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Fora de Plano #79 | Instinto Selvagem (Versão Comentada por Camille Paglia)

por Leonardo Campos
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Um investigador ouriçado pela audácia de uma dama fatal moderna, concebida pelos moldes do arquétipo da mulher perigosa. Assim é Instinto Selvagem. Desde os textos da Antiguidade Clássica aos filmes de Alfred Hitchcock e das narrativas Noir, francesas e estadunidenses, a representação da femme fatale tem ganhado reformulações, situadas dentro de seus respectivos contextos históricos de aparição. Responsável por estabelecer um modelo de produção retomado constantemente desde 1992, o ousado filme dirigido por Paul Verhoeven, cineasta guiado pelo roteiro de Joe Eszterhas, estabeleceu padrões, fincou debates controversos da mídia e ainda hoje, três décadas após o seu lançamento, rende releituras, interpretações que nem sempre conseguem dar conta da complexa estrutura de uma narrativa pouco compreendida pela maioria dos espectadores e críticos que durante eras, tentaram focar na abordagem erótica da trama, bem como na famosa cruzada de pernas de Sharon Stone, cena que se tornou um mito da cultura popular, parodiada numerosas vezes em realizações ficcionais posteriores.

Nesta versão comentada, temos ninguém menos que a igualmente complexa Camille Paglia. A entusiasmada comentarista é uma figura já estabelecida em nosso cenário de crítica artística, mas creio ser importante traçar um breve panorama biográfico para que o leitor melhor compreenda as articulações do texto. Acadêmica de Yale, local onde também se formou em Língua Inglesa, a feminista considerada mais antifeminista da história recente atua como ensaísta, crítica de arte e defende tanto as manifestações artísticas elitistas quanto o que é produzido na cultura popular. Ela é uma das responsáveis pela introdução de elementos midiáticos e do pop no bojo de leituras acadêmicas, campo de reflexão e produção de conhecimento que durante bastante tempo, jamais pensou em inserir obras consideradas “impuras”. Paglia se diz feminista, mas isso não a impede de criticar com veemência algumas correntes do movimento, consideradas extremistas e desvirtuadas daquilo que ela acredita ser a “essência” articulatória da emancipação feminina. Um de seus pontos mais polêmicos é a afirmação sobre as ondas feministas das últimas décadas, direcionadas a proteção dos valores da mulher burguesa, isto é, uma batalha para privilegiadas.

Professora de Estudos Midiáticos na Universidade de Artes da Filadélfia, a filósofa contemporânea é também conhecida por várias publicações, dentre elas, Sexo, Arte e Cultura Americana: Vampes e Vadias, livro bastante debatido nos círculos que se dispõem a discutir temáticas feministas, alguns para aproveitar o conteúdo reflexivo da autora, outros para refutar as suas ideias paradoxalmente extremistas, tal como as ondas do movimento que ela se diz parte, mas tanto critica. Madonna é uma das palavras-chave de seu trabalho desde os anos 1980. Inicialmente envolvida pela proposta da cantora que também atua como atriz e produtora, Paglia considera que a artista foi a responsável por resgatar o arquétipo da femme fatale nos anos 1980, numa proposta cultural subversiva que aos poucos, cedeu ao marketing e se desprendeu da proposta politizada de suas produções preambulares. Contrária aos temas que envolvem a ideologia de gênero, nas eleições de 2016, Paglia considerou Hilary Clinton uma fraude, mas também se negou a abraçar Donald Trump. Assim, este distante da polarização.

Constantemente envolvida em polêmicas, a professora e ensaísta se insere na corrente teórica do Pós-Feminismo. Critica também a transexualidade, campo considerado equivocado em seu ponto de vista, e, ainda sobre o seu posicionamento sobre a ideologia de gênero, a provocadora feminista alega ser esse um erro da esquerda e culpabiliza a questão como responsável pelo crescimento da homofobia nos diversos territórios do país onde atua e mundo afora. Seu ponto de vista sobre a relação contemporânea entre o masculino e o feminino é delineado pela afirmação de que “o feminismo não pode ser lugar de mulheres com ódio de homem”. Outro ponto comentado frequentemente por Camille Paglia é a universidade como espaço para formação intelectual mais fluente, com professores que tenho perspectivas de pensamento diferente, algo que permitiria aos estudantes um aprendizado mais autêntico, sem ramificações intelectuais entrincheiradas. Quase sempre controversa em suas abordagens, a feminista apresentou uma série de paradoxos que refutam até mesmo o que ela expõe, mas há algo que não podemos deixar de considerar em sua trajetória: ela é uma exímia analisadora de obras artísticas.

Camille Paglia lê Instinto Selvagem

A versão de Instinto Selvagem comentada por Camille Paglia é uma aula de história do cinema e crítica de arte. As considerações filosóficas da ensaísta estão fincadas no que de fato o movimento Pós-Feminista traz enquanto perspectiva teórica, mas o ponto de destaque de suas observações é a análise semiótica de cada escolha narrativa da equipe do cineasta Paul Verhoeven. Logo na abertura, Paglia comenta a polêmica em torno do filme, antes mesmo de seu lançamento, uma obra que tal como O Silêncio dos Inocentes, foi considerada homofóbica por trazer deturpação de personagens que nesta época, ainda eram vistos pelo prisma dos medos associados ao HIV, assustadoramente retumbante na década anterior, isto é, nos anos 1980.

Fervor sexual e crime na cena de abertura: a enigmática música, o picador de gelo como arma de aniquilação e o estabelecimento da femme fatale interpretada por Sharon Stone.  

As linhas angulosas dos créditos iniciais e os reflexos do oceano no quarto dão o tom enigmático e ambíguo do filme, visual que nos remete ao que se produzia na arte cubista. Observe que a cabeceira da cama lembra uma jaula, imagem ideal para representar a fera interpretada por Sharon Stone. Logo adiante, ao pegar o picador de gelo, ela utiliza um objeto fálico, psicanaliticamente associado ao pênis, arma para ceifar a vida do homem com quem se relaciona sexualmente de maneira bastante intensa. É um duplo gozo para a personagem.

Os investigadores tentam compreender a cena de violência e mais adiante, encontra Catherine Tramell pela primeira vez.

Os policiais na cena do crime, o masculino em posição de poder, aparentemente ciente de como lidar com o caso estabelece uma aparente estrutura dramática policial trivial. É um espaço onde a corrupção corre por todos os poros, passagem que antecipa a busca por Catherine Tramell, a viúva-negra que mora numa belíssima colina, isto é, à beira de um abismo. Como uma deusa pagã, ela contempla a natureza enquanto os personagens masculinos tentam deixa-la numa postura desconfortável, algo sem os resultados esperados. Essa ideia de conexão com a água e outros elementos naturais se repete ao longo de todo o filme.

São Francisco, enquadrada nos moldes do cinema de Hitchcock. O investigador Nick Curran lê, atordoado e curioso, o livro de Catherine Tramell e observa a predileção da viúva-negra por sexo e violência. 

O personagem de Michael Douglas, logo no início, é acuado constantemente por Catherine Tramell, pois ao pesquisar o seu histórico problemático na polícia, a escritora manipuladora cita o seu passado como forma de manejar a estabilidade emocional do investigador. Ele representa a ciência, a análise e busca incessante por compreensão dos fenômenos que envolvem essa mulher sexualmente compulsiva e perigosa. Para Camille Paglia, Instinto Selvagem é um filme sobre o fracasso da ciência, incapaz de compreender a situação posta para análise.

Um suposto toque simples nos ombros gela a alma de Nick Curran, já envolvido pela audaciosa escritora manipuladora. No interrogatório, os investigadores tentam oprimir, mas são psicologicamente destroçados.  

Sem peças íntimas, Catherine Tramell segue os policiais para o interrogatório que se transformou numa cena mitológica na cultura popular. Há uma série de indícios que a derrocada do investigador será intensa: a mão no ombro parece indicar a busca por uma proximidade sensual e o jornal que retrata a sua história, em poder da personagem consciente de seu poder de manipulação. Ao fumar constantemente, a escritora deixa claro que é desobediente, tem força vampiresca e não se importa com o ato politicamente incorreto. Ela usa um figurino semelhante ao que Kim Novak trajou em Um Corpo Que Cai, narrativa hitchcockiana que ressoa em várias passagens de Instinto Selvagem.

Loira, fatal e perigosa: Sharon Stone e o traje inspirado em Kim Novak, de Um Corpo Que Cai.

A cena do interrogatório é uma aula de direção de fotografia. Ângulos, enquadramentos e movimentação em prol da melhor concepção visual para o desenvolvimento da narrativa. O feminino supostamente acuado se mostra e devasta os homens que tentam oprimi-la. Dominadora, ela é o centro desta passagem e deixa os homens aos seus pés. Considera pervertida, Catherine exala sexualidade e reforça o seu poder de manipulação. Ao olhar para a tela do monitor, temos um “filme” dentro do “filme”, uma dupla encenação por quem sabe que é contemplada pelo olhar assustado dos homens que deveriam execrá-la, mas não conseguiram manter a firmeza diante de uma representação feminina firme e audaciosa.

Com a direção de fotografia de Jan de Bont, os personagens integram uma cena com sombras e mistério. Em sua saída do carro, Catherine Tramell, uma ninfa, entra em contato com a natureza com os seus pés descalços.

A cena no interior do carro do investigador reforça o tom claustrofóbico da produção. Chove lá fora, mas no automóvel, os dois parecem ferver, física e psicologicamente. Camille Paglia comenta, ao longo desta passagem, que Catherine Tramell ressoa mitos da antiguidade, em especial, Circe, responsável por retardar a volta para casa de Ulisses, no poema homérico Odisseia. O poder de enfeitiçar e envolver os homens, próprio da deusa, encontra ecos na personagem interpretada por Sharon Stone. Ao sair do carro, a ideia de conexão com a natureza se reforça no plano que destaca o abandono do salto e a caminhada com os pés descalços, como se Tramell fosse uma ninfa. É uma das leituras mais pertinentes desta edição comentada.

Nick Curran reencontra a sua masculinidade após o encontro com Catherine Tramell: primeiro com os colegas num bar, depois com o seu interesse amoroso, numa cena com referências ao polêmico tema do estupro.

Para recuperar a sua masculinidade, Nick precisa retornar ao âmbito do masculino. É num bar que ele reorganiza a sua identidade, junto aos colegas de profissão. Paglia comenta a inserção de Michael Douglas em mais um cenário de masculinidade acuada, pois Instinto Selvagem se conecta de alguma maneira com Atração Fatal, narrativa reencenada, desta vez, com um tom mais violento e sexualmente mais intenso. Nesta passagem onde Nick se relaciona selvagemente com a terapeuta que ocupa o lugar de namorada, há uma menção ao polêmico tema do estupro, provavelmente inconcebível na contemporaneidade. É bem provável que caso o filme fosse realizado hoje, muitas adequações seriam realizadas para minimizar o seu tom subversivo.

A dupla dominação da femme fatale: perseguição nas colinas e o desmonte de uma pedra de gelo com o picador, um de seus símbolos de destruição. 

A cena de perseguição pelas estradas sinuosas funciona como paralelo temático da tensão sexual do filme. Ela, mais uma vez associada ao que é da natureza, comanda o território. Ao atravessar perigosamente as montanhas, Catherine Tramell parece dominá-las, como faz com os homens, em especial, Nick. Ao dirigir perigosamente, a personagem também traz para a sua estrutura um comportamento geralmente associado aos homens. O gelo que ela esculpe nas cenas seguintes é representação da sua concepção sentimental. Ainda nesta passagem, Camille Paglia traz a sua palavra-chave obsessão, Madonna, para dizer que Sharon Stone conseguiu fazer na tela o que a cantora nunca conseguiu em seus desempenhos dramáticos: a configuração de uma femme fatale forte e atuada com eficiência.

A fera está solta e deixa a sua marca nas costas de Nick Curran. O ato selvagem também envolve lençóis para amarrar a sua vítima, como uma aranha que tece para dominar.

Mais uma cena com ato sexual selvagem, cama que se assemelha ao que conhecemos por uma jaula. Animalescos, Nick e Catherine se entregam e a coreografia da dupla parece indicar que o crime cometido na abertura se repetirá. É uma passagem censurada, permitida apenas mais recentemente, nos relançamentos do filme em outras mídias. Como uma tigresa, Tramell domina o seu espaço e rasga as costas do investigador com as suas unhas, deixando uma forte marca do feminino que não está ali para brincadeira. Ao amarrá-lo, ela é uma aranha a tecer a sua teia e envolver a vítima. É um ato sexual hostil, periculoso, intenso e cheio de ambiguidade a cada movimento, em especial, a articulação da personagem de Sharon Stone, dominante na cama.

É possível confiar nesta mulher fatal? Nick Curran num breve momento de relaxamento e o plano que integra o desfecho da narrativa, o picador de gelo que pode (e de fato) significa muita coisa, ambivalente como a própria narrativa e seus personagens.

Catherine Tramell coleciona objetos que envolvem crimes. Isso a atrai. Para Camille Paglia, ela levanta questionamentos que até hoje são temas para debate: o que é uma mulher? Em suas elucubrações, a professora evoca Dalila, destruidora de homens, o mito de Lilith, a subversiva que antecedeu Eva, figura associada ao demoníaco, uma força da natureza que precede o ponto de partida bíblico para tentar explicar muitas coisas associadas ao tema em questão. O quão sobrenatural pode ser essa enigmática e manipuladora loira fatal? Paglia traz também a ideia dos súcubos, manifestação espiritual que suga a energia masculina, bem como outros mitos, tal como a Medusa e seu dom de tornar os homens uma estátua de pedra.

A química entre Sharon Stone e Michael Douglas é um dos elementos que transformaram o filme num sucesso do cinema moderno. Ademais, esse é uma das três produções em que o ator e acossado por mulheres de personalidades fortes, obstinadas e sexualmente fatais.

Dentre outras considerações, Camille Paglia associa a cenografia de Instinto Selvagem com algumas obras de Pablo Picasso, pintor que retratou a sexualidade por meio de composições polêmicas e, segundo os biógrafos do artista, era um homem de comportamento frio e calculista, tal como a personalidade de Catherine Tramell no desenvolvimento deste clássico moderno assertivo ao discutir de maneira polêmica, um lado do feminismo considerado forte e controverso. Fosse realizado hoje, será que o desempenho da substituta de Sharon Stone seria forte e sagaz, ou acometido por momentos de choro, sofrimento, culpa, vulnerabilidade, próprios das narrativas que perderam o encorajamento para discussão de temas polêmico sem muita cautela?

Com alguns grifos meus, em simbiose com o conteúdo exposto por Camille Paglia, essa reflexão pretende revelar um conteúdo importante para discussões sobre os ecos de Instinto Selvagem em nossa cultura atual, três décadas após o lançamento do filme. Muitas obras seguiram o seu modelo estrutural, numa fórmula constantemente copiada, mas nunca igualada.

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