Eu tô para ver carnificina maior do que aquela gerada por alguém que diz gostar de ler livros em formato digital, proferir essa afirmação diante os defensores da tal “sensação indescritível de sentir o livro físico nas mãos” e também da tal “sensação indescritível de poder cheirar um livro“. Cheguei à conclusão de que cheiradores e tateadores de livros formam a fanbase mais apaixonada, irritável e espantada (já explico isso) quando se trata de defender suas paixões táteis e olfativas em relação a um belo de um calhamaço. He he.
O mais engraçado é que a contenda não é nova. Eu entrei na faculdade em meados dos anos 2000, e sendo aluno de um curso de Humanas, a quantidade de leituras que a gente tinha para dar conta era algo ridículo. Assim, minha vida esteve baseada em “dar uma passadinha na xerox” ou “esperar os PDFs” enviados pelo professores, e esses eram os meios que todo mundo utilizava, porque ninguém tinha dinheiro para comprar tanto livro. Pois bem, já naquela época, nos envolvíamos em discussões do tipo “eu odeio ler em PDF” e “a verdadeira leitura é aquela gerada pela experiência do volume físico nas mãos“. O tempo passou e a tecnologia nos trouxe uma das maiores invenções de humanidade desde a criação da prensa: os e-readers. Mas as discussões em torno desse tema praticamente não se renovaram.
Em conversas antigas (e pelo que vejo, muita gente ainda não saiu desse patamar), ninguém defendia realmente a leitura digital porque ler em PDF é definitivamente muito ruim, a não ser que você pegue esse arquivo e o converta para um formato simpático e ajustável às telas do celular, kindle ou qualquer outro e-reader que tiver (nota: no computador, o PDF não precisa de ajuste, mas ler um livro no computador, por PDF, é terrível). Ou seja, ler em formato digital hoje em dia é algo bem diferente de você ficar com a bunda quadrada e perder uns 12 anos de resistência da coluna só de ficar diante da tela de um PC — e no caso de notebooks, o incômodo é menor, mas ainda existe. Temos formatos específicos para leitura confortável no celular e nos diversos e-readers que encontramos pelo mercado afora.
Dizendo isso, já fica clara a minha posição: eu adoro esse tipo de formato, e hoje, cerca de 70% das minhas leituras do ano são feitas através do meu kindle, definitivamente uma das melhores compras que eu já fiz em toda a minha vida. E mesmo diante de todas essas inovações, não é nada difícil a gente encontrar pessoas que se espantam imensamente (eu disse que ia explicar isso, não disse?) ao saber que um ser humano também pode ter uma excelente & real & genuína experiência de leitura através de um formato digital. “Ah, mas não é todo mundo que pensa diferente disso“, alguém dirá. E claro que não é, eu nunca disse isso. A questão é que o bloco dos cheiradores e tateadores de livros extremistas normalmente tendem a inutilizar qualquer tipo de experiência literária alheia que não tenha a ver com o papel. Resumindo: não é leitura se não for feita no formato físico.
Há algum tempo, aqui no site, entramos nessa discussão e um carinha teve a pachorra de me perguntar se eu era um “autor de livro digital“, tudo isso porque eu estava falando bem do formato. Parecia inconcebível ao homem que um indivíduo pudesse verdadeiramente amar o livro físico da mesma forma que ama o livro digital. E este sou eu. Como qualquer pessoa leitora em nossa sociedade — e digo com sinceridade: acredito que será igualzinho pelos próximos 100 anos, pelo menos — eu cresci lendo material físico. Gosto do cheirinho de livro novo e é claro que o livrinho cheio de ácaros do sebo tem todo um charme que eu amo. Ler com o livro físico em mãos nos traz uma experiência raiz, no sentido de ser similar ao modo como aprendemos a ler. A questão é que a mesma experiência eu sinto quando estou lendo com meu aparelhinho. E digo mais: desde 2017, quando comecei a ler neste formato, passei a preferi-lo à versão física.
O que escapa aos fervorosos cheiradores e tateadores de livros é que a experiência de leitura pode ser bem diferente de pessoa para pessoa, e que está tudo bem você odiar algo tão alienígena chamado “livro digital“, preferindo, portanto, o volume nas suas mãos. Mas daí até criar “argumentos de defesa” do tipo “não é livro de verdade“, “não proporciona uma genuína experiência de leitura” e “está emburrecendo em vez de tornar os leitores mais inteligentes” é babaquice pura e simples. O purismo dos cheiradores de livro ganha a sua cereja do bolo ao inutilizar a experiência de leitura do outro e inventar estatísticas sobre como o formato digital, supostamente, “está destruindo a literatura“. Enquanto isso, eu sigo com minha humilde biblioteca pessoal, sofrendo horrores para limpar todas as estantes de tempos em tempos e, em paralelo, vendo crescer enormemente e sem trabalho nenhum a minha adorada biblioteca digital.