O 51º Festival de Cinema de Gramado chega à sua metade. Quatro dias, mais de trinta filmes vistos, oito críticas produzidas e incontáveis ideias que ficaram pelo caminho. Ao longo desses últimos dias, tentei estabelecer um rascunho de rotina – que nem sempre é levado ao pé da letra. Até aqui, a experiência tem sido a melhor possível. Uma imersão absurda naquilo que mais me atrai: cinema e escrita. A quantidade de filmes, é evidente, cansa. Todo final de dia é marcado por um cansaço absoluto, tanto físico quanto mental. Ao chegar de volta ao apartamento que aluguei, apenas deito a cabeça no travesseiro e durmo. Seguem, agora, pequenos relatos sobre o que vivi durante esse tempo no Festival até aqui.
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Um pouco da rotina diária
Desde o primeiro dia de festival, combinei comigo mesmo em acordar próximo das 8h30. O combinado logo foi rompido: passei a acordar às 9h. Acordo, tomo banho, arrumo minha mochila, separo meus óculos e rumo em direção à Sociedade Recreio Gramadense, local que comporta uma área destinada ao setor de imprensa. A sala está sempre abarrotada de pessoas: alguns gravando vídeos, outros escrevendo e mais alguns gravando entrevistas – e tem alguns que só vejo tomando café e conversando entre si. Das 9h30-10h00 até perto do meio-dia, escrevo entre uma e duas críticas. Durante meu almoço outro combinado (esse, mantido): não pensar em responsabilidades, apenas aproveitar esse momento de descanso. A mente há de parar.
Volto para a sala de imprensa perto das 12h30. Até por volta das 13h45, escrevo mais um pouco, porque às 14h iniciam as sessões à tarde dedicadas para filmes gaúchos de longa-metragem. Agora são 16h46 e estou escrevendo desde o final da sessão de Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre, pretendendo finalizar essa rodada de escrita. Às 17h30 estou novamente no Palácio dos Festivais pronto para mais filmes: dois curtas-metragens brasileiros e dois longas-metragens (um ficcional e outro documental). A sessão, geralmente atrasada, termina perto das 22h. Dali, parto para o restaurante mais próximo, janto – já completamente faminto e cansado – e volto para o apartamento para acordar no dia seguinte às 8h30. Ou melhor: 9h00.
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Caminhando
As sessões noturnas, às vezes, se estendem. Não conheço Gramado muito bem, mal sei alguns bons lugares para jantar à noite. No princípio, antes do Festival, isso me parecia um empecilho. Mas, ao longo dos dias, passei a apreciar minhas caminhadas sem direção alguma, apenas em busca de algo para forrar o estômago. A noite é gelada com um vento frio que parece cortar a pele, mas pouco importa: enfrento essa temperatura e caminho. Haruki Murakami tem o hábito de correr ou nadar para espairecer ou acionar a esfera criativa de seu ser. Encontrei, em Gramado, uma boa pista de caminhada. Contudo, prefiro caminhos silenciosos, longe das avenidas principais. Os passeios noturnos pelas ruas frias se dão, justamente, fugindo do centro da cidade, buscando sempre que possível o silêncio absoluto. Aqui, encontro um espaço perfeito para digerir os filmes ou organizar em minha cabeça algumas frases a serem destacadas em algum texto.
Nunca imaginei que o efeito das caminhadas pudesse ser tão forte assim. Um de meus artistas visuais favoritos, o carioca Artur Barrio, realizou uma intensa performance chamada 4 dias e 4 noites, na qual transitou perdidamente pelas ruas do Rio de Janeiro. Seu objetivo era despertar reações sensoriais novas e se perder na cidade que conhecia tão bem. Ele acreditava que se entregar fisicamente iria atingir limites da percepção nunca antes alcançados e que, também, iria deixar ele em um estado quase irracional. Obviamente minhas pequenas caminhadas não se comparam a esse experimento de Barrio, muito longe disso. Mas a ideia de se perder com consciência, deixar o mapa para longe e só seguir caminhando tem sido minha parte favorita do dia. Às vezes me perco entre minha respiração errante e minha passada lenta, algo que geralmente me passa despercebido. Mas que, aqui, torna-se quase protagonista. Sigo, como sempre, ansioso para minha próxima caminhada.
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Escrever quando dá, escrever o que puder
Antes de viajar para realizar a cobertura do 51º Festival de Cinema de Gramado, entrei em contato com um dos meus ex-professores da época da faculdade para pedir alguns conselhos sobre como realizar um acompanhamento decente do evento. Por se tratar de meu primeiro festival in loco, várias dúvidas pairavam pela minha cabeça. A principal delas era: como encontrar tempo para escrever com uma rotina tão cheia? Meu professor, então, soltou um pequeno mas importante conselho: “escreve quando dá, escreve o que puder; se estiver parado, escreve”. Tal conselho realmente grudou em minha mente. Escrever quando dá. Esse tempo de fato existe: é curto, mas existe. Entre uma sessão e outra, intervalos entre filmes, espera da abertura da sala de cinema, tudo isso é tempo para escrever. Cabe, no entanto, organizar o quê escrever em cada momento.
Quando um intervalo dura em torno de dez minutos ou menos, rabisco frases soltas, salvo orações que nem ao menos configuram frases, escrevo palavras-chave. Apenas deixo registrado alguma coisa que me faça lembrar de algum ou outro detalhe do filme assistido. Se um intervalo passa dos quinze ou vinte minutos, consigo ir além dos pequenos rabiscos: ensaio parágrafos, organizo a estrutura do texto e, dependendo da extensão do ínterim, começo a redigir o manuscrito em sua íntegra. Nesses momentos, tenho três grandes amigos: meu notebook sempre com bateria, meu caderno de anotações e as notas do celular. Cada um deles tem uma função específica cumprida à risca. O caderno dá conta dos rabiscos mais abstratos; as notas do celular, comportam uma primeira organização textual; enquanto o computador é destinado à escrita do texto em si. Tudo vale. Desde o mais tosco rabisco até o mais organizado texto. Escrever quando dá, escrever o que puder.
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Breves diálogos com um crítico de cinema
Era segunda-feira, dia 14 de agosto, próximo das 18h30. A sessão que deveria iniciar às 17h30 estava atrasada. No setor da imprensa, na primeira fileira do Palácio dos Festivais, ninguém entendia o atraso. A produção não informou nada para ninguém. Estávamos todos ali no mesmo barco: confusos, esperando algum sinal de vida ou de começo da sessão. Aproxima-se de mim, um membro do setor da imprensa, credenciado, que senta ao meu lado. Logo em seguida, vira-se para mim e reclama do atraso, dizendo, também, que deveriam haver explicações por parte da organização. Tempo depois ele se levanta, vai até o outro lado da fileira de cadeiras e começa a conversar com alguns amigos. Nesse momento, já sabia que se tratava de um importante crítico do cenário brasileiro. Por motivos óbvios, seu nome será preservado.
Finalmente, um aviso: em cinco minutos a sessão irá começar. O crítico volta, senta-se novamente ao meu lado e fala: “esses cinco minutos vão levar duas horas“. Rimos. Ele, agora, pergunta meu nome e para qual portal escrevo. Ele observa minhas credenciais e diz reconhecer meu sotaque. Assertivamente, ele conclui que sou de Porto Alegre, cidade que ele diz conhecer bem. Depois de horas de espera, duas apresentadoras do Festival sobem ao palco e discursam sobre a organização das sessões e sobre os primeiros filmes a serem exibidos.
Começa, então, a sessão do longa-metragem Mais Pesado é o Céu, de Petrus Cariry. Na metade do filme, em uma cena musicada, o som fica alto, quase ensurdecedor. O crítico ao meu lado me chama para perto e reclama no pé de meu ouvido: “esse som não pode estar certo“, diz ele com indignação genuína. Fim de filme e ele pergunta para mim o que achei da sequência em questão. Falei que me incomodou, mas nada muito marcante. O crítico, mais uma vez, reclama da sequência.
As duas apresentadoras, mestres de cerimônia, agora retornam ao palco para anunciar a organização próxima sessão, que comportaria um curta e um longa-metragem documental. Entre muitas frases e floreios linguísticos, ambas parecem tentar embelezar simples frases que não necessitam de muita enrolação. O discurso se alonga, as falas começam a perder sentido e eu, ansioso, começo a perder a paciência. Já basta o atraso inexplicável no princípio de tudo, agora mais enrolação? Suspiro fundo. O crítico, ao meu lado, percebe meu descontentamento, olha para mim e, concordando diz: “tão com muita falação hoje, hein, p** que p*“. Não consegui conter meu riso e muito menos a felicidade de não ser o único que não aguentava mais tamanho falatório.
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História prometida para grande amigo
Depois de publicada no Fora de Plano #94 meu texto a respeito do Festival de Gramado, recebi uma cobrança de um grande amigo em minhas redes sociais: “Não falou do Antonioni em Gramado“. Realmente, esqueci um trecho marcante do Festival de Cinema de Gramado envolvendo um dos cineastas que mais aprecio. Bom, vamos à história.
Era 1994 e o Festival passava por um período de seca. As políticas do ex-presidente Fernando Collor de Mello deixaram um rasgo gigante na produção de filmes no Brasil. Dessa forma, por breves anos, o evento de Gramado abriu as portas para produções estrangeiras. Um dos curadores do Festival era Walter Hugo Khouri, que realizava diversas viagens à Europa a fim de trazer mais filmes para Gramado. O diretor brasileiro conseguiu trazer ao Festival diversos atores estrangeiros, como Faye Dunaway e atores do filme Cinema Paradiso. Mas o mais badalado dos convidados foi, sem dúvida nenhuma, Michelangelo Antonioni, realizador italiano responsável pela trilogia da incomunicabilidade e por sucessos como Blow up e Profissão: repórter, estrelado por Jack Nicholson. A chegada do cineasta italiano à sala de exibições dos filmes em competição causou tremendo barulho. O público, vendo de perto um dos grandes mestres do cinema europeu, ovacionou o convidado de honra do 22º Festival de Cinema de Gramado.
Na noite de encerramento do Festival, Michelangelo Antonioni foi condecorado com um Kikito. Nessa mesma noite, uma sessão de homenagem para o diretor exibiu uma de suas obras máximas: A Noite. Relatos da época afirmam ter sido uma das sessões de maior lotação da história do Festival. Essa foi a primeira vinda do cineasta italiano ao Brasil. Sua estadia em Gramado foi marcada pela companhia de Walter Hugo Khouri e de sua mulher. Antonioni, com 81 anos na época, recebeu na cidade interiorana uma das mais singelas homenagens: uma salva de aplausos por mais de 10 minutos. Hoje, na entrada do Palácio dos Festivais, há uma placa em forma de recordação da passagem do diretor pela serra gaúcha.