É muito estranho revisitar, em 2022, na sala de cinema, um filme de 2009 com uma roupagem tecnológica de um cinema de 2030. Paradoxo: como um filme de treze anos atrás mais parece uma amostra de um futuro ainda por vir? E se este é um filme do passado, por que o Cinema não deu continuidade a este impulso inicial? Talvez o mais justo seja dizer que Avatar (e aqui também uma previsão para a sua continuação) será sempre um futuro do pretérito: olhar para este filme é pensar o que o Cinema poderia ter sido, mas nunca foi.
Ver o 3D de Avatar me faz lamentar tudo que o Cinema não se tornou nos últimos anos. Em boa parte de seu uso em filmes futuros, havia a intenção de quebrar a quarta barreira e adentrar no espaço inviolável e seguro do espectador, ameaçando em sua cadeira, como naquelas cenas em que um objeto vem voando em nosso. Pode até existir numa cena ou outra de perseguição que faz uso disso em Avatar, mas a chave aqui é o processo inverso: trazer o espectador para dentro do universo do filme, dando maior sensação de verossimilhança conforme amplifica o detalhamento espacial de seu universo.
O 3D idealizado por James Cameron funciona quase que como o contrabalanço de seu CGI. Se este afasta o filme do realismo, o que pode ferir a crença do espectador, por mais fiel que seja, o 3D puxa de volta ao fazer deste universo fake mais material. Sempre associado a uma escala micro, ele funciona para fazer com que vejamos com mais destaque (mas nunca o suficiente para tirar o foco da dramaturgia acontecendo na cena) os fenômenos do mundo de Pandora. Com isso, acreditamos que há seres microscópicos voando, que a água da chuva cai, que as plantas da floresta estão por todo lado, que as bolhas dentro da água flutuam etc.
Este tipo de imersão só potencializa o envolvimento do espectador com o mundo, em que momentos emocionais só são possíveis pelo seu pacto com a verossimilhança interna. Como não chorar naquela primeira cena noturna, mais precisamente quando os seres de luz encostam em Jake? Não se trata nem exatamente de um momento dramático, mas a imersão é tanta que é como se gerasse um transe por um estado de encantamento com o desconhecido da vida. Assim como alguém se emociona em ver uma grande beleza do mundo viajando para um lugar pela primeira vez, ver o universo particular de Pandora também promove catarses inexplicáveis. E para quem chora apenas com a beleza da natureza, é esperável que também se chore com sua destruição posterior. Ver todo aquele cenário de cinzas e desmatamento só possui efeito ao funcionar em dialética com a sensação de vida pulsante construída até então, de modo com que sua ausência seja igualmente tão material quanto sua presença — e que, por sua vez, não contém só uma faceta material, mas também espiritual, através de Eywa, com Cameron conseguindo criar em suas imagens um forte elo entre nativos e natureza, formando um ecossistema de imagens e seres que está em perfeita sintonia (neste caso, ironicamente, tudo ser de CGI, ou seja, da mesma matéria, ajuda a padronizar essa ideia de uma só energia em todos os seres).
Se existe este trabalho de imersibilidade no mundo de Pandora e na crença geral pela ficção, a todo tempo há também uma força que traz aquelas imagens de volta ao mundo real, proveniente da narrativa clássica que faz desta história um conto sobre colonização no qual os Na’vi são um povo indígena. Sobre isso, por um lado, seria possível pensar que existe uma problemática moral em que Avatar faz parte de um longo processo imagético de desumanização do olhar no Cinema diante do corpo do Outro (ou seja: o nativo terceiro mundista que se torna animalesco) e consequente gera um afastamento da sensibilidade diante da violência contra eles (exemplo: ver um Na’vi morrendo se torna mais fácil do que ver um indígena real). Por outro lado, me parece ser mais equilibrado, trabalhando com os curto-circuitos no sistema, pensar em como, hoje, só é possível contar uma história social e ambiental dessa em Hollywood usando do distanciamento, sem desagradar aqueles que mandam no sistema, e depois trazê-las de volta através desses processos significantes que voltam o espectador para o real.
Inclusive, me parece mais interessante pensar em outras direções mais complexas no campo imagético, principalmente quando pensamos como o filme não deixa de ser um próprio comentário, talvez até premonitório — que hoje se torna mais claro de se enxergar a posteriori —, sobre o próprio processo de gradual desumanização e virtualização da própria Hollywood como um todo. Se considerarmos que os Na’vi são feitos de CGI, o que seria Avatar senão uma história da própria evolução tecnológica do Cinema, cujo fim inevitável é o próprio abandono daquilo que é humano e material — por sua vez, limitado (por isso a situação de cadeirante do protagonista, criada pelo roteiro) — para aceitar de uma vez por todas a virtualidade do mundo sem fronteiras? Neste sentido, toda a jornada de autoconhecimento de Sully e o que ele consegue fazer com seu outro corpo não deixa de ser uma própria ode àquilo que o próprio corpo Na’vi (ou seja, o CGI) pode conseguir e um corpo humano (ou seja, um ator real) jamais poderia fazer.
A maior injustiça que alguém poderia cometer ao re-assistir Avatar seria pensar se ele pode ser considerado ou não é uma obra-prima que se consolidou com o tempo e, caso não seja, achar que ele fracassou. O que menos interessa falar aqui é porque o filme não é perfeito, então é melhor se livrar logo dessa inoportuna tarefa. Para suas duas horas e quarenta minutos, Avatar é extremamente corrido em sua narrativa. Não há um diálogo que não seja informativo para o público sobre as informações necessárias daquele universo ou para o andamento da trama e isso sabota principalmente o relacionamento de Sully e Neytiri, ficando a sensação de que nunca há uma conversa honesta entre eles, sempre presos como fantoches de roteiristas — mas aí existe o contraponto de que a força visual do filme é tão forte que o amor se solidifica pelas imagens, mesmo sem auxílio da palavra.
Faria bem à imersão de mundo se permitir mais conversas “inúteis” e deambulações para aqueles personagens, que não levassem a lugar nenhum, assim como mais cenas que só servissem para observar Pandora sem grandes pretensões, pois sempre quando uma exploração desta acontece, ainda está servindo a ideia de uma narrativa extremamente fechada. Até por isso, incomoda a ideia de Cameron em usar o recurso da narração em off. Fico pensando se veio de Apocalypse Now, mas se este recurso existia ali enquanto psicologização da trama, aqui só há mero processo de tradução das imagens ao público. De maneira a avançar a trama mais rápido, este recurso sempre anda com uma predominância de resolver etapas do roteiro por sequências de montagem que aceleram certas fases do processo de assimilação do mundo por parte de Sully.
Treze anos depois de seu lançamento, a impressão que fica é que Avatar deveria ter sido muito mais um filme que foi responsável por desbravar um terreno desconhecido para um novo caminho. Ou, usando uma linguagem moderna: uma demo de um software que deveria ter sido lançado. O que quero dizer é que este filme parece ter surgido para que outros filmes no futuro o superassem, mas ao mesmo tempo só poderiam existir graças a ele. Assim como olhamos o primeiro exemplar do cinema sonoro, a cores ou até de um gênero (como o noir ou slasher) menos pela ótica do perfeccionismo e mais como um estudo contextualizante-histórico sobre um pioneirismo que permitiu com que obras maduras do gênero fossem feitas anos depois. O problema é que não houve futuro.