Stanley Kubrick é e sempre será um dos meus cineastas favoritos. O norte-americano é um caso de grande sucesso de público e de crítica. Com uma filmografia relativamente pequena, ele foi capaz de criar cenas que estão eternizadas no cânone da sétima arte. Um dos diretores essenciais para entender a história do cinema, que sempre será lembrado pelo perfeccionismo técnico com que deu belíssimo acabamento a obras cheias de substância. Contudo, nem sempre é dado o devido destaque a uma característica tão orgânica de seu cinema – Kubrick escolhia a dedo suas trilhas sonoras. Fotógrafo de origem, o americano soube utilizar a música como poucos na montagem de seus filmes, conectando imagem e som com uma desenvoltura única. Selecionei a seguir alguns exemplos em que isso acontece:
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1) Glória Feita de Sangue (1957)
Uma história sobre a brutalidade da guerra e o sentimento do soldado que não se reconhece no conflito. Ambientado durante a Primeira Guerra Mundial, o longa-metragem conta a história de soldados que se recusam a realizar uma missão absurda: atirar contra as próprias trincheiras, sob as ordens de um general insano. Em preto e branco, Kubrick cria um verdadeiro manifesto pacifista, ressaltando a humanidade do combatente e recusando a reificação do homem submetido à guerra. O filme conta com ótimos enquadramentos no campo de batalha. A câmera nas mãos, realizando um travelling lateral memorável e inserida no campo de batalha, constrói um realismo que pouco se via nos filmes do gênero. No final, os militares cantam, aos prantos, The Faithful Hussar, uma canção alemã tradicional sobre um soldado que aguarda o reencontro com sua amada.
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2) Dr. Fantástico (1964)
No auge da Guerra Fria, Stanley Kubrick realizou uma das melhores sátiras da história do cinema. Cheio de ironia e piadas inspiradas, o filme narra o atrapalhado ataque anticomunista de um general americano contra a União Soviética. Há muitas cenas inesquecíveis, como a da máquina de Coca-Cola, praticamente todas em que aparece o cientista nazista, cujo braço ainda faz involuntariamente a saudação ao Führer e aquela em que o histérico general Buck abre os braços imitando um avião. É nesse filme em que Peter Sellers interpreta três personagens, chegando a “contracenar” consigo mesmo. O grande momento musical também fica para o final, quando um soldado enlouquecido cai montado numa bomba, tal como um cowboy em seu cavalo. E o mundo vai aos ares na voz de Vera Lynn, cantando We’ll Meet Again, canção muito simbólica também para vários soldados da 2ª Guerra Mundial.
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3) 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968)
Ó grande astro! O que seria de ti sem aqueles a quem tu iluminas?
Friedrich Nietzsche em Assim Falou Zaratustra – O Amanhecer
Ainda me lembro claramente da emoção que me despertou o início desse filme. Kubrick inicia sua magnum opus de forma instigante – estamos nos primórdios da humanidade, em condições hostis à sobrevivência da espécie. Em meio a caçadas e lutas contra bandos inimigos, um de nossos ancestrais descobre em um fêmur caído no chão uma ferramenta e uma arma para vencer seus adversários. O momento em que o hominídeo descobre nossa primeira tecnologia é impulsionado pelos harmônicos da introdução de Assim Falou Zaratustra, de Richard Strauss, poema sinfônico baseado na obra homônima de Friedrich Nietzsche.
A introdução de Richard Strauss se chama O Amanhecer e corresponde ao momento da obra nietzscheana em que o profeta Zaratustra anuncia o übermensch (super-homem) – o homem que supera a si mesmo. É fantástico como a referência musical e literária se encaixa à cena de Kubrick, que apresenta um momento decisivo da história do homo sapiens, em que a espécie supera uma etapa de sua história ao inventar a tecnologia (supera a si mesma), chegando à conquista do espaço milênios depois. O osso é lançado ao ar e se converte em uma nave espacial, que baila em compasso de valsa de O Danúbio Azul, de Johann Strauss II (importante não confundir os Johann Strauss, compositores vienenses de valsas, com Richard Strauss, compositor alemão do século XX). Com enorme profundidade filosófica e muitos enigmas em aberto, essa é uma obra de encantamento inesgotável. Talvez o meu filme predileto até hoje.
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4) Laranja Mecânica (1971)
Baseada no romance de Anthony Burgess, a história de Alex e sua camarilha ganhou uma adaptação cinematográfica à altura da obra literária. Quando se fala na trilha sonora de Laranja Mecânica, logo se pensa no quarto movimento da Sinfonia Nº9 de Ludwig van Beethoven, que Alex ouve várias vezes ao longo da obra e que está presente também no romance de Burgess. Adaptar Laranja Mecânica para o cinema exigiria, quase que obrigatoriamente, incluir a música do compositor alemão na trilha sonora, já que ela já ocupa uma posição central no próprio romance. Não vejo nesse uso um grande mérito de Stanley Kubrick, mesmo que ele dê grandiosidade e força à adaptação cinematográfica.
A escolha da abertura da ópera La Gazza Ladra, de Gioachino Rossini, é o que eu gostaria de comentar. Ela surge sempre que o personagem de Malcolm McDowell e seus companheiros fazem suas traquinagens. A abertura é famosa por começar com o solo de duas caixas claras, situadas em pontos opostos do teatro. Conta-se que Rossini escolheu o solo inusitado por um motivo mais prosaico que musical. O compositor italiano queria confundir seus adversários na plateia, pois soubera que eles prepararam uma vaia para quando a abertura começasse. La Gazza Ladra, que significa “A Menina Ladra” em italiano, é uma ópera semi-séria (gênero situado entre a ópera bufa ou cômica e a ópera séria), que narra a história de uma menina acusada de roubo – um tema muito semelhante ao de Laranja Mecânica, em que jovens apavoram uma cidade com seus delitos. O filme de Kubrick também alterna o tom dramático da distopia com momentos cômicos, temperados com o humor negro de Alex.
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5) De Olhos Bem Fechados (1999)
Para fechar a lista, destaco o último filme da carreira de Stanley Kubrick, que explora de forma interessantíssima temas como inconsciente, sexualidade e fidelidade conjugal. A trilha sonora participa da narrativa tanto de forma diegética como extradiegética. Quando o personagem Bill chega ao ritual orgíaco, a trilha sonora pontua a cena com o segundo movimento de Musica Ricercata, do compositor moderno György Ligeti. Ricercar significa literalmente “descobrir” e, em música, denomina uma composição típica do início do Barroco que introduz ideias a serem exploradas em uma peça seguinte. Ligeti resgata a forma musical na Modernidade e cria uma peça com atmosfera tensa. Descoberta e tensão são exatamente as sensações vividas pelo personagem de Tom Cruise na famosa cena do ritual.
Para finalizar, outro momento musical extraordinário em De Olhos Bem Fechados ocorre antes de Bill chegar ao necrotério. O alto-falante de um café onde ele entra executa Rex Tremendae, trecho do Requiem de Wolfgang Amadeus Mozart. Em música, Requiem designa uma missa dedicada aos mortos. Além de Mozart, muitos outros também compuseram missas desse tipo, como Brahms, Verdi e Fauré. No filme de Kubrick, o trecho surge de forma diegética (música presente no mundo dos personagens e não somente dirigida ao espectador) e antecipa a revelação da morte de um dos protagonistas do longa-metragem.
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A lista que criei estabelece um breve panorama da carreira de Stanley Kubrick, toda ela marcada por trilhas sonoras memoráveis. De Olhos Bem Fechados fecha sua enxuta filmografia sem esboçar nenhum sinal de decadência. Seu canto do cisne é mais uma lição de como música e cinema podem se unir para potencializar a experiência prazerosa de se sentar para ver um filme.