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Crítica | “Chão” – Lenine

por Luiz Santiago
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estrelas 4,5

Lenine nasceu em Recife, em 1959. Sua infância foi cercada de um ambiente musical bastante favorável, onde conseguiu, via influência paterna, ter acesso a compositores clássicos da música erudita como Chopin e Rimsky-Korsakov, mas também à música secular, como alguns pilares da música brasileira (e essencialmente pernambucana, como Luiz Gonzaga), o pessoal da Tropicália e influências internacionais como Glenn Miller, bandas de momentos diferentes do rock, etc.

Mudando-se para o Rio de Janeiro no final dos anos 1970, Lenine já tinha a música como seu plano definitivo de carreira, e após dividir casa com amigos músicos e compositores, realizou um compacto em 1979, que não teria repercussão comercial, mas seria um início para uma carreira no Rio. O primeiro álbum, Baque Solto, veio em 1983, e o segundo e último compacto, Xarada, em 85. De lá para cá foram 10 álbuns lançados, sendo Chão, o 12º exemplar dessa discografia (segundo o site do cantor), o nosso objeto de análise.

Chão (2011), é a “volta” de Lenine ao pleno trabalho com a música e a melodia. Seu álbum Labiata (2008) acabou decepcionando alguns fãs, que esperavam um trabalho diferente, após o lançamento dos ao vivo InCité(2004) e Acústico MTV (2006). Até as composições do músico para o espetáculo BREU (2007), do Grupo Corpo, apontavam para diversificações musicais que não apareceriam plenamente em Labiata, daí a decepção de alguns. Particularmente gosto bastante do disco. Canções como Martelo BigornaLá Vem a Cidade e Excesso Exceto são impagáveis. A proposta geral do disco é não permitia um trabalho em outro caminho musical, tanto que o cantor chegou a dizer em entrevistas que seu próximo álbum apontaria para um “novo caminho de criação”, ele só não sabia qual. Esse novo caminho, como alguns devem saber, veio de um pássaro:

Estávamos gravando Amor é Pra Quem Ama e na hora de ouvir como ficou a gravação notamos que tinha havido o vazamento do canto do passarinho. Na hora que ouvimos descobrimos que o canto estava no tom da música e que o canário procurava o tom e mudava o gorjeio na hora certa da mudança de andamento da canção. Ficamos impactados com isso e decidimos pegar o microfone e gravar o canto do pássaro. A partir daí veio a ideia de colocar sons do cotidiano no disco. Tudo culpa do canário belga.

Lenine

Chão possui uma inventiva junção de sons em torno da vida cotidiana do cantor. Cada canção apresenta um objeto ou tipo de som diferente, trazendo uma contextualização mais “real” para a mensagem geral, sons esses que ajudam a marcar o andamento das músicas, uma vez que não há uso de bateria no álbum.

Chão é a primeira canção do disco, e usa os passos da artista visual Sofia Cesar percorrendo um chão de brita. Como esses sons não foram editados, há o imediatismo e naturalidade do movimento e sua inclusão até como indicação metafórica na faixa, uma experiência concreta e subjetiva (os passos como elemento concreto e sua relação com a canção + impacto em quem ouve como elemento subjetivo).

A belíssima Se Não For Amor Eu Cegue traz a respiração de Sofia Cesar e os batimentos cardíacos do filho de Lenine, Bruno Giorgi. É uma canção curta mas de uma concepção musical inteligentíssima, como um pequeno ciclo de acontecimentos, começando e terminando num mesmo “estágio”. Esse sentimento prossegue na faixa seguinte, Amor é pra Quem Ama, que como já foi mostrado antes, usa o pio do canário belga de nome Frederico. A canção teve como raiz um trecho da obra Grande Sertão: Veredas, que reproduzo abaixo em sua versão maior. O trecho negritado é citado literalmente na letra da canção:

Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente – o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.

Guimarães Rosa

Seres Estranhos é uma quebra no ambiente de paz e amor das duas canções anteriores. Uma máquina de lavar e uma bela guitarra chegam para expor o retrato mais que realista das pessoas que vivem à nossa volta. Uma chaleira é o objeto apresentado em Uma Canção e só. Vejo estreitas semelhanças entre essa faixa e a de número 9, De Onde Vem a Canção, que usa uma máquina de escrever e um metrônomo eu sua execução. De alguma forma, o mesmo eu lírico de Uma Canção e Só volta aqui, não para falar amorosamente sobre os motivos que o faz TER a canção, mas para filosofar sobre ela:

Pra onde vai a canção Quando finda a melodia? Onde a onda se propaga? Em que espectro irradia? Pra onde ela vai quando tudo silencia? Depois do som consumado Onde ela existiria?

Envergo Mas Não Quebro é uma mensagem pessoal, tendo uma motosserra como som contextualizador. De cara, foi a minha canção favorita do disco. Uma história verdadeira, trazendo pensamentos sobre o ser para o público e ser para si, além das conquistas pessoais, mesmo quando o exterior só queira ver o resultado pronto, nunca se importando com com processo – o que de certa forma é muito propício como reflexão para o próprio exercício da crítica.

Malvadeza usa as cigarras da Urca como “coro” para o lamento do eu lírico. É a única faixa do álbum que eu não gosto.

Tudo Que Me Falta, Nada Que Me Sobra, tem uma letra profunda, trazendo uma tristeza que caiu bem com o uso do bandolim como instrumento de acompanhamento mais marcante. Não deixa de ser uma declaração como a canção anterior, Malvadeza, mas aqui feita provavelmente em um outro estágio de sentimentos, o que é visível na ausência do lamento e na presença de uma atitude desafiadora diante da realidade.

O álbum termina com Isso é só o Começo, que Lenine pensou como início de seus shows para a turnê do disco, claro. A música pode ser interpretada como uma relação do músico com o seu público (aqui estamos, porém / num evento diferente / onde a gente se entretém / um ao outro, frente a frente) ou do homem com o meio ambiente (aqui chegamos, enfim / a um ponto sem regresso / ao começo do fim / de um longo e lento processo). Além dessas relações, há a junção de todos os objetos e sons utilizados nas canções anteriores, o que traz uma imensa ambientação sonora, cabendo a quem ouve voltar e tornar a ouvir para poder atentar com mais atenção a cada detalhe que possa ter perdido.

Chão foi certamente um dos maiores lançamentos fonográficos brasileiros de 2011, e o melhor disco de Lenine desde o Acústico MTV. Um álbum para ser ouvido com sensibilidade e em loop.

Chão
Artista: Lenine
País: Brasil
Lançamento: 1º de janeiro de 2011
Gravadora: Universal Music
Estilo: MPB

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