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Lista | Os Melhores Filmes de 2021

O que vocês viram de melhor nos cinemas este ano?

por Luiz Santiago
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Como é de praxe, aqui estamos fazendo a nossa listinha de melhores filmes do ano! Foram elegíveis para as listas, apenas: o que foi oficialmente lançado nos cinemas brasileiros em 2021 + o que foi lançado nos streamings e VODs OFICIALMENTE acessíveis no Brasil em 2021 (ou seja, HBO Max, Hulu e iTunes com conta americana estiveram fora) + o que saiu em Festivais de 2021 que foram OFICIALMENTE feitos no Brasil ou OFICIALMENTE acessíveis a partir do Brasil.

E aí, o que acharam das nossas listas? Com qual ou quais listas você se identificou mais? Pegaram algumas dicas de filmes para assistir? Quais filmes das listas mais surpreenderam vocês por constarem em uma postagem de “melhores do ano”? Não deixem de comentar e deixar também o seu TOP 10!


LUIZ SANTIAGO

Segundo ano de pandemia, mais uma caminhada verdadeiramente estranha de se viver. Pelo menos foi o momento em que eu retornei aos cinemas! Passei 1 ano, 8 meses e 6 dias sem pisar os pés numa grande sala, e voltei, com o coração batendo forte, para ver A Crônica Francesa, no final de 2021. Que maravilha é retornar à casa, não é mesmo? De todo modo, foi um ano em que vi um número bem menor de filmes, se comparado às minhas experiências anteriores. Mas a lista saiu, e é isso o que importa. Vamos a ela!

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10º – Isso Não É um Enterro, É uma Ressurreição

Lemohang Jeremiah Mosese – Lesoto, África do Sul, Itália, 2019

O luto, a resistência, o lado íntimo, poético e aliado ao sobrenatural — pedindo a chegada da morte — descortina a ligação que a protagonista do filme, assim como toda a aldeia, tem com o que herdaram de seus antepassados e que pretendem deixar para os seus descendentes. Há excelentes momentos visuais nesse filme e vale destacar a belíssima direção de fotografia em cenas à noite ou durante o crepúsculo. Para mim, foi a primeira experiência com um filme de Lesoto e uma que me deixou uma excelente primeira impressão. Lutar pelo que é seu, não pelo valor material, mas emocional, acaba sendo o mote do filme. Uma forma de garantir o pouco que resta da identidade do indivíduo com o espaço onde nasceu e cresceu e chegar ao momento onde a mudança de atitude abandona a morte e ressuscita a vontade de reconquistar o que aparentemente se perdeu.

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9º – Annette

Leos Carax – França, Alemanha, Bélgica, EUA, México, Japão e Suíça, 2021

Após um longo hiato, Annette pode representar uma tentativa de Carax de seguir em frente, transferindo suas dores para essa peça artística. A cena pós-créditos, em que ele caminha com balões abraçado em Nastya e junto da equipe de produção, indica isso. Carax está se permitindo amar intensamente de novo. Amar a filha, amar o legado da esposa e amar a arte. Que o diretor francês não nos deixe, novamente, tanto tempo esperando.

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8º – A Mulher Que Fugiu

Hong Sang-soo – Coreia do Sul, 2020

De modo oposto às mise-en-scènes dos encontros femininos, que se passam em locações interiores, Song retrata os três homens que aparecem em cena em ambientes exteriores. Eles estão sempre organizados da mesma forma: de costas para a câmera, enquanto a mulher está de frente para ele (e a câmera). Da horizontalidade do diálogo feminino para a verticalidade do confronto. Os homens surgem não como pessoas individualizadas (pouco vemos de seus rostos), mas um mal sem face que atormenta a vida daquelas mulheres e que precisam ser encarados frontalmente por elas. Eles são insistentes diante da negativa e as mulheres perseveram em suas afirmações. Agora, importa que o espectador as veja justamente porque é o momento de afirmação delas. Elas estão expulsando os problemas de suas vidas e, ainda que não possam fugir, podem ter pequenas vitórias nas batalhas cotidianas.

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7º – A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas

Michael Rianda, Jeff Rowe – EUA, Canadá, França, 2021

A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas não decepciona em sua viagem apocalíptica, garantindo um divertimento que terá diferentes pesos dependendo da idade e cinefilia do espectador. Penso que o arco dos robôs poderia ter uma costura com mais detalhes, ao lado da vilã PAL; e também vejo a passagem do apocalipse para o “mundo normal” como rápida demais, com tudo voltando ao lugar muito cedo. O que nos fica, todavia, é o enorme sorriso no rosto e uma vontade de que esses mesmos produtores continuarem investindo em obras que não se contentam em jogar apenas com ingredientes vitoriosos na animação, aliados a uma excelente qualidade imagética e a um marketing agressivo. Bons filmes, como sempre, se fazem assim: com bons diretores e roteiristas tendo liberdade para colocar sua loucura para fora. Nós e o cinema só temos a ganhar com isso.

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6º – O Leopardo das Neves

Marie Amiguet, Vincent Munier – França; 2021

Talvez por isso o final de Leopardo das Neves seja tão potente emocionalmente, justamente pela consciência de que sua aparição se dá em uma circunstância quase que milagrosa, como o destino quisesse que aqueles homens cruzassem frontalmente com aquele animal raro no mundo. Se o plano e contraplano de uma troca de olhares é um dos recursos mais usados da história do Cinema, seu uso aqui é especial, pois ele ressignifica toda a lógica do filme em mostrar esses homens tentando estar um passo à frente da natureza. O contraplano não é o leopardo das neves, mas sim o homem. Se ele achou que estava observando esse tempo todo, na verdade era ele que estava sendo observado. Com seu olhar de superioridade que é mais significativo do que qualquer palavra dita, aquele animal tão majestoso deixa claro: os verdadeiros selvagens somos nós.

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5º – À L’abordage

Guillaume Brac – França, 2020

Comentário do Michel: A reflexão é o fenômeno que consiste no fato de a luz voltar a se propagar no meio de origem, após incidir sobre uma superfície de separação entre dois meios. Refração é o fenômeno que consiste no fato de a luz passar de um meio para outro diferente.” Apropriando-me dos conceitos da física, estava pensando aqui que existem dois tipos de filme: os que fazem reflexão e os que fazem refração. Há filmes maravilhosos que assistimos e ficamos pensando neles próprios, enquanto Cinema. Pensamos no quão genial é a sua realização, naquela direção, no quanto a gente ama o Cinema e suas possibilidades, ficamos com vontade de escrever textos analisando sua mise-en-scène, seus subtextos e temas. Mas há também os filmes reflexivos, e À L’Abordage é um deles. A luz vem da realidade, bate no Cinema, e volta para a realidade. É um paradoxo crítico: eu não tenho vontade de escrever sobre a “obra de arte” À L’Abordage! e nem de ficar gastar meu tempo pensando nele enquanto Cinema. Assim que o filme acaba, diferente dos filmes refratários, eu não quero continuar pensando pra dentro, eu quero ir para o mundo lá fora, viver a vida, ser feliz, estar no mundo empírico, não quero ficar na teoria. Não há nada para se falar deste filme, tudo já está falado. É vida enquanto sentimento contagiante que se espalha pela tela e ocupa cada fotograma. Milagres como esse acontecem de vez em quando e devemos ser muito grato a estes espelhos que nos lembram como o mundo pode ser um lugar tão bonito para se viver e não só ver através de uma tela.

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4º – Matrix Resurrections

Lana Wachowski – EUA, 2021

Matrix Resurrections é um filme que discute sua existência e sua realidade antes de nos contar sua história principal. Lana Wachowski teve um cuidado magistral em fugir do sistema hollywoodiano com a autoconsciência e a autocrítica no seu roteiro sarcástico e cínico, em um dos filmes mais surpreendentemente divertidos do ano. E após essa proposta mais corajosa e complexa, Resurrections se torna um filme de beleza simples dentro de um blockbuster de ação competente. O romance tem menos qualidade por ser convencional, mas a química da dupla é palatável e Lana conduz sua trama de paixão com uma virtude poética emocionante. É uma história reconfortante sobre o poder do amor. Ao final, Neo e Trinity voam se agarrando a uma segunda chance.

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3º – Ataque dos Cães

Jane Campion – Reino Unido, Austrália, EUA, Canadá, Nova Zelândia, 2021

Seja em Montana, em 1925, ou em qualquer lugar do mundo em nossos dias, o que muitos indivíduos deixam escapar é algo que a sabedoria popular já desmistificara há tempos, e cuja lição parece não ter sido plenamente aprendida: “as aparências enganam” — frase que vale igualmente para quaisquer padrões sociais. Em ambientes de hostilidade e preconceito para com pessoas mais fracas, diferentes ou em menor número, isso é ainda mais sentido. Em obras como esta aqui, onde os personagens são verdadeiramente estudados, é possível ver o que está além da face, do corpo, da expressão, daquilo que se mostra para o mundo. E, como alguém em Ataque dos Cães descobre de forma bastante letal, há muita força e muita coragem em corpos aparentemente frágeis e delicados. Aquele surpreso amargor em meio à doçura que pega a todos de surpresa… muitas vezes tarde demais.

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2º – First Cow – A Primeira Vaca da América

Kelly Reichardt – EUA, 2019

O passado de dois indivíduos colocam-nos em uma trilha que os faz mudar a vida um do outro. Conectar-se num mundo de difícil contato é a chave para se entender First Cow, chamando a nossa atenção para as diferentes camadas ou intensidade de contato. Há uma grande tensão no desenvolvimento em meio a tanta beleza visual, e a obra termina com uma reticência, sem responder visualmente “como” os dois amigos morreram, embora possamos subtender isso pelo roteiro. Eu não gosto da introdução da fita, porque mesmo a sugestão narrativa de uma futura conexão entre indivíduo e meio (talvez até com um chamado à memória ou às surpresas do acaso), não vejo como ela se justifica orgânica e dramaticamente no filme, mas o que verdadeiramente importa aqui é a lenta e aplaudível contemplação para um recorte da vida de dois homens, sua busca por um sonho de vida, os mistérios de seu passado e o impacto que causaram no mundo em que viveram. Fuga, encontro, convivência e fim da linha. Um ciclo de beleza e representações da existência humana em um faroeste sensível e inesquecível.

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1º – Sr. Bachmann e Seus Alunos

Maria Speth – Alemanha, 2021

Não é possível chegar ao final desse filme sem uma forte pontada de melancolia e tristeza por ter que se despedir de todos. Aprender é um processo plural e pode ir do trauma ao pleno prazer, dependendo da matéria, do tema, do professor, da classe ou da escola — e nesse filme temos uma comprovação vívida disso. A minha vontade era a de dar um abraço em cada um dos alunos e professores, reservando um bom tempo para longas conversas com Dieter Bachmann. Esta produção vai para a lista dos filmes capazes de transformar pessoas. Certeza que fará parte de muitos cursos de educação daqui para frente, e não é para menos. Seja na forma honesta como essa realidade é cinematograficamente registrada, editada e apresentada; seja pelo conteúdo que vemos na tela, o que encontramos aqui é um verdadeiro mar de bons exemplos, dando uma boa visão do que pode ser uma educação humana, com equidade, amor e alta capacidade de fazer com que o conteúdo e os melhores valores para uma boa convivência em sociedade sejam de fato aprendidos.

KEVIN RICK

Pelo que me lembro da minha curta trajetória como cinéfilo, 2021 é provavelmente o ano mais fraco no Cinema. Talvez tenha perdido alguns lançamentos importantes, como Amor, Sublime Amor e Noite Passada em Soho, mas fiquei com a sensação que, seja por conta da pandemia ou desta crescente de blockbusters nostálgicos, tivemos o ano mais fraquinho para a Sétima Arte na memória recente. Mas, como sempre, há joias a serem encontradas.

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10º – O Último Duelo

Ridley Scott – EUA, 2021

Por fim, O Último Duelo acaba sofrendo de um desequilíbrio narrativo e de montagem, reflexo da corajosa e intrigante abordagem doméstica de diferentes perspectivas de um evento polêmico, inseridos em um épico medieval, sempre em desconstrução do que esperamos do gênero. Algumas sequências em repetição poderiam ser cortadas ou diminuídas para dar espaço a algumas subtramas e personagens mal desenvolvidos, especialmente para expandir a história de Marguerite, mas o saldo continua positivo. Acho Ridley Scott meio passivo e automático (até à mercê da montagem) no filme, mas o diretor é excepcional quando as espadas colidem, assim como quando necessita causar repulsa. Envolvido em seu drama, esta repulsa e indignação nascem em O Último Duelo de um tremendo exame multifacetado sobre poder e privilégio masculino, espelhando seus temas e ato final em uma moral e reflexão entre dois períodos que podem não ser tão distintos como pensamos.

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9º – A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas

Michael Rianda, Jeff Rowe – EUA, Canadá, França, 2021

A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas não decepciona em sua viagem apocalíptica, garantindo um divertimento que terá diferentes pesos dependendo da idade e cinefilia do espectador. Penso que o arco dos robôs poderia ter uma costura com mais detalhes, ao lado da vilã PAL; e também vejo a passagem do apocalipse para o “mundo normal” como rápida demais, com tudo voltando ao lugar muito cedo. O que nos fica, todavia, é o enorme sorriso no rosto e uma vontade de que esses mesmos produtores continuarem investindo em obras que não se contentam em jogar apenas com ingredientes vitoriosos na animação, aliados a uma excelente qualidade imagética e a um marketing agressivo. Bons filmes, como sempre, se fazem assim: com bons diretores e roteiristas tendo liberdade para colocar sua loucura para fora. Nós e o cinema só temos a ganhar com isso.

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8º – Um Lugar Silencioso: Parte II

John Krasinski – EUA, 2020

A escolha para o final abrupto foi ainda mais arriscada que a introdução de Emmett ou a colocação de mais uma fraqueza para as criaturas. Por um lado, dá a impressão de estarmos diante de uma história que precisa de mais alguma coisa. Por outro, mostra um diretor que sabe escolher bem o que vem depois do clímax e, por saber escolher bem esse momento, pode se dar o luxo de não encerrar de verdade a história, deixando as reticências como uma espécie de aperitivo pelo que (possivelmente) vem adiante. Isso pode ser algo problemático para alguns espectadores, mas para mim, funcionou que foi uma beleza. Num mundo onde o silêncio é a garantia de vida, encerramos esse capítulo com um grande barulho.

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7º – Identidade

Rebecca Hall – EUA, 2021

Identidade descasca seus temas complexos sem reverberá-los, apenas usando de refusa e omissão visual, de conversações e das performances. Essa falta de impulso narrativo proporciona um tom monótono ou até confuso em determinadas situações, mas Rebecca Hall cria uma exibição primorosa de técnica e discurso que se envolvem em torno de uma experiência específica: a de “passar”, não apenas no contexto histórico que dá base ao filme ou dessas personagens, mas de um fator humano e social que sempre circula o fingimento. Chega a ser irônico como o longa fala tanto sem realmente dizer tanto. No fim, nem o desfecho é nítido – suicídio, assassinato ou acidente?. Só resta a morte cercada da pureza da neve. A beleza superficial escondendo a realidade cruel.

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6º – Em Um Bairro de Nova York

Jon M. Chu – EUA, 2021

Em um Bairro de Nova York é uma produção muito gostosa de se ver, com excelente música e números de dança, além de ter uma história central que fala a todos nós. Porque todos sonhamos, todos temos histórias de grandes obstáculos percorridos. E todos conseguimos, pelo menos alguma vez, uma vitória. A sensação de alegria e ao mesmo tempo a percepção de que essa luta é “uma luta para toda a vida” é a cara do filme, que faz um aplaudível recorte da cultura latina em um bairro de Nova York, colocando na tela as faces, as palavras e algumas histórias de uma porção desses indivíduos. Um filme que poderia conseguir muitíssimo mais do que realmente conseguirá com arrecadação e destaque na temporada de premiações… se não fosse o obtuso massacre que andam fazendo à obra, acusando-a de cometer colorismo contra afro-latinos. Mas isso é assunto para um Plano Polêmico. Até breve!

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5º – Duna

Denis Villeneuve – EUA, Canadá, 2021

Denis Villeneuve é um dos grandes diretores da geração atual e ele vem se mostrando cada vez mais adepto do mantra Bene Gesserit que diz que o medo mata a mente, que é a pequena morte que leva à aniquilação, mesmo amargando fracassos de bilheteria como injustamente aconteceu com seu Blade Runner 2049. Sua aposta com Duna foi arriscada, pois, apesar de ser um livro conhecido, é uma obra longa, hermética e que relativamente pouca gente realmente leu e a divisão em dois filmes é outro elemento que só traz potenciais complicações para o futuro – espero! – da franquia cinematográfica. No entanto, se havia um nome para capitanear essa empreitada difícil, era o do canadense e o resultado a que ele chegou, considerando todas as escolhas que fez, especialmente a ousadia de reduzir o foco do gigantesco épico à jornada de um jovem tentando achar seu caminho, não é menos do que impressionante, com chances de o conjunto final, se o segundo filme sair mesmo (que Shai-Hulud ilumine o caminho!), ser superior às partes separadas.

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4º – Matrix Resurrections

Lana Wachowski – EUA, 2021

Matrix Resurrections é um filme que discute sua existência e sua realidade antes de nos contar sua história principal. Lana Wachowski teve um cuidado magistral em fugir do sistema hollywoodiano com a autoconsciência e a autocrítica no seu roteiro sarcástico e cínico, em um dos filmes mais surpreendentemente divertidos do ano. E após essa proposta mais corajosa e complexa, Resurrections se torna um filme de beleza simples dentro de um blockbuster de ação competente. O romance tem menos qualidade por ser convencional, mas a química da dupla é palatável e Lana conduz sua trama de paixão com uma virtude poética emocionante. É uma história reconfortante sobre o poder do amor. Ao final, Neo e Trinity voam se agarrando a uma segunda chance.

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3º – A Lenda de Candyman

Nia DaCosta – EUA, 2021

Político, A Lenda de Candyman também é um filme sobre a gentrificação cada vez mais rotineira e descaradamente violenta em nossa sociedade. E não é coisa apenas dos Estados Unidos não, basta lembrar de incêndios criminosos por aqui, aparentemente conectados com a especulação imobiliária tão ansiada pela elite despreocupada com as vidas que envolvem projetos do tipo. Oriundo de “gentry”, expressão em língua inglesa que designa pessoas que fazem parte de espaços nobres e elitizados, o termo delineia o processo de modificação do espaço urbano, geralmente as áreas periféricas, remodeladas para atender aos interesses imobiliários que transformam esses espaços em centros comerciais ou redutos domésticos para as classes mais favorecidas, na maioria das vezes, desconsiderando os habitantes que geralmente não tem mais opções para essa espécie de diáspora urbana massacrante.

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2º – First Cow – A Primeira Vaca da América

Kelly Reichardt – EUA, 2019

O passado de dois indivíduos colocam-nos em uma trilha que os faz mudar a vida um do outro. Conectar-se num mundo de difícil contato é a chave para se entender First Cow, chamando a nossa atenção para as diferentes camadas ou intensidade de contato. Há uma grande tensão no desenvolvimento em meio a tanta beleza visual, e a obra termina com uma reticência, sem responder visualmente “como” os dois amigos morreram, embora possamos subtender isso pelo roteiro. Eu não gosto da introdução da fita, porque mesmo a sugestão narrativa de uma futura conexão entre indivíduo e meio (talvez até com um chamado à memória ou às surpresas do acaso), não vejo como ela se justifica orgânica e dramaticamente no filme, mas o que verdadeiramente importa aqui é a lenta e aplaudível contemplação para um recorte da vida de dois homens, sua busca por um sonho de vida, os mistérios de seu passado e o impacto que causaram no mundo em que viveram. Fuga, encontro, convivência e fim da linha. Um ciclo de beleza e representações da existência humana em um faroeste sensível e inesquecível.

 

1º – Ataque dos Cães

Jane Campion – Reino Unido, Austrália, EUA, Canadá, Nova Zelândia, 2021

Seja em Montana, em 1925, ou em qualquer lugar do mundo em nossos dias, o que muitos indivíduos deixam escapar é algo que a sabedoria popular já desmistificara há tempos, e cuja lição parece não ter sido plenamente aprendida: “as aparências enganam” — frase que vale igualmente para quaisquer padrões sociais. Em ambientes de hostilidade e preconceito para com pessoas mais fracas, diferentes ou em menor número, isso é ainda mais sentido. Em obras como esta aqui, onde os personagens são verdadeiramente estudados, é possível ver o que está além da face, do corpo, da expressão, daquilo que se mostra para o mundo. E, como alguém em Ataque dos Cães descobre de forma bastante letal, há muita força e muita coragem em corpos aparentemente frágeis e delicados. Aquele surpreso amargor em meio à doçura que pega a todos de surpresa… muitas vezes tarde demais.

RITTER FAN

Nem acredito que essa foi a lista mais difícil de todas que fiz de 2021. Olhando em retrospecto, o ano não foi particularmente espetacular, mas ele foi um fenômeno em termos de musicais e todos os recortes que montei continham diversas obras do gênero, até mais do que as que acabei deixando na versão final, nada menos do que quatro e um deles em primeiro lugar.

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10º – A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas

Michael Rianda, Jeff Rowe – EUA, Canadá, França, 2021

A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas não decepciona em sua viagem apocalíptica, garantindo um divertimento que terá diferentes pesos dependendo da idade e cinefilia do espectador. Penso que o arco dos robôs poderia ter uma costura com mais detalhes, ao lado da vilã PAL; e também vejo a passagem do apocalipse para o “mundo normal” como rápida demais, com tudo voltando ao lugar muito cedo. O que nos fica, todavia, é o enorme sorriso no rosto e uma vontade de que esses mesmos produtores continuarem investindo em obras que não se contentam em jogar apenas com ingredientes vitoriosos na animação, aliados a uma excelente qualidade imagética e a um marketing agressivo. Bons filmes, como sempre, se fazem assim: com bons diretores e roteiristas tendo liberdade para colocar sua loucura para fora. Nós e o cinema só temos a ganhar com isso.

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9º – 007 – Sem Tempo para Morrer

Cary Joji Fukunaga – Reino Unido, EUA, 2021

Sem Tempo Para Morrer usa bem cada minuto de sua longa duração para se aprofundar na história pessoal de James Bond e criar as circunstâncias – que sim, são espalhafatosas e sim, são construídas em cima de diversos clichês da franquia – para levar o personagem a um passeio pelo mundo que se torna cada vez mais urgente e cada vez mais próximo de seu coração (e dos nossos!), seja por suas perdas, seja pelo que é obrigado a fazer, mas jamais traindo a essência do que Daniel Craig vem construindo com James Bond desde 2006. Só o tempo dirá, mas talvez este Bond loiro, de olhos azuis, fortão, violento, mas sentimental até não poder mais, seja a versão definitiva e inimitável de um longevo e querido personagem. Que venha a próxima era!

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8º – Shadow

Zhang Yimou – China, HongKong, 2018

Shadow inegavelmente demora a engrenar e isso pode afastar os mais afoitos, mas Zhang Yimou cria um mundo monocromático engajante que paga generosos e violentos dividendos para quem souber esperar. No entanto, mesmo a espera é saborosíssima, cheia de detalhes a serem apreciados e a ser absorvidos por quem tiver um olhar que vá além do imediatismo que tanto se procura hoje em dia. O filme pode ter demorado a aportar por aqui, mas a experiência é recompensadora.

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7º – Em Um Bairro de Nova York

Jon M. Chu – EUA, 2021

Em um Bairro de Nova York é uma produção muito gostosa de se ver, com excelente música e números de dança, além de ter uma história central que fala a todos nós. Porque todos sonhamos, todos temos histórias de grandes obstáculos percorridos. E todos conseguimos, pelo menos alguma vez, uma vitória. A sensação de alegria e ao mesmo tempo a percepção de que essa luta é “uma luta para toda a vida” é a cara do filme, que faz um aplaudível recorte da cultura latina em um bairro de Nova York, colocando na tela as faces, as palavras e algumas histórias de uma porção desses indivíduos. Um filme que poderia conseguir muitíssimo mais do que realmente conseguirá com arrecadação e destaque na temporada de premiações… se não fosse o obtuso massacre que andam fazendo à obra, acusando-a de cometer colorismo contra afro-latinos. Mas isso é assunto para um Plano Polêmico. Até breve!

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6º – Annette

Leos Carax – França, Alemanha, Bélgica, EUA, México, Japão e Suíça, 2021

Após um longo hiato, Annette pode representar uma tentativa de Carax de seguir em frente, transferindo suas dores para essa peça artística. A cena pós-créditos, em que ele caminha com balões abraçado em Nastya e junto da equipe de produção, indica isso. Carax está se permitindo amar intensamente de novo. Amar a filha, amar o legado da esposa e amar a arte. Que o diretor francês não nos deixe, novamente, tanto tempo esperando.

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5º – Duna

Denis Villeneuve – EUA, Canadá, 2021

Denis Villeneuve é um dos grandes diretores da geração atual e ele vem se mostrando cada vez mais adepto do mantra Bene Gesserit que diz que o medo mata a mente, que é a pequena morte que leva à aniquilação, mesmo amargando fracassos de bilheteria como injustamente aconteceu com seu Blade Runner 2049. Sua aposta com Duna foi arriscada, pois, apesar de ser um livro conhecido, é uma obra longa, hermética e que relativamente pouca gente realmente leu e a divisão em dois filmes é outro elemento que só traz potenciais complicações para o futuro – espero! – da franquia cinematográfica. No entanto, se havia um nome para capitanear essa empreitada difícil, era o do canadense e o resultado a que ele chegou, considerando todas as escolhas que fez, especialmente a ousadia de reduzir o foco do gigantesco épico à jornada de um jovem tentando achar seu caminho, não é menos do que impressionante, com chances de o conjunto final, se o segundo filme sair mesmo (que Shai-Hulud ilumine o caminho!), ser superior às partes separadas.

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4º – Come from Away: Bem-Vindos a Gander

Christopher Ashley – EUA, Canadá, 2021

No entanto, mesmo sendo econômica, a peça transmite exemplarmente sua mensagem de esperança em relação à Humanidade, esperança essa que, diante do que vemos acontecer ao nosso redor diariamente, podemos perder, ainda que momentaneamente. Come from Away transforma tragédia em generosidade, medo em tolerância, morte em lição de vida, resultando em uma experiência audiovisual que garante um sorriso de satisfação e, até mesmo, aquela lágrima furtiva.

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3º – O Último Duelo

Ridley Scott – EUA, 2021

Por fim, O Último Duelo acaba sofrendo de um desequilíbrio narrativo e de montagem, reflexo da corajosa e intrigante abordagem doméstica de diferentes perspectivas de um evento polêmico, inseridos em um épico medieval, sempre em desconstrução do que esperamos do gênero. Algumas sequências em repetição poderiam ser cortadas ou diminuídas para dar espaço a algumas subtramas e personagens mal desenvolvidos, especialmente para expandir a história de Marguerite, mas o saldo continua positivo. Acho Ridley Scott meio passivo e automático (até à mercê da montagem) no filme, mas o diretor é excepcional quando as espadas colidem, assim como quando necessita causar repulsa. Envolvido em seu drama, esta repulsa e indignação nascem em O Último Duelo de um tremendo exame multifacetado sobre poder e privilégio masculino, espelhando seus temas e ato final em uma moral e reflexão entre dois períodos que podem não ser tão distintos como pensamos.

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2º – Bela Vingança

Emerald Fennell – EUA, Reino Unido, 2020

Bela Vingança é um belo de um tapa na cara, uma violenta joelhada nos colhões, uma bela lição audiovisual sobre o terrível estado da sociedade machista em que vivemos. Emerald Fennell é uma incrível professora que leciona com um sorriso no rosto, com palavras muito bem colocadas e uma baita apresentação interativa por trás mesmo quando fala de coisas terríveis como o estupro. Resta saber se o esforço da cineasta fará pelo menos uma pessoa olhar para o próprio umbigo em processo de auto avaliação e avaliação de seus pares imediatamente ao redor ou se tudo terá sido em vão como a vitória de Pirro de Cassie.

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1º – Amor, Sublime Amor

Steven Spielberg – EUA, 2021

Com seu Amor, Sublime Amor, Steven Spielberg não apenas parece ticar um dos desejos egoístas de sua hipotética lista do que gostaria de fazer antes de morrer, algo que ele poderia e mereceria muito bem fazer considerando seus status em Hollywood e sua importância para o Cinema. Mas fazer apenas algo burocrático simplesmente por fazer não seria algo da altura de Spielberg, pelo que, muito mais do que isso, o Cineasta mostra que, no alto de seus 75 anos, ele ainda tem para esbanjar aquele toque mágico que marcou sua carreira e mostra que mesmo clássicos intocáveis podem ser revisitados e, contra todas as probabilidades, aperfeiçoados.

IANN JELIEL

Ano após ano, meu compromisso com lançamentos vem diminuindo cada vez mais. Em 2021, vi apenas 56 filmes elegíveis para essa lista, sendo que boa parte veio do critério “2020 lançado apenas em 2021” e, mais da metade, com qualidade duvidosa (muitos vistos apenas com o intuito de  escrita). Foi meu recorde negativo, condizente a um ano realmente bem difícil. Contudo, pior do que fazer uma lista com as incompletudes esperadas em qualquer lista de fim de ano (ninguém consegue assistir tudo, não é mesmo?), é não fazer lista nenhuma. Então cá estou para lembrar o que 2021 teve de melhor no meio cinematográfico. Reforçando: há muitos filmes que deixei passar e que fatalmente poderiam entrar na classificação final (Matrix Resurrections; A Lenda de Candyman; A Voz Humana; Titane; Annete; Anônimo; Amor, Sublime Amor; Memoria; O Ninho; Censor; A Mão de Deus; Deserto Particular; Lamb; First Cow; A Assistente; são alguns exemplos do que apostaria entrar, conhecendo meu gosto). Estamos entendidos? Então, vamos à lista!

 

10º – Vingança & Castigo

Jeymes Samuel – EUA, 2021

De certa forma, Vingança & Castigo é um western escapista. É um faroeste dominado por afro-americanos que não temem (e raramente veem) o racismo. A despeito das várias homenagens de Samuel ao gênero, desde a trama de vingança, a tragédia familiar, a mitologia em volta da violência cíclica e, claro, as ambientações de saloons, ruas empoeiradas e a vasta paisagem de beleza austera, o cineasta não está interessado em revisionismo visual. Fazendo uma ponte entre o western e o exagero do blaxploitation, o diretor cria um espetáculo visual, transformando luz, cor e movimento em fontes de prazer no seu faroeste vibrante – os figurinos coloridos, a casas expressivas e os revólveres dourados são um deleite estético fantástico.

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9º – O Homem Que Vendeu Sua Pele

Kaouther Ben Hania – Tunísia, 2020

O Homem Que Vendeu Sua Pele

Não é tão evidente, mas é possível enxergar O Homem Que Vendeu Sua Pele, representante da Tunísia no Oscar de Melhor Filme Internacional em 2021, como uma sátira. Séria, dramática, mas ainda satírica, com seu comentário aparecendo muito implícito em cada movimento da história, que se levada no literal, talvez pareça inverossímil dentro do contexto verdadeiro de marginalização dos refugiados da guerra civil na Síria. No entanto, quando o drama de Sam Ali (Yahya Mahayni) cruza o dilema do limite artístico apresentado pela premissa, a obra evidencia seu lado mais ácido à cultura da imagem por inclusão, mais pela imagem do que necessariamente pela inclusão, além de trazer à tona a perspectiva individual do corpo entre esses mundos em que ele precisa se comercializar.

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8º – A Casa Sombria

David Bruckner – Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, 2020

O bom terror psicológico é aquele que consegue aplicar a dúvida acerca dos signos da sua história e consequentemente utiliza essa dúvida para fornecer o medo do desconhecido. O mistério da narrativa é muito bem conduzido e manipulado para vários lados e a melhor parte é que essa divisão fornece leituras diversas igualmente válidas da obra. É um roteiro bem amplo de possibilidades e extremamente inventivo ao desdobrar suas nuances através do cenário, criando atmosfera através de um jogo de sombras com a arquitetura. Ainda que apele para uma mixagem de som enfática para alguns sustos, é um exercício de gênero sutil, assustador e reflexivo.

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7º – Viúva Negra

Cate Shortland – EUA, 2021

Viúva

Também ajuda muito que a direção da australiana Cate Shortland, pela primeira vez lidando com uma produção de orçamento gigante, não se perde em meio à pancadaria, nem mesmo quando ela alcança níveis estratosféricos na longa sequência climática no tal Quarto Vermelho. Sim, sem dúvida alguma a diretora luta contra provavelmente o que seria natural, ou seja, picotar a narrativa até tornar tudo visualmente ininteligível, resultando em momentos que surpreendem pela clareza e tranquilidade relativa mesmo em meio a socos, chutes, facas e muitas balas, algo que por vezes rivaliza alguns dos melhores momentos da franquia Missão: Impossível.

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6º – Relatos do Mundo

Paul Greengrass – EUA, 2020

O longa, que se passa em 1870, cinco anos após o fim da Guerra de Secessão, faz o Capitão Jefferson Kyle Kidd de Tom Hanks, um ex-Confederado que viaja de cidade em cidade lendo notícias dos mais diversos jornais (basicamente vemos, aqui, a origem do radialista e do âncora de TV), cavalgar por um país profundamente dividido, com as chagas do doloroso conflito ainda muito abertas e aparentes, algo que fica evidente logo em seus minutos iniciais quando um grupo de soldados do norte para e revista Kidd, logo preocupando-se se ele tem ou não uma arma, já que o porte para sulistas fora proibido. É claro que o assunto fica ainda mais interessante quando lembramos que essa situação mal resolvida encontra ecos evidentes até os dias de hoje, com o último presidente de lá aprofundando ainda mais o problema e tornando o longa ainda mais pertinente.

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5º – Maligno

James Wan – EUA, 2021

Maligno

Em linhas gerais, Maligno aglomera todo o repertório que James Wan tem mais o que ele adquiriu conforme o andamento da filmografia, em uma mistura criativa dos gêneros que ele melhor sabe trabalhar: o terror, a ação e o suspense policial. Conceitualmente, a união desses polos a um passeio de referências historiográficas do cinema de horror cria algo único. Diferente de outros filmes do diretor, em que a sensação pelo texto é ser um enlatado do gênero, melhor executado dada a personalidade e estilização sofisticada da direção, seu novo filme parece integrar a execução de clichês aos seus maneirismos característicos como cineasta levando a uma unidade criativa mais madura onde as misturas se complementam no processo da construção do terror em constante transformação de atmosfera.

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4º – Nomadland

Chloé Zhao – EUA, 2020

A verdade é que nenhum posicionamento configura-se como uma perspectiva errada ou certa da proposta fílmica, pois a poesia cinemática de Zhao é uma viagem sobre escolhas e experiências, e todo o subjetivismo que circunda suas consequências, no qual a contemplação é apenas um meio de abrir um diálogo com o espectador sobre sua temporária vivência, da mesma maneira que Fern é um fio condutor para aprendermos sobre o acúmulo do passado e ficar (ou não) em paz com o presente e o futuro dos vários personagens do filme.

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3º – Judas e o Messias Negro

Shaka King – EUA, 2021

… trazer um retrato íntimo dos dois personagens que habitam a obra, o que também é muito bem elaborado com a aproximação humana – sem retirar sua “culpa” – do infiltrado e com a entrada na vida de Hampton. Ambas as figuras surgem fortemente construídas, mas apresentando uma intimidade sutil que as completa. E King entende isso ao escolher filmar alguns momentos de subjetividade com delicadeza e zelo, como a relação entre o líder revolucionário e sua companheira.

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2º – Raya e o Último Dragão

Don Hall, Carlos López Estrada – EUA, 2021

Raya e o Último Dragão

Tudo isso com um toque – igual ao de Moana – a uma valorização cultural específica (sudeste asiático, desta vez) em toda a elaboração de sua mitologia (e produção), sem parecer pedante e enfiado ali de qualquer forma como um mero chamativo internacional para vender o filme. Pelo contrário, soa como reforço à ideia de que as novas histórias têm de surgir de lugares que ainda não tinham vitrine, e que na fantasia de agora elas podem ser a porta de entrada à confirmação deste novo conto de fadas. Há quem diga que pode ser demasiadamente positiva, mas a graça é essa e a ideia da Disney é essa. Se antes esses contos nos confortavam por viver um amor idealizado que nunca viveríamos, por que não os utilizar hoje para se confortar um pouco, num cenário tão caótico, com a idealização de um mundo que conseguiu se unir para um bem maior.

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1º – Noite Passada em Soho

Edgar Wright – Reino Unido, EUA, China, 2021

Mas é mesmo no terror britânico clássico e muito diretamente nos filmes A Tortura do Medo (1960), Repulsa ao Sexo (1965) e Inverno de Sangue em Veneza (1973) que Noite Passada em Soho finca suas raízes, contando uma história de perda da inocência a partir de um apodrecimento do sonho de uma jovem: o glamour que Eloise vê na Londres dos anos 1960 vai se tornar para ela um verdadeiro inferno. Essa mudança de percepção ocorre numa fusão dramática entre a realidade que ela vive e a realidade (ou qualquer outra coisa que caracterize o que ela vê) de seus desejos inocentes, levando-a a conhecer Sandie (Anya Taylor-Joy), uma jovem também sonhadora que procura tornar-se cantora em Londres. A condição de vida dessas duas mulheres se entrelaçam pouco a pouco, com o sonho de cada uma sendo substituído por um ato de violência que a direção maximiza na segunda parte do filme.

HANDERSON ORNELAS

Minha experiência com filmes em 2021 foi uma mistura de sentimentos: por um lado finalmente pude retornar aos cinemas para alguns eventos cinematográficos que aguardava bastante, por outro me decepcionei com grande parte das minhas maiores expectativas de 2021. Em minha opinião, infelizmente, o cinema de blockbuster teve um saldo final abaixo do esperado. Eu gostaria de ter gostado bem mais de filmes como Sem Tempo para MorrerDuna, Malignant, Old, além dos novos longas do MCU e muitos outros. Apesar disso, achei que tivemos uma das melhores temporadas pré-Oscar dos últimos anos, onde adorei a grande maioria dos filmes, que inclusive constam nesta lista. O streaming também me proporcionou algumas surpresas muito gratificantes, garantindo que continuássemos tendo boas experiências em lançamentos, mesmo no conforto de casa. Assim, caro leitor, saiba que para essa lista fui mais rígido do que de costume, sendo seletivo para apenas aquilo que achei verdadeiramente surpreendente do que assisti em 2021 (de acordo com meu gosto, que fique claro a você).

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10º – Amor, Sublime Amor

Steven Spielberg – EUA, 2021

Com seu Amor, Sublime Amor, Steven Spielberg não apenas parece ticar um dos desejos egoístas de sua hipotética lista do que gostaria de fazer antes de morrer, algo que ele poderia e mereceria muito bem fazer considerando seus status em Hollywood e sua importância para o Cinema. Mas fazer apenas algo burocrático simplesmente por fazer não seria algo da altura de Spielberg, pelo que, muito mais do que isso, o Cineasta mostra que, no alto de seus 75 anos, ele ainda tem para esbanjar aquele toque mágico que marcou sua carreira e mostra que mesmo clássicos intocáveis podem ser revisitados e, contra todas as probabilidades, aperfeiçoados.

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9º – Um Lugar Silencioso: Parte II

John Krasinski – EUA, 2020

A escolha para o final abrupto foi ainda mais arriscada que a introdução de Emmett ou a colocação de mais uma fraqueza para as criaturas. Por um lado, dá a impressão de estarmos diante de uma história que precisa de mais alguma coisa. Por outro, mostra um diretor que sabe escolher bem o que vem depois do clímax e, por saber escolher bem esse momento, pode se dar o luxo de não encerrar de verdade a história, deixando as reticências como uma espécie de aperitivo pelo que (possivelmente) vem adiante. Isso pode ser algo problemático para alguns espectadores, mas para mim, funcionou que foi uma beleza. Num mundo onde o silêncio é a garantia de vida, encerramos esse capítulo com um grande barulho.

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8º – Não Olhe Para Cima

Adam Mckay – EUA, 2021

A sátira mais recente – e mega estrelada – de Adam Mckay é rasgada, provocadora e exagerada. Trata-se de uma dissertação artística e cômica sobre o negacionismo e desinformação exacerbados presentes nestes tempos modernos onde somos governados por palhaços anticiência. É sobre os muitos que se recusam a encarar a verdade, mesmo com ela diante de seus olhos. Um acerto em cheio – mais uma vez – de um diretor que faz comédia de forma brilhante.

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7º – A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas

Michael Rianda, Jeff Rowe – EUA, Canadá, França, 2021

A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas não decepciona em sua viagem apocalíptica, garantindo um divertimento que terá diferentes pesos dependendo da idade e cinefilia do espectador. Penso que o arco dos robôs poderia ter uma costura com mais detalhes, ao lado da vilã PAL; e também vejo a passagem do apocalipse para o “mundo normal” como rápida demais, com tudo voltando ao lugar muito cedo. O que nos fica, todavia, é o enorme sorriso no rosto e uma vontade de que esses mesmos produtores continuarem investindo em obras que não se contentam em jogar apenas com ingredientes vitoriosos na animação, aliados a uma excelente qualidade imagética e a um marketing agressivo. Bons filmes, como sempre, se fazem assim: com bons diretores e roteiristas tendo liberdade para colocar sua loucura para fora. Nós e o cinema só temos a ganhar com isso.

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6º – O Esquadrão Suicida

James Gunn – EUA, 2021

O Esquadrão Suicida

Como disse no início do texto, é bem possível que O Esquadrão Suicida seja elogiado por todos os motivos errados. A obra tenta ser uma sátira de guerra-política e uma espécie de cinismo ao gênero de super-heróis, mas não é realmente comprometida ao longo de todo o filme nestas propostas, apenas nos dando a mesmice com um pouquinho de tempero. Felizmente, esse tempero é James Gunn, um cineasta simplesmente fantástico na construção da experiência explosiva e cômica, ainda que tenha falhado como roteirista. O Esquadrão Suicida é divertido sim, mas se olharmos bem de perto, vemos que um produto que se vende como diferente, que quebra paradigmas e revoluciona parâmetros, não vai além de uma boa comédia do gênero.

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5º – Nomadland

Chloé Zao – EUA, 2020

Frances McDormand entrega uma de suas melhores performances com Fern, onde a atriz é contida e emocional, transpondo fragilidade com sutileza sem cair numa interpretação caricata ou apelativa. Quietude contemplativa é um papel difícil de acertar, mas McDormand faz sua mágica, acompanhada pela poesia de Chloé Zhao. Nomadland é o tipo de obra que ecoará de diferentes formas para cada espectador a partir de suas próprias experiências e da maneira que absorve aquelas vistas em tela. Uma jornada meditativa sobre a vida através da subcultura nomad.

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4º – Encanto

Jared Bush, Byron Howard, Charise Castro Smith – EUA, 2021

O final que conecta a mensagem com o cenário colombiano e seu passado sofredor, na colonização, só reforça que faltou lacunas de desenvolvimento prático (leia-se: sem precisar da música) a serem preenchidas para a virada moral dos personagens – em especial da matriarca Alma (María Cecilia Botero) – soar convincente. Colocam uma explicação por flashback e fica por isso mesmo. Óbvio, são justificativas coerentes com a proposta de trazer uma representatividade latina sem pasteurização, mas o ‘efeito manada’ de união nas dificuldades que ela proporciona acontece rápido demais para o que apontava as complexidades dos conflitos emocionais sobrepostos. Faltou um pouco mais de coragem para Encanto ter a força que queria no seu potente subtexto, subaproveitado na comodidade do lúdico mais fácil.

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3º – Noite Passada em Soho

Edgar Wright – Reino Unido, EUA, China, 2021

Noite Passada em Soho é uma espécie de sonho acordado, algo como uma vivência físico-psíquica de uma realidade passada e admirada por uma garota inocente que se vê jogada num ambiente cosmopolita cheio de perigos. Em sua primeira metade, a obra mostra um Edgar Wright mais maduro, ciente do que consegue fazer dentro de seu estilo e criando algo muito interessante, um quebra-cabeça que abre diversas possibilidades de interpretação. Quando a poeira começa abaixar e as coisas são conectadas e arrumadas para o fim, o diretor posiciona sua obra num patamar bastante convencional, de certa forma descaracterizando o que ergueu com tanto apuro. E a narrativa que poderia constar (em alto posto) como uma das melhores do ano, acaba caindo algumas posições por sacrificar-se ao convencional, o que não é pouca coisa, negativamente falando, considerando um diretor do porte de Edgar Wright e o nível de excelência a que ele chegou em sua carreira.

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2º – Meu Pai

Florian Zeller – EUA, 2020
Meu Pai

Olivia Colman, por exemplo, já encontra uma maior dificuldade de fazer com que a dor íntima, frequentemente escanteada no texto por uma suposta sutileza de guardar sua perspectiva, já que o filme não é sobre ela, tenha força. A personagem é mais um bom gatilho do que um bom contraponto – algo que vale para os outros do elenco, funcionais somente para o jogo inicial de confusão de memórias em que o personagem imagina seus rostos no corpo de outras pessoas –, quiçá uma boa personagem com suas próprias questões desenvolvidas. Essas que ficam muito subentendidas, algo compatível se a intenção fosse realmente não ser sua história, mas que na prática acaba também sendo, pelo que o filme se porta enquanto observador, ao invés de totalmente participante. No fim das contas, a mecânica descrita na forma como Meu Pai se constrói acaba sendo essa faca de dois gumes. É possível comprar a ideia pela inegável boa encenação particular, várias cenas isoladamente muito boas, contudo, ao fornecer pistas de mais para a montagem do quebra-cabeça, desvendamos também as etapas do efeito, tornando-o artificial ou, no mínimo, não tão espontâneo quanto deveria. Meu Pai

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1º – Minari: Em Busca da Felicidade

Lee Isaac Chung – EUA, 2020

Se você considera Minari “apenas” um bom filme ou uma obra genérica, eu consigo entender, pois foi minha experiência inicial com a fita, e a vagarosidade da direção de Chung passa esse sentimento, mas ao refletir na misé-en-scene do cineasta, vejo a obra como uma mensagem poderosa sobre pertencimento cultural, conflito interno com suas raízes e as complexas mudanças de um cenário familiar exposto isoladamente e contemplativo, mas sempre expansivo e numa crescente emocional suave de pura e simples compreensão. No fim, o que mais importa é a família e suas lutas titânicas com o clima, com o destino e entre si.

RODRIGO PEREIRA

Só possuía um objetivo quando 2021 iniciou: assistir a um número maior de filmes do que havia visto em 2020. Felizmente, consegui muito mais do que dobrar esse número, fazendo com que revisitasse algumas obras, mas, principalmente, cruzasse com belos filmes pela primeira vez.

Em 2020, metade da minha lista era composta por filmes brasileiros, fato que não se repetiu em momento algum neste ano. O que representa essa diferença? Não sei. Ao meu ver, sequer importa. O único ponto que tenho conhecimento é que cruzei com algumas belas produções neste ano de continuação da pandemia. E acredito que todas, de alguma maneira, mereçam estar nessa lista.

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10º – Anônimo

 Ilya Naishuller – Japão, EUA, 2021

Mais especificamente, Anônimo funde a premissa quase engraçada de tão prosaica de John Wick, alterando o “mataram o cachorro de minha esposa” para “roubaram a pulseira de gatinho da minha filha” com o “eu vou até o fim em minha sana exterminadora contra russos” de O Protetor, com Bob Odenkirk, no papel título (ou de Hutch Mansell, como preferirem), lembrando muito em estilo o Bryan Mills de Liam Neeson, mas talvez bebendo com mais vontade da escola da falibilidade dos homens invencíveis de Bruce Willis, em Duro de Matar. E, de fato, as postura de Odenkirk e a relativa facilidade com que ele apanha dos marginais logo no começo da fita tenta emular o porte e a “humanidade” de Willis, ainda que ele não demore a se revelar como alguém com um passado muito mais próximo dos protagonistas dos outros filmes citados.

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9º – Infiltrado

Guy Ritchie – Reino Unido, EUA, 2021

O início de Infiltrado surpreende por se diferenciar consideravelmente dos demais longas de Guy Ritchie. Conhecido por uma assinatura visual marcante, especialmente na criação de um ritmo frenético, a obra começa com um tom sombrio e uma introdução tradicional. Utilizando como recurso o primeiro dia de Harry no trabalho, o roteiro apresenta o protagonista como um homem solitário e de poucas palavras, mas que causa impacto quando fala. Já a direção de Ritchie estabelece uma atmosfera igualmente sombria. A direção de arte e os figurinos vestem o filme de preto, criando um tom de luto. Já a fotografia não economiza nas sombras, criando não só sensação melancólica, mas inteligentemente evoca a dualidade daquele universo de pessoas infiltradas, como se todos tivessem algo a esconder.

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8º – Nem um Passo em Falso

Steven Soderbergh – EUA, 2021

Retornando à Detroit nos anos 50, o filme é tanto uma forma de homenagem à thrillers e obras noir características da época, como também uma abordagem modernizada de comentários sociais, hierarquias do crime e ganância capitalista para o período misógino, de tensão racial e cheio de gangues adversárias. A narrativa acompanha dois vigaristas, Ronald (Benicio Del Toro, apaticamente divertidíssimo) e Curt (Don Cheadle, um comandante de atenção), enquanto eles tentam assumir o controle de um roubo/sequestro misterioso que foram contratados para participar. A partir daí, a história começa a se ramificar com vários personagens e reviravoltas em torno de um documento especial, mantendo um tom de pastiche astuto e agradável sobre bandidos confusos à deriva em um mundo projetado para prejudicá-los.

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7º – Oxigênio

Alexandre Aja – França, EUA, 2021

A estética sci-fi é clássica. A direção de arte não inventa e cria uma ambientação bonita, eficiente e, mais do que isso, familiar para o espectador, de forma que toda as informações básicas e necessárias para dar ignição ao longa estão presentes de imediato, sem enrolação, ainda que, claro, as reviravoltas sejam devidamente preservadas para seus momentos próprios.

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6º – Judas e o Messias Negro

Shaka King – EUA, 2021

Judas e o Messias Negro realiza um curioso movimento de encarnar uma “honestidade” através de uma encenação muito transparente. Ainda que se distancie um pouco de certos tradicionalismos, aposta em um cinema direto e, ao mesmo tempo, paradoxalmente sutil. É um interessante exercício de construção de figuras e suas camadas, que busca sempre representar seus personagens como objetos verdadeiros, objetos históricos.

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5º – Em Um Bairro de Nova York

Jon M. Chu – EUA, 2021

Em um Bairro de Nova York é uma produção muito gostosa de se ver, com excelente música e números de dança, além de ter uma história central que fala a todos nós. Porque todos sonhamos, todos temos histórias de grandes obstáculos percorridos. E todos conseguimos, pelo menos alguma vez, uma vitória. A sensação de alegria e ao mesmo tempo a percepção de que essa luta é “uma luta para toda a vida” é a cara do filme, que faz um aplaudível recorte da cultura latina em um bairro de Nova York, colocando na tela as faces, as palavras e algumas histórias de uma porção desses indivíduos. Um filme que poderia conseguir muitíssimo mais do que realmente conseguirá com arrecadação e destaque na temporada de premiações… se não fosse o obtuso massacre que andam fazendo à obra, acusando-a de cometer colorismo contra afro-latinos. Mas isso é assunto para um Plano Polêmico. Até breve!

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4º – Maligno

James Wan – EUA, China, 2021

Maligno

Maligno foi uma grata surpresa nesse ano. Conforme vi que as pessoas, no geral, estavam gostando do filme, meu interesse foi crescendo. Até o momento que parei para assistir e terminei completamente apaixonado pela obra. As cores, os enquadramentos, os exageros, a mise-en-scène inteira. Tudo. É Cinema com C.

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3º – Ataque dos Cães

Jane Campion – Reino Unido, Austrália, EUA, Canadá, Nova Zelândia, 2021

Seja em Montana, em 1925, ou em qualquer lugar do mundo em nossos dias, o que muitos indivíduos deixam escapar é algo que a sabedoria popular já desmistificara há tempos, e cuja lição parece não ter sido plenamente aprendida: “as aparências enganam” — frase que vale igualmente para quaisquer padrões sociais. Em ambientes de hostilidade e preconceito para com pessoas mais fracas, diferentes ou em menor número, isso é ainda mais sentido. Em obras como esta aqui, onde os personagens são verdadeiramente estudados, é possível ver o que está além da face, do corpo, da expressão, daquilo que se mostra para o mundo. E, como alguém em Ataque dos Cães descobre de forma bastante letal, há muita força e muita coragem em corpos aparentemente frágeis e delicados. Aquele surpreso amargor em meio à doçura que pega a todos de surpresa… muitas vezes tarde demais.

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2º – Matrix Resurrections

Lana Wachowski – EUA, 2021

Seja do ponto de vista do filme ou da diretora, o importante é entender o que se é e como as transformações ocorreram nesses mais de 20 anos desde a primeira projeção. Se a indústria que permitiu o surgimento de Matrix e dos irmãos Wachowski os utilizou para lucrar e virar o enlatado de hoje, subverta-a. Use isso para rir dela, mostrar sua verdadeira face e reafirmar seu amor pela causa. Pois, assim como a indústria, você também passou por transformações, mas, diferente dela, tornou-se ainda mais você, ainda mais autoral.

Tal qual Matrix Resurrections, não é Neo quem voa. Agora, é a vez de Trinity.

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1º – Cry Macho: O Caminho para Redenção

Clint Eastwood – EUA, 2021

A reflexão e a desmistificação sobre a figura que foi durante quase toda vida, a religiosidade, o amor, as aventuras para o autoconhecimento, a valorização do que realmente importa. Essas e várias outras questões estão presentes nessa obra que reflete perfeitamente o que foi Clint Eastwood ao longo da vida, seja como ator ou diretor. Um filme que é a síntese perfeita da carreira de um gênio.

FREDERICO FRANCO

Dois mil e vinte e um. 2021. Segundo ano pandêmico per se. Um ano de incertezas, questionamentos e medos. O refúgio, como sempre, foi o cinema. Fugir da realidade é, muitas vezes, mais prazeroso – mas não prudente – do que confrontá-la. Talvez, por isso, a lacuna de obras lançadas em meio ao turbilhão de emoções da pandemia em meu repertório: dentre as centenas de filmes vistos em 2021, poucos dos anos da covid-19. Preferi focar em mestres do passado, em vez de explorar o hoje e mapear a realidade artística atual. Por que? Mecanismo de defesa? Medo de encontrar na arte aquilo que não consigo digerir na realidade? Não sei ao certo, mas há de se questionar isso para o próximo ano. Por que não aproveitar a arte de hoje? O que há de errado em vivenciar o momento do cinema atual? O gosto da nostalgia e do passado é sempre mais doce, mais romântico, por mais absurdo que seja. O amargo do atual, entretanto, precisa ser abraçado por este que vos fala. Fugir, muitas vezes, só dói mais. Depois da breve reflexão, aqui vão meus selecionados como melhores filmes lançados em 2021.

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10º – A Mulher Que Fugiu

Hong Sang-soo – Coreia do Sul, 2020

Entra ano, sai ano e uma coisa é certa: Sang-soo vai lançar uma obra capaz de renovar sua unidade estética já consolidada a décadas. Seguindo sua tendência de interferência mínima do aparato fílmico e sutis jogos de ambiguidade narrativa, A mulher que fugiu desenvolve uma diegese que aposta muito na figura radiante de Kim Min-hee. O cotidiano letárgico da protagonista propicia encontros com terceiros que, muitas vezes, não passam de meros encontros. O aspecto contemplativo da câmera de Sang-soo é, por conseguinte, uma espécie de retorno ao cinema enquanto atração, quase como instrumento observativo de captação do real. A montagem, para delírios de Bazin, é utilizada em último caso, sempre priorizando o intraplano, é elemento chave para a manutenção de um contato cru com o real.

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9º – Shiva Baby

Emma Seligmann – Estados Unidos, 2020

Barulhenta estreia da diretora Emma Seligmann em longas, Shiva Baby é fruto do desenvolvimento de um curta-metragem homônimo de autoria da própria diretora. Ambientado em um funeral de uma família tradicional judaica, o filme lança o espectador em direção à turbulenta vida de Danielle, uma jovem rebelde bissexual que nada tem em comum com o restante de seus familiares. Através de uma atmosfera opressiva e sufocante, a encenação de Seligmann, que não possui pudor algum em abusar de primeiríssimos primeiros planos e um estridente jazz, prioriza uma aproximação tão brutal da audiência com sua protagonista a ponto de flertar com o tragicômico. Shiva baby é, sobretudo, um exercício de distanciamento entre o eu e o outro: o que para Danielle é sofrimento, para o público é, em certa medida, motivo de risos nervosos. E por que esse efeito? Não se sabe com certeza. Mas plantar essa dúvida talvez seja o maior mérito de Seligmann

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8º – Ataque dos Cães

Jane Campion – Reino Unido, Austrália, EUA, Canadá, Nova Zelândia, 2021

Existe uma ideia governante extremamente bem executada por Campion que torna O Ataque dos Cães um dos filmes mais sutis e, ao mesmo tempo, potentes do ano. Aqui, o faroeste, ambiente composto por homens heteronormativos retratados como inabaláveis fortalezas morais e mentais, é dissecado a partir de uma ótica mais intimista. O personagem de Benedict Cumberbatch, por exemplo, além de parecer emular uma versão de antigos heróis de John Wayne, tem sua aura de embrutecimento completamente destruída ao longo da película. Sua vulnerabilidade é emplacada através dos olhos do outro, como quando é confrontado enquanto se encontra nu em um córrego, ou de seus próprios, quando percebe ser incapaz de controlar seu próprio destino, vide passagem com a perda de sua reserva de couro. A trajetória de Cumberbatch em O Ataque dos Cães cabe, diretamente, no que diz Didi-Huberman sobre imagens casca: o córtex, parte frontal, superficial, é o primeiro impacto, puramente visual e enganosamente definitivo; o segredo, no entanto, está no líber, parte que sustenta a ligação entre interior e exterior. Justamente, é a opção de Campion: absorve o córtex da essência do western, mas não para no meio do caminho, indo até às últimas consequências.

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7º – As Grandes Distâncias

Matheus Zenom – Brasil, 2021

Grata descoberta do Festival Ecrã, focado em diferentes vertentes dos cinemas experimentais. As Grandes Distâncias é um perfeito retrato do cinema enquanto veículo de reorganização espacial. Tilts e panorâmicas que ligam direções opostas a partir da ilusão do movimento; cinema como desrespeito à física. Filho direto de Michael Snow, o filme de Matheus Zenom se prova como expressão da intervenção humana no ambiente natural: um clássico dilema não só do cinema experimental, mas da arte contemporânea como um todo. É quase como uma dialética da antropomorfia: o aspecto figurativo do ser humano é rechaçado, mas sua presença é percebida pela mediação da câmera cinematográfica.

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6º – Febre 40º

Natália Reis – Brasil, 2021

Outro filme saído diretamente do Festival Ecrã. Misturando erotismo e materialismo, Natália Reis apresenta uma obra cuja sinestesia parece ser seu forte. Febre 40º cria uma diegese que tensiona os limites entre distanciamento materialista e sinestesia. As imagens eróticas são descontextualizadas e, mais importante, são dissolvidas em meio a outras inúmeras texturas da imagem digital. É um trabalho que, através da colagem, distancia o público das imagens a partir de mais imagens. É uma faca de dois gumes. É a imagem como miríade, como um labirinto a ser descoberto. Nada é estático, tudo no campo das imagens está aqui para ser ressignificado.

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5º – À L’Abordage

Guillaume Brac – França, 2020

Longe de ser um conto moral, mas é inegável o espírito de Rohmer em Todos à bordo. O verão da Riviera Francesa sendo explorado como espaço de prazer mundano. Amigos despreocupados que mergulham em direção aos amores incertos da juventude. É um retrato puro da efemeridade das relações adolescentes. Paixões ardentes, mas passageiras, com data para acabar. Guillaume Brac retrata a juventude em seu estado puro: um devir de momentos cujo único propósito é não ter propósito. Tudo é momento, tudo é agora. O amanhã pouco importa, assim como o fim do filme. Não existem conclusões e lições, apenas um destino incerto. Amor fati: amor ao fado, tomar conta das rédeas do momento e se desprender da nostalgia ou insegurança com o futuro.

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4º – Benedetta

Paul Verhoeven – França, Holanda e Itália, 2021

Polêmico” é um adjetivo barato para descrever Verhoeven. Já em Elle, um de seus últimos lançamentos, o diretor aposta na violência como forma e conteúdo. Em Benedetta as apostas são mais altas, atuando como um ataque ao pudor e a culpa cristã. A subversão não é uma solução apenas da premissa de duas freiras que se encontram envoltas em um romance homossexual no século XVII, mas é, antes de tudo, iconográfica. As belas e requintadas imagens do cristianismo são deixadas de lado em prol de um Jesus maquiavélico e freiras com caráter de carrascos. Ao contrário de Pasolini, que vê na sátira um instrumento de crítica à Igreja, Paul Verhoeven aposta no mistério e, em determinados momentos, no horror apelativo.

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3º – Capitu e o Capítulo

Júlio Bressane – Brasil, 2021

Ao lado de Godard e Michael Snow, Júlio Bressane é um dos poucos colossos do cinema mundial. Tendo passado por diversos momentos históricos da trajetória centenária da sétima arte, Bressane também experimentou os mais diversos formatos já criados, indo da película ao digital, do super-8 ao vídeo. Capitu e o capítulo parece fazer do mosaico de imagens não-narrativas uma potência que nos leva a compreender o cinema e a própria literatura como estética pura. Seus personagens estáticos, frios, perto do overacting, mas também aparentemente sem alma alguma são meros receptáculos para a verborragia machadiana adaptada. A força das palavras, contudo, é levada às imagens. Tudo é imagem e, dessa forma, tudo é encenação. Forçar seus personagens contra fundos bidimensionais, quase teatrais, é mais uma estratégia de afirmar a natureza ficcional do cinema.

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2º – Corps Samples

Astrid de la Chapelle – França, 2021

Terceiro e não menos importante filme aqui selecionado visto no Festival Ecrã. Tensões entre a figura humana e natureza; homem versus máquina; modernidade e desenvolvimento como pesar. Parece ter um pé em trabalhos chineses, como Cao Fei e Zhao Liang, capazes de explorar, através de uma seletiva montagem. A transformação de vida em matéria, ao melhor estilo Barthes: a imagem como matéria que retrata a passagem física da vida em pó. O filme de Chapelle vai além e também passa a versar sobre a atuação indireta do homem no meio natural ao explorar gigantes de concreto. É a existência humana diretamente conectada com algo. O capitalismo tardio proporciona esse abjeto fenômeno: a coisificação do existir

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1º – Memória

Apichatpong Weerasethakul – China, Colômbia, Estados Unidos, Tailândia, Catar, Alemanha e México, 2021

Apichatpong sendo seu melhor desde Tio Boonmee. Memória é um enigma, assim como seu próprio diretor. Para ele, se tudo é trivial, tudo é motivo de fantasia. A existência é a própria justificativa da fabulação da realidade. Uma mulher escocesa vai à Colômbia visitar sua irmã doente e lá passa noites em claro devido a um forte barulho. A busca incessante pelo misterioso ruído sonoro leva a protagonista, interpretada por Tilda Swinton, a se reconectar não só com seu próprio passado, mas com seu futuro. Assim como Cortázar, Apichatpong não apenas apaga os limites entre real e fantasia, mas também pouco se dedica em delimitar o que é passado, presente ou futuro. No cinema, tudo é presente. O resto não importa.

DAVI LIMA

2020 e 2021 foram um ano só, longos e rápidos, e como isso atrapalhou a experiência de ver filmes. Sem salas de cinema por um bom tempo, diante do problema da pandemia da covid-19, assistir a filmes em casa foi se tornando uma dinâmica de ansiedade e descontrole por ficar assistindo a um filme com atenção o suficiente. Godzilla vs Kong é um dos lembro que foi o blockbuster que consegui entender e assistir em meio ao ambiente doméstico não favorável, assim como alguns filmes do Festival É Tudo Verdade que foram resquícios da minha aventura intensa e com energia de ver filmes com foco demasiado em casa, ainda mais se emocionar e ter êxtase ao ver Fuga na abertura do mesmo festival.

Assim, depois que voltou aos cinemas, Eternos talvez tenha sido o filme que lembrei como era bom demais ver um blockbuster na tela grande, embora queria que fosse Shyamalan que me desse essa sensação, mas assisti em home video mesmo. No entanto, entre 2020 e 2021, nada melhor que conseguir ver 2x no cinema Cabeça de Nêgo, filme 100% cearense que me fez lembrar que com muito pouco grandes filmes alcançam o limite. A jornada de experiência cinematográfica tem sido revivida aos poucos, e talvez demarque a ressuscitação quando Avatar chegar ou quando Spielberg me encantar de novo no cinema, após Amor, Sublime Amor.

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10º – Os Arrependidos

Ricardo Calil, Armando Antenore – Brasil, 2021

os arrependidos

Depois que o diretor Ricard Calil fez Uma Noite em 67 acabou focando muito em documentários semelhantes a biografias. Os Arrependidos parece ser mais um desses, mesmo que focando em mais personagens. No entanto, Os Arrependidos é um documentário mais ousado, revelando uma didatura no Brasil violenta pela política, não apenas pela militarização e guerrilha. Tal política em que as memórias não delimitam o certo e o errado, mas inversões humanas irreparáveis. O que Calil e Antenore fazem com a narrativa dos já idosos Arrependidos é um trabalho de história valioso.

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9º – A Última Floresta

Luiz Bolognesi – Brasil, 2021

Floresta

A felicidade do cinema é assistir algo documental que o real pode se tornar ficcional sem perder o realismo, apenas ter uma camada de fé. A Última Floresta entra nessa de documentários que algumas doses de invenção audiovisual contam sobre a nação Yanomami como algo sobrenatural e bastante real.

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8º – Godzilla vs. Kong

Adam Wingard – EUA, Austrália, Canadá, Índia, 2021

Um dos blockbusters em que é possível enxergar uma montagem didática de ação e literalidade honesta de um crossover nominal. Felizmente cada murro de Kong e cada olhar de Godzilla me fizeram tremer e me emocionar como uma criança que não lembrava que gostava de monstros.

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7º – Alvorada

Anna Muylaert, Lô Politi – Brasil, 2021

alvorada

Os bastidores do poder por si são interessantes, mas se comparado a outros filmes sobre a presidente Dilma e o processo de derrocada interpretada, Alvorada parece difuso demais para alguns espectadores. Porém, o mais gracioso é como a pessoa Dilma é difusa, em como há um lirismo entre o ser dela e o espaço do Palácio da Alvorada, a casa presidencial, que torna esse documentário pouco político para alguns, mas bastante revelador sobre a primeira mulher Presidente do Brasil.

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6º – Amor e Monstros

Michael Matthews – Canadá, EUA, Australia, 2020

Esse filme não é apenas divertido demais, ele parece bastante completo em todos os seus dramas, em suas propostas de comentário social e semiótica de construção de mundo, metaforizando muitas ideias joviais e processos de amadurecimento que a história conta. É uma baita aventura em que tem um “q” de Paz e Amor hippie com ares de cinema de médio orçamento que Shawn Levy surpreende às vezes em produzir.

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5º – Tempo

M. Night Shyamalan – EUA, Japão, 2021

O filme mais bobo para alguns e o mais intenso para outros. Suprimir lógicas e tornar dramas conectados à superfície do pensamento para trazer um terror psicológico parece ser a linha de Shyamalan que sempre fazem os espectadores se sentirem burros e outros apenas deslumbrados. Porque na verdade o filme desenvolve percursos de fé que afasta os que não creem e os que creem numa inocência que ainda assim questiona. Para mim Tempo trouxe Shyamalan para a comparação estranha com Spielberg do começo do século XXI, que agora faz sentido para mim.

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4º – Eternos

Chloe Zhao – EUA, Reino Unido

Trabalhar com a mitologia mesopotâmica, de uma maneira geral, dentro da Marvel é buscar uma intelectualidade para um blockbuster que só funciona na compreensão da mitologia do senso comum. Com superfícies de contato, humanismo, pluralidade e repetições, Eternos é a Liga da Justiça que o cinema ainda não conheceu, ou que o diretor Zack Snyder tentou fazer. É a fórmula Marvel sendo cinema, não artifício apenas de venda de alívio num percurso de história dramática.

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3º – Cabeça de Nêgo

Déo Cardoso – Brasil, 2020

Quando a escola se torna o tema e a forma do cinema. Cabeça de Nêgo desenvolve a luta contra o racismo e em prol da escola que abriga os traumas sociais e contempla o aprendizado de transformação sobre elas. É o melhor do cinema artivista, no melhor estilo Spike Lee, e ainda com melhores perspectivas formais do cinema, em ser ativista como protesto visual em alguns pontos menos material de conteúdo e mais material de forma cinematográfica. Você se sente na escola e a Cabeça de Nêgo fica além dos créditos com você.

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2º – Presidente

Camila Nielsson – EUA, Dinamarca, Noruega, Zimbábue, 2021

Presidente

Um dos grandes filmes que representa o poder do corte da montagem. Esse documentário – que na verdade é uma aula de como um sistema eleitoral funciona, de como a corrupção funciona e como a democracia precisa funcionar – desenvolve um extenso conteúdo de imagens sobre os acontecimentos políticos de eleger ou não um novo presidente no país Zimbábue, criando um mar de emoções entre a imagem da ditadura e a desesperança da última imagem do documentário que define o quanto a corrupção pode destruir o sonho da democracia.

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1º – Fuga

Jonas Poher Rasmussen – Dinamarca, Suécia, Noruega, França, EUA, Eslovênia, Estônia, Espanha, Itália, Finlândia, 2021

Eu queria poder descrever o poder desse filme com o uso da animação, o poder que um documentário parece entender tão bem o ser humano sem poder mostrá-lo, apenas ilustrá-lo por cima da voz gravada. A grandiosidade desse documentário animado nem seja a história, o drama que pode ter sido contado de outros refugiados, mas o que sempre diferencia as histórias é a forma como são contadas. Nesse filme é única, sem dúvida única.

 

FERNANDO CAMPOS

Creio que 2021 seja um ano marcante para todos os amantes de cinema por ter representado o retorno às salas. A ausência dessa experiência por tanto tempo serviu para sentir ainda mais o poder imersivo do cinema. Presencialmente, puder ver desde os projetos mais comerciais, como Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, até os de circulação mais limitada, como Deserto Particular.

Talvez pela saudade, até mesmo os filmes que gostei menos representaram um momento especial. Esta é a mensagem que o ano deixa para mim. Ainda que o streaming facilite a distribuição de filmes e tenha um papel importante na indústria, nada jamais substituirá a experiência da sala escura. O cinema de verdade ocorre nessa vivência coletiva e imersiva.

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10º – Uma História de Família

Werner Herzog– EUA, 2019

Por mais que seja uma experiência conduzida pela atração pelo novo, ela jamais é moralista ou busca uma resposta, pois Herzog está sempre disposto a ouvir e aprender mais com o que é novidade, por mais o moderno esteja nos trazendo a ruína. Talvez por isso que Herzog, por mais que não esteja sempre em seu ápice, sempre seja um cineasta que mereça atenção, pelo simples prazer que ele tem em oferecer espaço para o novo.

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9º – Cry Macho

Clint Eastwood – EUA, 2021

O que realmente importa em Cry Macho é seu autor, e não sua história ou personagens. Somos envolvidos por Clint Eastwood continuar seu lendário legado artístico mesmo aos 91 anos, ainda buscando discutir, reformular e desconstruir sua autoimagem e iconografia, além, claro, de entrelaçar sua história individual com o humano. O filme é um ótimo exercício do superestimado macho, como Mike divertidamente pontua, mas a embalagem e o contexto sofrem frente a uma história esquecível e sem substância. Ainda assim, a obra mais que vale a experiência. Assistir Clint Eastwood é um privilégio e uma inspiração. Que seu sorriso torto continue agraciando nossas telas por mais alguns anos.

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8º – First Cow – A Primeira Vaca da América

Kelly Reichardt – EUA, 2019

O passado de dois indivíduos colocam-nos em uma trilha que os faz mudar a vida um do outro. Conectar-se num mundo de difícil contato é a chave para se entender First Cow, chamando a nossa atenção para as diferentes camadas ou intensidade de contato. Há uma grande tensão no desenvolvimento em meio a tanta beleza visual, e a obra termina com uma reticência, sem responder visualmente “como” os dois amigos morreram, embora possamos subtender isso pelo roteiro. Eu não gosto da introdução da fita, porque mesmo a sugestão narrativa de uma futura conexão entre indivíduo e meio (talvez até com um chamado à memória ou às surpresas do acaso), não vejo como ela se justifica orgânica e dramaticamente no filme, mas o que verdadeiramente importa aqui é a lenta e aplaudível contemplação para um recorte da vida de dois homens, sua busca por um sonho de vida, os mistérios de seu passado e o impacto que causaram no mundo em que viveram. Fuga, encontro, convivência e fim da linha. Um ciclo de beleza e representações da existência humana em um faroeste sensível e inesquecível.

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7º – Annette

Leos Carax – França, Alemanha, Bélgica, EUA, México, Japão e Suíça, 2021

Após um longo hiato, Annette pode representar uma tentativa de Carax de seguir em frente, transferindo suas dores para essa peça artística. A cena pós-créditos, em que ele caminha com balões abraçado em Nastya e junto da equipe de produção, indica isso. Carax está se permitindo amar intensamente de novo. Amar a filha, amar o legado da esposa e amar a arte. Que o diretor francês não nos deixe, novamente, tanto tempo esperando.

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6º – Um Filme de Policiais

Alonso Ruizpalacios – México, 2021

Filme que subverte a expectativa do público ao adotar uma estrutura que mistura documentário com ficção. Ao ousar na estrutura, a obra nos tira da zona de conforto e nos faz questionar sobre o trabalho policial muito além de maniqueísmos.

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5º – Maligno

James Wan – EUA, 2021

Maligno

Não acho Maligno tão icônico quanto Jogos Mortais ou a duologia Invocação do Mal, talvez pela falta de uma trilha sonora menos derivativa, ou abertura de créditos figurinha repetida, ou mesmo coisas bestas como o nome do vilão – para um conceito tão criativo por trás dele, poderiam ter colocado um nome mais ameaçador não? –, mas, em geral, é o filme que personifica as melhores características do diretor de maneira ousada, original, posicionando-o de fato como um mestre do terror, um grande autor no gênero, mais do que alguém que somente o domina e excuta-o acima da média.

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4º – Meu Pai

Florian Zeller – Reino Unido e França, 2020

Meu Pai

A personagem é mais um bom gatilho do que um bom contraponto – algo que vale para os outros do elenco, funcionais somente para o jogo inicial de confusão de memórias em que o personagem imagina seus rostos no corpo de outras pessoas –, quiçá uma boa personagem com suas próprias questões desenvolvidas. Essas que ficam muito subentendidas, algo compatível se a intenção fosse realmente não ser sua história, mas que na prática acaba também sendo, pelo que o filme se porta enquanto observador, ao invés de totalmente participante. No fim das contas, a mecânica descrita na forma como Meu Pai se constrói acaba sendo essa faca de dois gumes. É possível comprar a ideia pela inegável boa encenação particular, várias cenas isoladamente muito boas, contudo, ao fornecer pistas de mais para a montagem do quebra-cabeça, desvendamos também as etapas do efeito, tornando-o artificial ou, no mínimo, não tão espontâneo quanto deveria.

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3º – Deserto Particular

Aly Muritiba – Brasil, 2021

Fábula de amor que serve de alegoria para um Brasil que necessita se reencontrar após décadas de violência. Vemos aqui não só o amor entre duas pessoas, mas a união entre regiões e pensamentos brasileiros.

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2º – Druk – Mais Uma Rodada

Thomas Vinterberg – Holanda, Suécia e Dinamarca, 2020

Thomas Vinterberg mostra em Another Round (Druk) homens que intelectualmente se entregam a um vício e sofrem as consequências disso. Não há moralismo aqui, mas um trato humano para a aposta em um jogo muito perigoso. Com homens sensíveis, que choram, que conversam com os amigos sobre seus problemas e dores, o diretor também nos mostra esse outro lado da ansiedade, da depressão da busca por agradar e sempre fazer certo. É um filme sobre um vício muito comum, mas com camadas o suficiente para não deixar a abordagem datada ou rasa.

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1º – Ataque dos Cães

Jane Campion – Reino Unido, Austrália, EUA, Canadá, Nova Zelândia, 2021

Seja em Montana, em 1925, ou em qualquer lugar do mundo em nossos dias, o que muitos indivíduos deixam escapar é algo que a sabedoria popular já desmistificara há tempos, e cuja lição parece não ter sido plenamente aprendida: “as aparências enganam” — frase que vale igualmente para quaisquer padrões sociais. Em ambientes de hostilidade e preconceito para com pessoas mais fracas, diferentes ou em menor número, isso é ainda mais sentido. Em obras como esta aqui, onde os personagens são verdadeiramente estudados, é possível ver o que está além da face, do corpo, da expressão, daquilo que se mostra para o mundo. E, como alguém em Ataque dos Cães descobre de forma bastante letal, há muita força e muita coragem em corpos aparentemente frágeis e delicados. Aquele surpreso amargor em meio à doçura que pega a todos de surpresa… muitas vezes tarde demais.

MICHEL GUTWILEN

Assim como em 2020, 2021 foi um ano em que a vida me deu limões (a pandemia) e aproveitei para fazer limonadas (festivais online). Foram muitos meses se aventurando na cobertura de diversos festivais para o Plano Crítico: Festival de Tiradentes; Olhar de Cinema e Mostra de São Paulo. Além disso, para outro site, também tive a oportunidade de ter acesso ao meu primeiro festival norte-americano, com o SXSW, e também participei do meu primeiro júri em um festival de cinema, como parte do Júri Jovem do Festival Mar Del Plata. Não menos importante, 2021 também foi um ano importante pela volta das salas de Cinema. Se alguém se esqueceu do quão importante eram as salas físicas durante esse tempo pandêmico, a volta às salas nos lembra que não há nenhuma experiência caseira, por melhor que as televisões sejam hoje em dia, que chegue perto de replicar a magia que é estar dentro de uma sala de Cinema. Além disso, de um ponto de vista cinéfilo, 2021 também foi o ano em que eu pude ver diretores que eu tanto admiro pela primeira vez em uma sala de Cinema: como os filmes novos de M. Night Shyamalan, Paul Verhoeven, Apichatpong Weerasethakul, Lana Wachowski, Wes Anderson e retrospectivas de diretores como Wong Kar Wai, Jean-Luc Godard, Robert Bresson e Louis Malle.

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10º – Tempo

M. Night Shyamalan – EUA, Japão, 2021

Algo de especial na mise-en-scène de Tempo é a maneira como Shyamalan trabalha os momentos de revelação envolvendo uma pessoa que teve uma grande mudança física com a passagem do tempo. A mudança nunca nos é revelada diretamente, mas o diretor sempre faz questão de trabalhar a mudança a partir da observação de outros personagens. Ele passa calmamente pelo rosto de todos (muitas vezes em movimento circular) antes de entregar ao espectador a imagem. Se Shyamalan é o diretor do extracampo e da sugestão, isso atinge sua máxima de maneira imediata nessas sequências, pois elas permitem ao espectador imaginar a imagem em um curto período antes de finalmente vê-la. Além disso, o uso dos diversos planos-sequências ganham um peso dramático único e com verdadeira função narrativa por conta da temática do filme. Como é explicitado ao espectador através de diálogos a lógica matemática da Ilha, na qual X minutos viram Y anos, toda vez que um longo plano acontece, há uma tensão sugestiva e invisível dessa passagem de tempo acelerada dentro ele, de modo que sua extensão se torna verdadeiramente incômoda pois sabemos que os personagens estão envelhecendo muito e não há muito o que fazer. Por outro lado, quando há uma elipse (e também são muitas), é uma coisa completamente cruel. Você está acompanhando os personagens, aproveitando com eles e aí do nada vem tela preta e o tempo, sem pedir nenhuma permissão, avança em ‘anos’ por meio de um ‘piscar de olhos cinematográfico’.

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9º – Subterrânea

Pedro Urano – Brasil, 2021

Parece a versão brasileira de Under the Silver Lake mas, diferentemente dos americanos, cujas maiores preocupações estão ligadas a exploração satírica de um zeigest cultural sobre uma geração marcada pelas hipereferências, a narrativa de Subterrânea se adapta a uma realidade terceiro-mundista, onde o plot de paranoia surrealista e caça ao tesouro pela cidade está inserido dentro de um contexto mais preocupado com as raízes sociopolíticas (religião, escravidão..), que por sua vez estão nas estranhas de uma arquitetura. É homenagem à uma cidade, mas também um questionamento da história da mesma.

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8º – Benedetta

Paul Verhoeven – França, Bélgica, Holanda, 2021

Síntese da filmografia verhoeveniana: mentir do primeiro ao último plano, acreditando e dando palpabilidade para essa própria mentira, até que ela seja reafirmadas tantas vezes que se torna verdade. Seja Total Recall, Starship Troopers ou Benedetta, a farsa e os personagens resistem a toda tentativa de tentar revelar o véu por trás dela. O filme foge de ser apenas mera sátira farsesca sobre jogos de poder e manipulação, mas de fato absorve um ponto de vista muito cinzento que também dá espaço para uma especulação espiritual em cima dos delírios da própria protagonista. Se Verhoeven dá uma piscadinha para um vidro no chão, mostrando seu ceticismo diante da Benedetta, por outro lado ele também parece muito acreditar que há alguma força maior ao redor de todos aqueles acontecimentos, principalmente na encenação do cometa vindo ou em todos os sonhos envolvendo Jesus. É como se o próprio diretor, a cada cena, mudasse de ideia sobre acreditar ou não na Benedetta, indo da crença à descrença em questão de segundos, fazendo do filme todo um jogo de forças sobre o que é ou não encenação. E isso tudo é possível durante o filme porque existe uma grande atriz chamada Virginie Efra que carrega uma ambiguidade em cada gesto, de difícil decifração, do olhar malicioso que parece antecipar cada passo que vai dar, mas que paradoxalmente também parece cada vez mais inocente, a medida em que ela mesmo se torna a maior crente nas próprias mentiras que ela vai contando para todos.

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7º – First Cow – A Primeira Vaca da América

Kelly Reichardt – EUA, 2019

O passado de dois indivíduos colocam-nos em uma trilha que os faz mudar a vida um do outro. Conectar-se num mundo de difícil contato é a chave para se entender First Cow, chamando a nossa atenção para as diferentes camadas ou intensidade de contato. Há uma grande tensão no desenvolvimento em meio a tanta beleza visual, e a obra termina com uma reticência, sem responder visualmente “como” os dois amigos morreram, embora possamos subtender isso pelo roteiro. Eu não gosto da introdução da fita, porque mesmo a sugestão narrativa de uma futura conexão entre indivíduo e meio (talvez até com um chamado à memória ou às surpresas do acaso), não vejo como ela se justifica orgânica e dramaticamente no filme, mas o que verdadeiramente importa aqui é a lenta e aplaudível contemplação para um recorte da vida de dois homens, sua busca por um sonho de vida, os mistérios de seu passado e o impacto que causaram no mundo em que viveram. Fuga, encontro, convivência e fim da linha. Um ciclo de beleza e representações da existência humana em um faroeste sensível e inesquecível.

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6º – Bia Mais Um

Wellington Sari – Brasil, 2021

Trata-se de um filme que consegue ser bem sucedido em duas frentes um tanto quanto raras de se ter sucesso no Cinema Brasileiro: o cinema adolescente e o cinema onírico anti-naturalista, com o resultado disso sendo praticamente um episódio de Malhação dirigido pelo David Lynch. Uma história simples e cheia de clichês (o que evidentemente não é um problema), mas que Wellington Sari consegue construir em torno da alienação tecnológica uma atmosfera de sonho em sua mise-en-scène que está entre as mais empolgantes já vistas recentemente. Fantasmagórico.

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5º – O Leopardo das Neves

Marie Amiguet, Vincent Munier – França; 2021

Talvez por isso o final de Leopardo das Neves seja tão potente emocionalmente, justamente pela consciência de que sua aparição se dá em uma circunstância quase que milagrosa, como o destino quisesse que aqueles homens cruzassem frontalmente com aquele animal raro no mundo. Se o plano e contraplano de uma troca de olhares é um dos recursos mais usados da história do Cinema, seu uso aqui é especial, pois ele ressignifica toda a lógica do filme em mostrar esses homens tentando estar um passo à frente da natureza. O contraplano não é o leopardo das neves, mas sim o homem. Se ele achou que estava observando esse tempo todo, na verdade era ele que estava sendo observado. Com seu olhar de superioridade que é mais significativo do que qualquer palavra dita, aquele animal tão majestoso deixa claro: os verdadeiros selvagens somos nós.

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4º – Matrix Resurrections

Lana Wachowski – EUA, 2021

Tanto na trilogia original de Matrix quanto em Resurrections, todo o afunilamento da complexidade da história leva para uma tragédia de amor. A força motriz desta jornada do herói sempre foi a busca de Neo por Trinity, de modo que a grande escolha de Matrix nunca foi a blue pill ou a red pill, mas sim a de escolher ir salvar o amor ao invés do mundo (e será isso que justamente salvará o mundo). É justamente essa a grande missão em 2021, que existe aqui como uma dupla camada: Neo deve fazer “Tiffany” (Trinity) lembrar da existência deste amor, mas também fazer o fã deste universo deste grande dilema essencial de Matrix. Novamente, Lana é irônica: despertar da simulação, desta vez, significa abandonar toda aquela realidade nerd e ir atrás do amor. O que Resurrections mostra é que, não importa quantas vezes aquele ciclo se reinvente e reconfigure, de acordo com o zeitgeist de cada época, a única base universal e atemporal que deve continuar para a franquia sobreviver é a do amor. Não se trata de uma história de amor que recomeça do zero, mas que se permite amar cada vez com mais força a cada encontro dentro deste ciclo de esquecer e relembrar.

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3º – Justiça Brutal (Dragged Across Concrete)

Sian Heder – EUA, 2021

Dragged Across Concrete é o terceiro acerto seguido na ainda curta e substancialmente desconhecida filmografia de S. Craig Zahler, mas o filme sedimenta seu estilo, mostra que ele não está confortável em apenas repetir o que o espectador espera dele e não abre mão de uma pegada autoral que é cada vez mais rara de se ver por aí. Sorvendo inspiração diretamente dos anos 70 e retrabalhando estruturas narrativas e enxertando diálogos duros e cheios de significado, o diretor oferece a seus fieis seguidores (sim, quase como um culto!) uma obra-prima.

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2º – À L’abordage

Guillaume Brac – França, 2020

A reflexão é o fenômeno que consiste no fato de a luz voltar a se propagar no meio de origem, após incidir sobre uma superfície de separação entre dois meios. Refração é o fenômeno que consiste no fato de a luz passar de um meio para outro diferente.” Apropriando-me dos conceitos da física, estava pensando aqui que existem dois tipos de filme: os que fazem reflexão e os que fazem refração. Há filmes maravilhosos que assistimos e ficamos pensando neles próprios, enquanto Cinema. Pensamos no quão genial é a sua realização, naquela direção, no quanto a gente ama o Cinema e suas possibilidades, ficamos com vontade de escrever textos analisando sua mise-en-scène, seus subtextos e temas. Mas há também os filmes reflexivos, e À L’Abordage é um deles. A luz vem da realidade, bate no Cinema, e volta para a realidade. É um paradoxo crítico: eu não tenho vontade de escrever sobre a “obra de arte” À L’Abordage! e nem de ficar gastar meu tempo pensando nele enquanto Cinema. Assim que o filme acaba, diferente dos filmes refratários, eu não quero continuar pensando pra dentro, eu quero ir para o mundo lá fora, viver a vida, ser feliz, estar no mundo empírico, não quero ficar na teoria. Não há nada para se falar deste filme, tudo já está falado. É vida enquanto sentimento contagiante que se espalha pela tela e ocupa cada fotograma. Milagres como esse acontecem de vez em quando e devemos ser muito grato a estes espelhos que nos lembram como o mundo pode ser um lugar tão bonito para se viver e não só ver através de uma tela.

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1º – Memória

Apichatpong Weerasethakul – China, Colômbia, Estados Unidos, Tailândia, Catar, Alemanha e México, 2021

BOOOM. Que som é esse? No meio do Cinema e seu silêncio, completamente misterioso, um distúrbio sonoro, quase um artifício de terror do ‘jump scare’ que inexplicavelmente inquieta e dói a alma. Então, o filme começa, a história segue normalmente, até vir o próximo e arrepiante BOOM. A partir daí se tornou um dos filmes mais assustadores que vivenciei enquanto espectador. Vivi os anseios da protagonista de Tilda Swinton, com medo da próxima vez que chegaria este som, esperando ele surgir em cada cena, antecipando-me ao susto (nunca funcionava), em estado de alerta, sem saber pra onde seria levado em cada cena com a virada da montagem, esperando algo de muito horrível acontecer em cada plano. Não um filme de terror, mas muito apavorante. Não sei o que é passado, presente e futuro em Memoria, não sei o que é medo ou fascínio, não sei o que é imaginação ou real, ficção científica ou magia, não sei de quem são aquelas memórias, não sei mais o que é Tilda Swinton e o que é a natureza em volta dela ou se são uma coisa só. Sei que o Cinema pode ser tudo ao mesmo tempo. Sei que o Cinema é atraído pelo desconhecido, que tem um instinto investigativo. Sei que vi o filme do ano, sei que vi um dos maiores filmes da década que ainda está em seu 10% em completude. Sei que vi uma anomalia. Sei que estou apavorado, sei que tenho medo, mas ao mesmo tempo sinto que tirei um peso das costas.

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