Lançado em 2022, The Last of Us Part I é o remake da obra-prima de 2013 que tomou de assalto o universo dos games com a bela e trágica história de Joel e Ellie. Inspirado no livro A Estrada, do autor americano Cormac McCarthy, a produção original apresenta um futuro pós-apocalíptico em que o mundo foi destruído por uma praga chamada Cordiceps, um fungo mutante que controla o sistema nervoso de seres humanos, tornando-os criaturas canibais similares à zumbis, mas com certas características particulares e um objetivo coletivo de propagar a infecção, conceitos que trazem um diferencial narrativo e visual para tramas dessa ordem. No meio de uma civilização decadente, jogamos majoritariamente através da perspectiva em terceira pessoa de Joel, um contrabandista que se enrola em uma missão perigosa de levar Ellie para um grupo revolucionário chamado Vaga-Lumes, em razão da jovem ser imune à praga.
A promessa de uma cura ou os próprios acontecimentos em torno dessa sociedade distópica são elementos subsidiários para o verdadeiro foco do roteiro de Neil Druckmann, que centraliza tudo em uma história de personagens com a dupla principal, explorando principalmente o relacionamento de ambos, seu traumas inexplicáveis, o belo crescimento do laço emocional entre eles e, de maneira geral, na dúvida de como e se sairão dessa situação. Nesse sentido, o texto é relativamente simples e objetivo, indo do ponto A ao ponto B com diferentes blocos bem típicos de pós-apocalipses zumbis, com enfrentamentos de facções, antagonistas humanos tão perigosos quanto as criaturas, coadjuvantes que ficam pelo caminho e uma espiral de cenários de horror, mas é uma simplicidade com uma personalidade ímpar e um desenvolvimento dramático extremamente maduro e identificável, que nos faz importar profundamente com Joel e Ellie.
Logo de cara, a qualidade cinematográfica do jogo chama a atenção. A partir do angustiante prólogo de Joel, fica claro que o jogo é uma mistura de interação com uma narrativa serializada que torna a experiência um misto de mídias, não apenas em termos de enredo, mas também da construção cinemática desse universo. Vemos um cuidado meticuloso em todos os departamentos, começando pelo ótimo trabalho de motion capture e de dublagem dos atores, que aproveitam os diálogos sutis e curtos de Druckmann para entregarem performances realistas. Na nova versão, a remasterização enfatiza a qualidade dramatúrgica da obra, com feições e nuances mais ricas e um olhar técnico absurdo para microexpressões. A qualidade da caracterização é levada para os diferentes personagens que Joel e Ellie encontram ao longo da saga, todos deixando algum tipo de impacto mesmo em participações limitadas.
Da sagaz e impiedosa Tess no começo da obra, da chegada do paranoico e esperto Bill para ajudá-los – com ótimas discussões cômicas com Ellie -, até o bloco trágico de Henry e Sam, temos um grupo de figuras que agregam de diferentes formas para a jornada intimista dos protagonistas, incluindo também antagonistas, como o assustador David. Entre grandes porções de catástrofes e horrores, existe uma certa sensibilidade e ternura que perpassa muitas dessas interações, na justaposição narrativa que a obra faz entre a beleza de momentos banais e descontraídos, como as piadinhas constantes de Ellie, com a realidade perigosa e os inimigos sempre à espreita. Com capítulos demarcados por cada uma das quatro estações do ano, Druckmann desenha uma trama que não foge de seu foco em relacionamentos, na exploração da condição humana com temas sobre moralidade, paternidade, lealdade, culpa e redenção sendo destrinchados no subtexto de um conto que revela o viver dentro do sobreviver em situações impossíveis.
É interessante como todo o restante da produção é construída em torno desse encaminhamento dramático íntimo. Isso fica claro, por exemplo, na trilha sonora minimalista de Gustavo Santaolalla, priorizando efeitos sonoros sutis do que algum tipo de cacofonia genérica para obras de zumbis, até mesmo nas sequências de terror, que enfatizam o silêncio e instrumentais mais simples – a quase inexistência de jumpscares do jogo é um refresco para obras do gênero, com exceção de alguns ataques surpresas dos cordiceps, mas todos bem compostos no cenário de horror maduro do jogo. A direção de arte segue a mesma abordagem, com inspirações naturalistas que acompanham a simplicidade do texto, mas sempre com um olhar atento para detalhes no desenvolvimento de um mundo que está sendo tomado pela natureza.
Isso, inclusive, realça as contradições propositais da obra, com sequências de metrópoles absolutamente destruídas, mas ironicamente belas, como pode ser visto em duas fotos abaixo. Das inundações de Pittsburgh aos subúrbios engolidos pelo verde, o nível de imersão visual da obra é estonteante, dando um ar de exploração mesmo para uma obra que não é de mundo aberto, com um senso de contemplação e desolação que acompanham a jornada da história – a nova versão oferece um universo ainda mais vivo com a melhor resolução do PS5 e animações revisadas. Alguns contrastes com cenários militares também são de alto grau de qualidade, principalmente no começo da obra, mais fortemente distópico e prisional antes de gradualmente nos aventurarmos por um EUA pós-pandêmico que é tão belo quanto assustador. Vale destacar, também, o design das criaturas da obra, que emulam fungos saindo, entrando e engolindo seres humanos, como se estivessem em um estado de decomposição e crescimento ao mesmo tempo.
A variedade dos infectados até que não é tão grande, mas são todos aterrorizantes e com peculiaridades próprias que mudam o tom e a abordagem do jogador dependendo do cenário, o que acrescenta detalhes estratégicos que exigem do controlador. Por exemplo, temos os infectados mais padrões, como os runners, que são quase zumbis, ou os lurkers, que ficam correndo de um lado para o outro (de certa forma, são os que mais assustam em razão de sempre aparecerem de maneira súbita ou de estarem escondidos), mas temos, também, os bloaters, que precisam ser derrotados à distância em razão de soltarem nuvens de toxina, e os clickers, que não enxergam e são mais facilmente derrotados em modo furtivo, explorando o uso de distrações e movimentações pacientes. Mais uma vez, o jogo tem um cuidado na construção dos cenários para apresentar os infectados, de prédios abandonados, esgotos entupidos de criaturas, perseguições em espaços abertos e uma narrativa que está em constante movimentação, com, claro, muita participação ativa de antagonistas humanos, que apresentam ameaças mais inteligentes e táticas.
Eu sei que até aqui estou falando mais de narrativa e ambientação, mas a produção é tão meticulosa que precisa dar contexto antes de chegar diretamente na jogabilidade. Já vi muitas pessoas reclamarem que o jogo é muito serializado, pesado em narrativa e tornando a experiência mais passiva e assistível do que jogável, mas discordo dessa leitura. As cutscenes são econômicas, bem espaçados dentro da trama e sendo colocadas apenas em momentos chave de transição, encostando no roteiro eficiente de Druckmann para sempre nos deixar na espiral imparável que é a jornada urgente de Joel e Ellie, com pouquíssimos momentos de respiro.
Se o drama é íntimo e melancólico, a jogabilidade é tensa e muito bem pensada para o conceito de survival. Os controles são relativamente simples de se acostumar, sem tantos detalhes no combate de armas de longo e curto alcance, um inventário limpo e objetivo, além de um sistema de upgrade de armas e criação de itens bastante interessante e direto, com melhorias de equipamentos utilizando peças encontradas ao longo da história, o que agrega para a sensação de sobrevivência, de precisar buscar itens e suprimentos em cada quarto e sala, principalmente dependendo do nível de dificuldade. O jogo exige do jogador que explore os seus espaços, que pense a cada passo da história e que se coloque dentro das dificuldades de Joel.
Isso inclusive enfatiza as mudanças de estratégia, às vezes priorizando a furtividade para economizar equipamentos e balas, precisando encontrar outras formas de abater o inimigo, como no uso de bombas de fumaça, garrafas e tijolos, minas de proximidade, ataques surpresas, etc. Claro que existem conveniências e um número sempre irreal de inimigos, mas a proximidade do realismo do jogo chega a ser desconfortável. Elementos simples como a criação em tempo real – que elegantemente dificulta o gameplay -, a necessidade de precisar ajudar Ellie constantemente, a escassez de itens e a inteligência artificial elevada dos antagonistas tornam The Last of Us uma verdadeira experiência de sobrevivência.
A única facilidade que não gosto é o “Modo de Escuta”, que penso ser quase um roubo, ou no mínimo um facilitador bobo, apesar de entender seus efeitos práticos, principalmente para iniciantes. Busquei não utilizar a habilidade ao longo das quase 15 horas de jogo, até que depois utilizei o modo Survivor da obra, que tanto não tem o “Modo de Escuta”, como também traz o grau de dificuldade ao máximo e, na minha opinião, no ambiente perfeito do survival, da identidade da produção e como a obra deve ser jogada – recomendo a quem possa voltar a esse universo, que utilize essa modalidade, apesar de ser frustrante em alguns pontos. Invariavelmente, porém, seja o modo furtivo, o ataque direto, uma abordagem à distância ou até um misto de tudo, o jogo é divertido de todas as maneiras e sagazmente sabe como exigir do jogador que haja de maneira tática e estratégica.
A variedade de cenários ajuda bastante nessa mescla, também evitando um senso de repetição. A densidade dramática e o cuidado com a ambientação enfatizam a imersão, mas é a multiplicidade dentro dos conceitos simples – porém criativos – que tornam a experiência facilmente fluida e viciante. Particularmente, gosto bastante do bloco que jogamos com Ellie e dos núcleos em espaços fechados com Joel, que é onde sinto um grau maior de dificuldade e onde o horror ganha corpo. O remake ainda tem elementos próprios que melhoram a jogabilidade, com o combate e a exploração aprimorados, feedback tátil e sensibilidade do controle DualSense para emular ações de jogo, todos elementos que agregam e atualizam uma jornada já excelente. Se tenho algo a reclamar da nova versão, é a retirada do modo multiplayer do jogo, que era sim dispensável, mas também divertido.
Mais de uma década desde o lançamento original, parece redundante elogiar The Last of Us hoje, mesmo que seja uma análise do remake, que, com exceção de melhorias técnicas, segue à risca a obra original, que vai ser sempre um dos melhores jogos de todos os tempos. A produção é um exemplo máximo de que simplicidade feita com cuidado e atenção para detalhes pode significar ouro, no que se tornou um marco da história de games em sua abordagem minimalista para um obra de horror. Um misto quase impossível entre uma narrativa densa e sombria, mas também terna e sensível; uma criação de universo riquíssima e cinemática, dos conceitos artísticos ao apuro técnico; e uma jogabilidade cuidadosamente pensada para uma experiência realista de sobrevivência, o resultado final é um jogo que dá aula em todos os departamentos. Entre monstros e amigos, vitórias e derrotas, dilemas e escolhas impossíveis, a jornada de Joel e Ellie conquista não apenas pela ambientação e pela jogabilidade, mas também por uma história de amor e tragédia que ressoa muito tempo depois que a aventura termina. Certamente, uma dupla inesquecível e uma produção eternizada no panteão dos jogos.
Obs: A presente crítica é uma nova crítica do jogo feita agora, em 2025. A crítica original, por outro autor, foi publicada em 2013, e foi substituída.
The Last of Us Part I
Desenvolvedora: Naughty Dog Software
Lançamento: 02 de setembro de 2022
Gênero: Ação, Terror
Disponível para: PS5