Estou na fila do caixa. Odeio ir ao supermercado, mas uma hora é preciso. Mexo no celular e espero a fila andar. Três mulheres, provavelmente parentes, estão conversando à minha frente. Como não fazem questão de manter a conversa privada, dada a altura com que falam para serem ouvidas através das máscaras, eu acabo ouvindo, inicialmente “apenas por ouvir” e em pouco tempo, com genuíno interesse. Elas falam sobre os hábitos de alguém chamado “Fanquinho“. Pelo que eu entendi, “Fanquinho” é um jovem ateu que essas mulheres conhecem bem, possivelmente um parente. Uma delas pergunta “como é possível que um menino tão inteligente pode se comportar desse jeito”?. Até onde consegui acompanhar, as mulheres preparavam uma intervenção indireta, e esta se daria através de um filme. Foi aí que surgiu o meu impulso para escrever estas linhas. Porque a solução a que essas mulheres chegaram foi a de pedir para “Fanquinho” assistir a Deus Não Está Morto.
Das poucas coisas na vida que eu posso classificar com certeza, uma delas é essa aqui: após assistir a Deus Não Está Morto, “Fanquinho” terá visto crescer pelo menos metade de sua indiferença em relação à religião e o tal filme terá afastado o jovem uma boa quantidade de anos-luz do evangelho. E isso se dará porque este e outros filmes da Pure Flix — que basicamente enche piscinas de dinheiro, já que a bilheteria dessas obras é imensa –, mais uma porcentagem ridiculamente alta dos filmes cristãos moderninhos não são apenas ruins; produtos cinematográficos com pouca ou nenhuma criatividade envolvida (e ao contrário do que muita gente pensa, geralmente, orçamento NÃO é o problema). São filmes praticamente anticristãos, com representação abertamente demonizadora e negativamente estereotipada de todo indivíduo não cristão, contrastada a uma representação sacrossanta, imaculada, repleta de candura e amor de todos os cristãos que aparecem na tela.
Referindo-se à baixa qualidade técnica dessas obras, já vi muitos colegas argumentarem que isto se dá por serem sermões em formato ficcional, ou seja, apenas propagandas cinematográficas. Mas aí é que está a questão: nem todo filme de propaganda é formalmente ruim, independente do que se esteja propagandeando. O cinema soviético, quase que inteiramente assentado nessa poltrona, está aí para provar o contrário a qualquer um. No caso de obras como Deus Não Está Morto, Você Acredita? e tantas outras na mesma linha, não existe uma preocupação artística/cinematográfica por trás da propaganda. E até alguém poderia pensar: bom, a despeito da forma ruim, o conteúdo traz uma boa mensagem, é uma boa maneira de evangelizar, abrindo os braços para os gentios, não é? Resposta: não.
Uma parcela colossal desses filmes cristãos moderninhos são feitos exclusivamente para a parcela também colossal de cristãos que veem em Deus uma máquina de validação para a punição, para a condenação dos outros ao fogo do inferno. São obras que colocam humanos defendendo um Ser onipotente, onipresente e onisciente… que não precisa da defesa de ninguém. Mas aí também se esconde uma pérola de estranheza. A defesa que muito se vê nesses filmes é de absurdos não condizentes com o mundo real e que “provam o quanto os cristãos são perseguidos no mundo democrático Ocidental e que, mesmo assim, mantêm-se firmes diante de sua fé inabalável“. Todavia, o que a maioria desses filmes nos mostram é apenas um rebanho de algozes que não sabem o que significa a palavra “Cristianismo” e desrespeitam os próprios irmãos que verdadeiramente sofrem perseguição em países autoritários, cultural ou militarmente hostis à sua religião. A horda de cristãos brasileiros que fazem coro ao mito da “Cristofobia” num país como o nosso, utilizando como justificativa preconceitos cotidianos, olhares tortos, Marcha das Vadias, Porta dos Fundos e Queermuseu como se isso fosse um “projeto estrutural e nacional cristofóbico de perseguição aos santos” sai do mesmo buraco sem fundo.
Este é o mesmo rebanho que finge não entender a crítica a esses filmes ou que escrevem comentários chamando a gente de tudo quanto é coisa, condenando a gente aos círculos mais profundos e estabelecendo um falso paralelismo entre “o mundo” ter o direito de fazer chacota com o Cristianismo… da mesma forma que o Cristianismo tem o direito de fazer chacota com “o mundo“. Em essência, é exatamente assim que deveria ser! Pau que dá em Chico, dá em Francisco. Mas por que o paralelismo é falso? Porque “o mundo” nunca se colocou num pedestal missionário de ser O Escolhido, de andar em fé e retidão, de ser um representante d’A Palavra, de ser “O Sal da Terra e a Luz do Mundo“, de querer “ganhar almas para o Reino de Deus“. Os filmes cristãos moderninhos colocam os seus personagens nesse exato pódio, dentro de uma trama que só não se chama “o salário do pecado é a morte” porque poderia pegar mal. E aí fica a pergunta: é com essa exposição que tal parcela da cristandade contemporânea acha que está fazendo um bom trabalho?
Foi perdido nesses pensamentos que eu saí do supermercado balançando desconsoladamente a minha sacola reutilizável com pinturas de mamões papaia e romãs. Penso nas três mulheres querendo evangelizar o jovem ateu e pedindo para ele ver Deus Não Está Morto. O filme de uma Era de obras cinematográficas cristãs trazendo um conteúdo que pode ser punitivista, determinista, julgador, condenatório, estereotipado e até desumano e segregador, mas jamais cristão. E pasme: tudo isso vindo de uma produtora, de roteiristas, de diretores e de um objetivo assumidamente cristãos!
Eu já disse antes e repito: se você quer utilizar o cinema para falar de Deus a alguém, se você quer ter uma conversa gostosa com um não cristão sobre fé, sobre acreditar em Deus, bote A Palavra (1955) de Carl Theodor Dreyer para essa pessoa assistir. Quer falar sobre a grandeza da Criação? Lá está A Árvore da Vida (2011). Quer discutir sobre a crise da fé, o silêncio de Deus a busca do homem por um refúgio espiritual? Falem sobre Diário de um Pároco de Aldeia (1951), Luz de Inverno (1963) e Andrei Rublev (1966)! O assunto é entrega pessoal a Deus em meio à dor? Para isso existe A Fonte da Donzela (1960). E sobre religiosidade e tentações? Narciso Negro (1947). A discussão é sobre caridade? Buñuel nos presenteou com Nazarin (1959). O tema é “personalidade religiosa”? Veja O Apóstolo (1997). Vai falar sobre doutrina? Escolha os episódios da série O Decálogo (1989). Quer ver como funcionou uma verdadeira perseguição aos cristãos? Assista a Silêncio (2016). Pretende pensar algo diferente sobre questões relacionadas à homossexualidade no cristianismo? Orações Para Bobby (2009) e Como Diz a Bíblia (2007) podem abrir um excelente debate!
Estes filmes fizeram muito mais pelo evangelho do que uma enxurrada de cristãos do tipo “Você Vai Pro Inferno” ou “Fulano Merece Morrer” que eu encontrei da minha infância até hoje. E diferente dos supostos filmes cristãos produzidos pela Pure Flix e estúdios com abordagens similares, quem assistir a essas obras irá, no mínimo, ter uma sessão de respeitosa relação com a fé cristã. Já é 100% a mais do que qualquer película santificada e moderninha consegue fazer. Torço para que “Fanquinho” encontre melhores indicações e melhores conversas sobre cinema e religião no decorrer de sua vida. Eu tive a sorte de ter. Seria bom que ele também tivesse.