Para chegar a esta amostragem de dez (10) escolhidos, ela surge de um total de vinte e sete (27) novos filmes vistos no Olhar de Cinema 2022, sendo dezessete (17) deles longas-metragens e dez (10) curtas-metragens. Do número total, preciso dizer que particularmente onze (11) deles me interessaram muito e mexeram com minha sensibilidade, mais cinco (5) me interessam em intensidade menor e, infelizmente, os outros onze (11) são obras que não provocaram grandes sentimentos em mim ou até me incomodaram enquanto espectador — por motivos que vão de caso a caso, obviamente. Assim, antes de ir para a lista, faço as seguintes menções honrosas: Alan (Daniel e Diego Lisboa), que é o 11º filme a completar esta minha “primeira prateleira” de interesse; e depois acho que há também boas experiências em Quente de Dia, Frio à Noite, Freda, O Grande Movimento, Cinzas Digitais e Infantaria.
Além disso, a seleção deste ano do Olhar estava bastante convidativa para filmes “clássicos” (antigos), com uma mostra especial para a cineasta Su Friedrich e mais diversas outros filmes que orbitavam e dialogavam com sua filmografia. Como cinéfilo, se pudesse, teria passado o Festival inteiro com eles, mas tinha obrigações com os lançamentos. Ainda assim, pude ver 5 filmes clássicos no festival, que não considerei para o ranking, mas vale a citação: De Certa Maneira (Sara Gómez, 1974); A Concha e o Clérigo (Germaine Dulac, 1928); Pelo Rio Abaixo (Su Friedrich, 1981); Nade ou Afunde (Su Friedrich, 1990) e At Land (Maya Deren, 1944). Sobre eles, mais especificamente sobre os filmes de Dulac e Deren, falo um pouco sobre minha experiência com o silêncio em uma sala de cinema no post de diário de viagem.
Como aqui é o espaço para falar dos filmes como um único organismo, faço uma tentativa de análise curatorial. Foi percebido por mim e outros colegas críticos como diversas obras se comunicaram por uma grande sensação de imobilidade, com personagens que, ainda que em universos completamente diferentes, não conseguem sair de seu estado inicial, em narrativas que dão uma volta cíclica para, quando chegarem ao seu final, estarem no mesmo lugar de seu ponto de partida. Neste sentido, os contextos podem ser os mais distintas, como raízes com as terras ameríndias (A Ferrugem, O Grande Movimento), os laços familiares e culturais (Freda), o sentimento pandêmico (Coma, Vai e Vem), uma criação em uma estrutura de classe e gênero (Paterno, Casa Vazia) ou a situação econômica local (Quente de Dia, Frio à Noite).
Em um mundo que caminha para uma lento “desmame” da sua situação de isolamento total, talvez tenha se escolhido diversas dessas obras para dialogarem com a sensação de inércia no contexto pandêmico, da vida e do próprio Cinema que não conseguem andar para frente, presos em looping, sem saída de suas situações. É muito interessante assistir aos filmes um seguido do outro e ir reparando os diálogos invisíveis entre todos eles, mas por outro lado há um efeito colateral desta sensação gerada por assistir a uma grande “sessão única” sobre inércia. Afinal, quando estou assistindo ao 3º ou 4º filme protagonizado por um personagem que continua preso a um limbo, passo a me sentir desgastado com sua situação, querendo ver alguma injeção de ânimo ou saída, uma obra que pareça caminhar em direção ao futuro ou sair do lugar. Então, talvez até possa ter acontecido de eu ter visto um filme que, se fosse absorvido isoladamente, fora de um contexto de festival, não me desagradaria tanto, mas estando no meio da seleção me gerou impaciência.
Sem mais delongas, o top 10, todos com críticas escritas durante a cobertura, que podem ser lidas clicando nos respectivos links.
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10º Lugar: Filme Particular
Navegar pela internet é como estar diante de um grande mapa mental digital, com diversas informações conectadas por uma única rede, inclusive com o risco de se perder neste labirinto informacional. Dentro desta perspectiva, Janaína parece utilizar conscientemente deste lado, fazendo questão de compartilhar os vários becos sem saída que chega, não dando apenas respostas em seu filme, mas principalmente deixando muitas dúvidas. Ao existir em um terreno obscuro, Filme Particular também acaba por jogar luz ao fato de que o Apartheid na África do Sul também possuí muitas áreas que não foram atingidas pela História oficial, precisando a diretora recorrer até a thread no Twitter.
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9º Lugar: Falta Pouco
Por fim, é justamente nos minutos finais que o filme narrativo finalmente parece existir, sendo como se todo o processo que culminou nele existiu previamente antes não fizesse parte em si de Falta Pouco, mas de um momento anterior, dos bastidores de um processo criativo. Então, estaria aí até uma ideia irônica de concepção do desktop movie, que é tão disperso por sua natureza, em um processo que leva a tantos desvios e obcecados com pistas falsas que, ao final, quando o verdadeiro filme irá começar, ele acaba. Assim, Wellington Sari avança em uma série de movimentações que parecem conscientemente contraditórias, porque para depois ir em uma nova direção. Falta Pouco não é um filme-resposta e tratado definitivo sobre o tema, mas joga boas provocações.
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8º Lugar: Verão
É claro que é possível falar de Verão por meio de várias associações metafóricas que ele possibilita, como dizer que sua própria lógica anti-narrativa mimetiza o tédio e a solidão juvenil, mas este parece ser um caminho mais óbvio a ser pensado de um filme que é muito mais complexo e livre de gramáticas pré-estabelecidas em suas experimentações. Há, por exemplo, uma conquista muito possibilitadora a partir da opção em filmar por câmeras amadoras com imagens de baixa qualidade (algo como os filmes de João Pedro Faro são no Brasil), que trazem novas texturas as imagens, transformando o cotidiano em um mundo cru de ruídos e incomunicável, o que também permite uma aproximação com uma ideia de abstração dos espaços, deslocalizando o que se vê de uma temporalidade.
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7º Lugar: Coma
Em um epílogo, após encerrar a narrativa e quebrar sua imersão, o realizador volta a se comunicar, como uma carta visual, diretamente com sua filha (que também serve como ponto de identificação ao público). Ainda que óbvia tanto em sua intenção, há um efeito curioso como o despertar ao fim de qualquer narrativa (fílmica, teatral etc.), sonho ou, obviamente, um coma (não é tudo igual?). É como se naquele momento, o coma pandêmico acabasse e com ela fosse embora todo o estado de alienação, com os problemas já existentes do mundo, que não se pausaram durante estes dois anos, voltassem a se impor frontalmente diante da câmera. Enquanto o mundo acaba e uma montagem reflete um fluxo de imagens nada otimistas de catástrofes naturais (degelo, queimadas, tornados, vulcões em erupções, etc.), um pai se declara para uma filha.
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6º Lugar: Garotos Ingleses
Enquanto isso, trazendo a problemática para um diálogo com o presente, Curvelo filma Sampaio gravando um vídeo pedindo ajuda para a “vaquinha” para o enterro de um amigo LGBTQIA+ que faleceu de COVID e estava com dificuldades de ser viabilizado, o que potencializa mais ainda a tese inicial do filme sobre a barreira invisível desses espaços. É aí que Jovens Ingleses começa a encontrar uma maior melancolia, ao ressoar o medo de morrer em seus realizadores, que vão encontrando uma forma de extravasar e canalizar seus temores em gritos raivosos contra a injustiça do Cemitério dos Ingleses, gritando em direção ao mar. Não basta só ter medo de morrer, mas de não ter lugar para isso.
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5º Lugar: Geografias da Solidão
Na verdade, em Geografias da Solidão, Jacquelyn Mills consegue conciliar uma ideia própria de simbiose entre o poético e o científico, em que se usa imagens poéticas para fazer apontamentos científicos, assim como se usa da ciência para criar poesia nas imagens. Sob esse segundo aspecto, Mills se utiliza de olhares microscópicos sob pequenos animais (um besouro; um caracol) e uma tecnologia que permite criar uma trilha sonora a partir dos eletrodos de seus movimentos. Quando se escuta aquela música, feita pela própria natureza, não resta dúvidas de que a arte e a ciência andam lado a lado. Já quando Mills usa de imagens do próprio filme em 35mm, enquanto objeto físico e com textura, para colar os balões de plástico nele, a parte política e científica do documentário se manifesta visceralmente e poeticamente nas próprias imagens.
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4º Lugar: Mal di Mare
Afinal, para quem essa arte é feita? Mais uma vez, o aprisionamento veio de outra forma, até no pós-vida — “I see dead people”, momento em que João usa a frase de O Sexto Sentido, para evocar o estado de ser um homem morto vagando naquele lugar. Trata-se de um confronto com quem está naquele local, mas que perpassa também o espectador geral de arte. Mal di Mare é um manifesto político cinematográfico no sentido de que sua câmera existe como objeto que interage com o mundo, em que sua própria presença existe para gerar um mal estar em um lugar, em que o ato de filmar quer provocar fagulhas. Logo, o que faz seu diretor, João Vieira Torres, é realizar uma espécie de contra-ataque em que expurga seus sonhos: se os homens brancos são fantasmas em seus pesadelos, agora ele é um fantasma que atormenta seu espaço real e o status quo da arte.
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3º Lugar: O Trio em Mi Bemol
Honestamente, apenas por uma primeira sessão, é difícil sentir a confiança para ser mais preciso sobre a relação da metalinguagem presente, ainda que sua presença seja um objeto estranho intrigante, que parece fazer de todo o filme um grande ensaio, até chegar no único momento genuíno (ou será que não?) — que é a hora de escutar o Trio em Mi Bemol. Ou será que o próprio filme é consciente de ser um jogo sobre onde está a sua autoria? Em Rohmer, em Rita, em Arrieta ou nos próprios atores? No mais, este é um grandiosíssimo filme de mise-en-scène formalista, em que os atores se movimentam no plano como peças de xadrez, em que seus gestos e mudanças na voz são tão essenciais à narrativa quanto ao que é dito, assim como a dilatação temporal das cenas, mais os suaves movimentos e reenquadramentos de Rita pelos décors.
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2º Lugar: Poeta
Sabendo que o diretor cazaque Darezhan Omirbayev era um nome celebrado entre colegas cinéfilos há um bom tempo, quando foi anunciado que seu novo filme estaria na edição de 2022 do Olhar de Cinema, tentei aproveitar a oportunidade para assistir a um longa anterior de sua filmografia ainda desconhecida por mim. O único que consegui ver foi o maravilhoso exercício bressoniano Tueur à gages, de 1998. Sua história acompanha um homem que causa um leve acidente de carro e, para reparar o dano, entra em uma espiral de endividamento em sua busca por dinheiro. Com um protagonista silencioso, Omirbayev faz da jornada de desgraça daquele homem uma oportunidade para refletir sobre o meio predatório e sem saída que é o capitalismo global para a classe econômica de baixa renda. Em, 2022, com O Poeta, o seu protagonista possui um papel similar no mundo ao seu redor, mas com o diretor trocando o foco da economia para a arte. Atividade com risco de extinção, que parece a cada vez menos ter espaço e visibilidade no mundo físico, ser um poeta ou escritor em tempos de tecnologia e do business faz daquele indivíduo, artesão das palavras, quase que um corpo estranho no universo.
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1º Lugar: Os Primeiros Soldados
Ao fim, uma cena como essa jamais existirá, porque gradualmente o filme vai eliminando todas as suas repressões. Durante Os Primeiros Soldados, o corpo possui papel muito fundamental, em todos os aspectos. É o corpo que reflete os impactos físicos da AIDS e revela as fragilidades da existência humana. É o corpo que sofre angústias e esconde sentimentos. É o corpo que sente o calor humano por um beijo. É o corpo que se comunica por uma performance. Somos todos carne, para o bem e para o mal, não há porque ter vergonha ou medo do que se vê, até por isso as imagens dos machucados de Suzano nunca são feitas para chocar ou gerar desconforto. No fim, quando parece que resolve todas questões mundanas, há um avanço para um espírito de continuidade, com as cinzas sendo jogadas e um beijo selando o pacto de um novo ciclo.