratégia de filmes solo intercalados de filmes de grupo, teríamos uma quantidade imensa de personagens para serem ordenhados até que não restasse muito mais do que osso, ao ponto de nem o fator de cura de Wolverine funcionar mais.
Com vários estúdios trabalhando ao mesmo tempo, o resultado é que o público tem mais herois à sua disposição nas telonas. Um estúdio sozinho, especialmente a Marvel Studios, ainda bem pequeno se comparado com gigantes (e, antes que me venham com “mas é a Disney” lembrem-se que eles ainda são tratados como um braço independente), jamais conseguiria “fabricar” filmes com a velocidade do Mercúrio. Muito ao contrário, as coisas seriam cambaleantes e lentas com o Blob, por mais consistentes que fossem.
Muitos reclamarão nesse ponto, achando que a Marvel Studios é genial e tal e só com eles é que os personagens teriam seus espíritos preservados. Gente, calma aí. Não há nada mais interessante que visões diferentes sobre um mesmo assunto. Se apenas um estúdio tivesse o controle sobre todos os heróis Marvel a aparência de todos os filmes seria basicamente a mesma. É como se um estúdio apenas fosse dona dos personagens DC e entregasse todos nas mãos de um diretor só, como, por exemplo completamente aleatório, o Zack Snyder. Opa, peraí…
Mas falando sério, homogeneizar é emburrecer, é nivelar por baixo, é fazer pouco com muito. Do jeito que a situação é hoje, temos mais, sempre mais. E sempre diferente. Claro, pode sair muita porcaria disso, como foi o caso de Demolidor (bem, pessoalmente acho o filme até razoável, na verdade) e Elektra (esse sim difícil de engolir), além do terrível X-Men Origens: Wolverine e dos fracos dois filmes do Quarteto Fantástico. Mesmo assim, há uma multiplicação natural da oferta, com mais sendo explorado por mais gente e de maneira diferente e que muitas vezes dá certo. Afinal, voltando para 1998, temos Blade, O Caçador de Vampiros pela New Line seguindo uma veia decididamente de terror, quase que fazendo uma homenagem à famosa revista Marvel Tumba do Drácula e, claro, X-Men: O Filme, no ano 2000, com uma releitura completa pela Fox dos heróis multi-coloridos para algo mais palatável e realista e que abriria as portas para a atual “era moderna” dos super-heróis no cinema.
Não fossem filmes como esses mostrando a viabilidade da produção maciça de filmes de super-heróis e o dinheiro gerado por essas licenças, ao mesmo tempo, retroalimentando a então Marvel Entertainment, a Marvel Studios não seria formada e jamais teríamos o Universo Cinematográfico Marvel que, na data em que escrevo esse artigo, é composto de 10 filmes fundamentalmente interligados, com outros 11 previstos até 2019. Da mesma maneira, muito provavelmente não teríamos a Warner anunciando Batman v Superman e outros nove filmes baseados em personagens DC até 2020, mesmo com um começo claudicante com o fracasso que foi Lanterna Verde e o bem-sucedido (mas não espetacularmente, como se esperava) Homem de Aço (não conto a trilogia de Batman de Christopher Nolan, pois ela antecede – por pouco – e ao mesmo tempo se mistura com o gigantesco boom dos super-heróis e, ainda por cima, ser algo a parte em termos de qualidade, apesar do terceiro capítulo).
Com isso tudo no horizonte, voltemos à minha tese: a Marvel, se tivesse disponível em suas mãos todo seu elenco super-heroístico, JAMAIS – e eu repito, JAMAIS – se arriscaria com personagens menores. E reparem uma coisa: quando digo “menores” estou também me referindo ao Homem de Ferro, Thor e até o Capitão América, pois, apesar de eles formarem a “Santíssima Trindade” Vingadora, assim como Batman, Superman e Mulher-Maravilha forma a “Santíssima Trindade” da Liga da Justiça, fato é que Homem-Aranha e X-Men eram infinitamente mais famosos do público em geral. Assim, se pudéssemos imaginar a tal reunião de diretoria que mencionei mais acima, ela provavelmente seria muito mais na linha de trabalhar até o esgotamento com o Aranha e com os mutantes do que tentar introduzir o Ferroso, o Deus do Trovão e o Bandeiroso para as massas. Coloque-se no lugar de executivos de qualquer empresa e a conclusão será a mesma: trabalhe com o óbvio, pois as chances do óbvio gerar mais dinheiro mais rápido são maiores. É exatamente o mesmo raciocínio da Warner/DC: se eu tenho Superman e Batman, porque raios eu faria um filme do Aquaman, do Monstro do Pântano ou até mesmo da Mulher Maravilha? Cifrões sempre falaram e sempre falarão mais alto do que a arte.
No entanto, privados de seus super-heróis mais vendáveis, a Marvel Studios teve que improvisar e, mesmo na improvisação, jogou da maneira mais segura possível. Escolheu seu herói “de segunda linha” mais reconhecível do grande público, mas que não tivesse uniforme ufanista. A escolha foi certeira e 2008 viu o surgimento do primeiro filme do Homem de Ferro, seguido da segunda adaptação do Hulk que, arrisco dizer, só não deu certo de verdade pela má vontade do público com o filme anterior de Ang Lee, com seu Hulk gordalhão, pintado de verde fosforescente e que luta com o “Homem Elétrico” e “Hulkães”… Além disso, ambos os filmes tinham pouca ligação entre si, funcionando de maneira independente e com cenas pós-créditos colocadas lá como um pensamento de último minuto (sim, foi literalmente isso que aconteceu).
E, com o sucesso gigantesco de Homem de Ferro, as escolhas seguintes foram cirúrgicas também, o que incluiu Homem de Ferro 2 feito a toque de caixa, Capitão América e Thor, tudo já em preparação a Os Vingadores. A essa altura, os filmes já faziam parte do Universo Cinematográfico Marvel tendo até fases definidas. Mas, mesmo considerando o sucesso alcançado, a pergunta permanecia no ar: o que fazer agora que já queimamos todos os cartuchos?
Aí sim, aquela reunião de diretoria com uma bela apresentação de PowerPoint falando sobre os Guardiões da Galáxia, Doutor Estranho, Homem Formiga e provavelmente outros, como Pantera Negra e séries de televisão fazendo parte do mesmo universo com personagens C, D e E como Luke Cage, Punho de Ferro e Jessica Jones começou a fazer todo sentido. As porteiras do gosto do público haviam sido abertas. Havia espaço para ousar.
E a ousadia foi literalmente para o espaço – o sideral – com Guardiões da Galáxia, que novamente abriu completamente as portas para possíveis novos personagens ganhando papeis coadjuvantes em futuros filmes ou mesmo filmes solo. Não é muito difícil imaginar, na seara cósmica, um futuro povoado por Nova, Capitão Marvel, Adam Warlock e outros e, na seara terráquea, heróis menos estabelecidos como o já mencionado Pantera Negra, Ms. (ou Capitã) Marvel, Vespa, Magnum, Quarteto Futuro, os Fugitivos, Mulher Hulk, Hércules, Mestre do Kung-Fu e um sem fim de outros. Nada é impossível ou mesmo improvável agora.
Mas seria se a Marvel tivesse os direitos sobre Homem-Aranha, Quarteto Fantástico e X-Men. Sabem aquele ditado que diz que “há males que vêm para o bem”? Pois é, esse é um daqueles casos em que, por mais absurdo que se possa imaginar, por mais herege que seja o pensamento, essa conclusão é absolutamente inevitável. Homem-Aranha? Não quero não. Prefiro ver algo mais improvável, menos óbvio, mais ousado, menos lugar-comum.
E é isso que decisões passadas da Marvel que parecem equivocadas na superfície representam: o futuro cinematográfico (incerto?) de personagens que, em circunstâncias normais, nunca pulariam para fora das páginas das HQs.
A bola foi levantada. Agora está na hora de vocês, leitores, cortarem!