Nem bem chegou ao local de encontro, o rapazinho de bigode russo desandou a falar. Estávamos na casa de um amigo e um grande grupo de conhecidos e desconhecidos trocavam impressões e amenidades sobre os mais diversos assuntos. O tal bigodudo, que aparentava ser o mais novo dentre os presentes, deu um sonoro “oooi!” ao chegar, e após cumprimentar alguns de nós, apontou para a própria camiseta e lançou, em alto e bom som:
_ Gente, eu adoro o ‘Dôvarrrr.
O rapaz se referia a Pedro Almodóvar, cineasta espanhol que ao lado de Jean Luc-Godard e outros medalhões do cinema europeu ganharam as bocas dos neo-nerds e os becos hipsters e pseudos-alguma-coisa que se proliferam como uma peste por aí a fora.
_ Ai, mas os filmes dele são tão sexy, tão fortes, né? É tipo os do Hitch e do Peteá (PTA).
Agora deram para crer que é legal chamar os cineastas por apelidos “carinhosos”. Tarantino é Taranta. Iñarrítú é Alê. Scorsese é Scorsa. A lista vai ficando cada vez mais estranha à medida que você conhece pessoas que são adeptas a essas intimidades de tratar diretores por nomes obscuros. Mas se isso ficasse apenas nos vícios da oralidade, seria menos complicado, afinal, a língua é cheia de bizarrices, e não raro, aparecerem exemplos escabrosos como os já conhecidos “maravilindo” (maravilhoso + lindo), “forderoso” (forte + poderoso) e por aí vai. Mas recentemente eu tenho me deparado com textos “críticos” que apresentam construções do tipo:
[…] tal era a complexidade realizada pelo incrível Dodô, um exemplo de que nossa juventude sabe o que fazer atrás das câmeras.
Depois de pensar que não apenas a nossa juventude sabe exatamente o que fazer atrás das câmeras, fiquei tentando entender por que diabos o autor havia apelidado Xavier Dolan de Dodô. Para mim, Dodô é aquela ave extinta da Ilha Maurício, ou, no máximo, aquele atacante do São Paulo nos anos 90. Dolan e Dodô não combinam. Ninguém chama David Lynch de Lyly, Glauber Rocha de Ro-ro ou Akira Kurosawa de Kuku.
Fico pensando: o que será que esse povo sente ao escrever uma crítica (pelo menos é assim que eles denominam) com um tom tão íntimo ao cineasta em questão? Seria o modelo de uma carta de amor disfarçada de produto racional? Ou seria apenas a falta de noção desses autores do quanto é estranho para um leitor acompanhar um texto em que o diretor é tratado por alcunhas?
Mas isso será difícil responder porque, ao que parece, esse grupo de “cinéfilos” íntimos não são muito fãs de pensar. Como provavelmente viram uns cinco ou seis filmes do livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, eles cantam de galo no poleiro da cinefilia e saem espalhando que querem fazer cinema igual ao Chris ou ao Wim, fazer tomadas como o Stan e ter a mesma profundidade que o Andrei. O que não vai acontecer é esse povo entender o que Chris Marker, Wim Wenders, Stanley Kubrick e Andrei Tarkóvski disseram ou dizem em seus filmes. E pior: tudo indica que eles decoram um roteiro para ocasiões especiais e saem citando coisas em tudo quanto é espaço na conversa, caindo em situações hilárias e revoltantes como a que aconteceu com o bigodudo que adorava o ‘Dôvarrrr.
Em dado momento da conversa ele chegou a dizer que adorava (a repetição do “adorava” aqui é realmente necessária porque a palavra era repetida ad eternum pelo Sr. Bigodes Russos) o trabalho do diretor com “o Bambam e a Pen, especialmente aquele… como é o nome? Aquele supersexy filmado em Barcelona com as amigas americanas…” e foi aí que eu entrei para dizer (depois confirmar com alguém se Bambam era realmente Antonio Banderas e se Pen era mesmo Penélope Cruz) que o único filme dessa atriz em Barcelona e com duas amigas americanas no roteiro era Vicky Cristina Barcelona, película de Woody Allen, não de Almodóvar. Consternado, o bigodes russos se justificou:
_ Eu confundi com o filme do Allenzinho porque a estética dele é muito semelhante ao do ‘Dôvarrrr, né, gente!
Foi aí que eu percebi. “Cinéfilos íntimos” não são apenas pessoas malucas. Eles são um caso perdido.