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Fora de Plano #72 | O Cinema Novo de Helena Solberg

por Gorete Frazão
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O movimento cinematográfico conhecido como Cinema Novo apresenta sempre em destaque realizadores masculinos. Eles são de grande contribuição à produção e desenvolvimento do audiovisual brasileiro. Nesse ensaio, vamos traçar e apresentar aspectos da única realizadora feminina do movimento, a cineasta e roteirista Helena Solberg, nascida em São Paulo e criada no Rio de Janeiro, pertencente à classe média brasileira. Ela participou ativamente do movimento cineclubista, avançando seu interesse pela onda que emergia no meio universitário e em seu ciclo de amizades.

Helena Solberg estava em contato direto com alguns dos realizadores do momento, e entre eles podemos citar Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Celso Guimarães, entre outros. Trabalhou como repórter no jornal Metropolitano, patrocinado pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e estreou na carreira de cineasta em 1966, com o curta-metragem documental A Entrevista, sendo atuante na sétima arte até a atualidade.

A artista se encaixa na chamada ‘Segunda Fase’ do Cinema Novo, que pode ser historicamente inserida na cronologia entre 1964 e 1968. Esse período tem como ponto central da História política brasileira a consolidação e estruturação do Regime Militar bem como do próprio movimento cinematográfico. Essa fase é marcada por uma revisão teórica e estética dos diretores. Na percepção deles, haviam falhado na empreitada de manter e defender a democracia, usando a arte como instrumento educativo e político. Então os filmes passaram a focar na angústia que era viver aquele momento.

A produção do período tinha como aspecto geral uma agressividade nos temas e nas imagens produzidas. Seu foco seria observar uma diversidade de aspectos nos campos políticos, culturais e sociais. Dessa forma, seria elaborada uma leitura capaz de oferecer o debate e consequentemente a construção de uma nova realidade. Tais aspectos são frutos dos processos formativos do cinema moderno brasileiro, tendo como base os debates em cineclubes e a produção de críticas cinematográficas, encaminhando esses jovens para uma leitura mais concreta da realidade e para o poder que há na educação dos indivíduos a partir da arte.

Essa fase inaugurou uma experiência intimista e subjetiva dos realizadores, conseguindo um diálogo mais direto com a vertente social, algo possibilitado pela chegada de novas tecnologias para a estilística do cinema direto, bem como o processo de formação de um grupo de cineastas e produtores de um cinema que dialogava com movimentos internacionais. O processo de inovação só foi possível com a junção de diferentes grupos. Nessa etapa, podemos destacar a atuação direta dos cinemanovistas e o seu prestígio conquistado em organizações internacionais e na atuação de algumas esferas do Estado, com um cinema aberto para seu tempo. É um momento de alinhamento teórico e tecnológico para o cinema nacional e mundial, trazendo uma nova dinâmica estética baseada em câmera na mão, encenação não construída na mise-en-scéne e captação direta do som. É com a força desse Cinema Verdade que pautaremos grandes avanços a partir de 1965, onde o povo assume o papel principal nas produções de um cinema documental, produzindo novos recortes e novos aspectos etnográficos. Não podemos deixar de salientar que a classe média e seu modelo de vida foram o objeto de crítica.

É nesse contexto que vamos observar e analisar aspectos do curta A Entrevista. Estamos falando de um cinema documental que busca resgatar a subjetividade feminina, onde as mulheres discutem a ‘apropriação’ de seus corpos e do desejo sexual. Essa percepção fica evidente na fala dessas atrizes sociais quando debatem a prática sexual antes do casamento. O debate apresenta diversos aspectos, como a estrutura patriarcal que norteia os valores morais e culturais transferidos por uma educação religiosa. Temos nessa parte da película alguns aspectos debatidos sobre o modelo de formação dessas mulheres, como o nível de instrução necessário em sua educação para dona de casa, sobre o prazer nas relações sexuais; se é correto fazer sexo antes do casamento, etc. Essa subjetividade feminina, debatida por essas atrizes sociais, apontam para uma subversão do padrão a elas impostos e definidos pela estrutura social.

Criar uma perspectiva de debate, reflexão e análise do papel social desse grupo é um elemento disruptivo para criação de um registro documental e para a produção de espaços onde é permitido experimentar a liberdade negada ao feminino. A temática e o estilo utilizados na elaboração de A Entrevista caminham para uma produção de vanguarda na elaboração de uma escrita cinematográfica que só seria trabalhada na segunda onda do movimento feminista. Os aspectos abordados deixam claro o quanto Helena Solberg estava alinhada aos avanços teóricos em torno da estruturação de um cinema moderno e dos novos espaços que as mulheres ocupariam na década seguinte.

A narrativa apresenta traços de resistência ao patriarcado disseminado pelos costumes, valores transferidos pelas estruturas educacionais, classe social e nível cultural. As atrizes sociais marcam presença ao apresentarem suas percepções e leituras dos espaços que lhes são permitidos pela estrutura, deixando claro que pensam e reconhecem os mecanismos que as oprime, mas não possuem meios para desmascarar os rostos da dominação. Seus discursos e percepções norteiam os dezenove minutos desse valoroso documento visual.

Ao ouvirmos essas mulheres e suas experiências de descobertas da sexualidade, desejos e educação, vemos o reconhecimento da ausência de uma participação que ultrapassa o ambiente doméstico, controlado pela estrutura moral da época. Encontramos nesse momento um deslocamento do eixo dominante. Assume-se o caráter reflexivo e até combativo proposto para o período analisado. Os avanços estão nas perspectivas analíticas e na ocupação de um lugar de fala e representatividade negados por séculos. Não podemos esquecer que analisamos um recorte social e histórico específico, onde atrizes sociais são brancas e pertencem à classe média de uma região brasileira que concentra o processo desenvolvimentista.

O pioneirismo atribuído a essa película e à cineasta Helena Solberg se apresenta na premissa de uma leitura polissêmica que nos será teoricamente apresentada pelos Estudos Culturais desenvolvidos na década de 1980, onde as experiências foram inseridas em seus respectivos ambientes. Isso exige do espectador uma participação ativa como observador do recorte social apresentado, elaborando de um novo papel discursivo e interpretativo de aspectos visíveis da realidade feminina.

Assim, A Entrevista funciona como uma representação vanguardista, feminina e feminista de um movimento cinematográfico marcado pelo olhar e a presença masculina na construção de uma leitura do popular na cultura. O Cinema Verdade de Solberg questiona as representações sobre as mulheres e o “padrão” do que é ‘ser mulher’. Assumir as câmeras era um ato político, produzir um registro documental onde as mulheres agiam e mostravam os bastidores de seu recorte social significava construir uma expressão específica da luta contra o patriarcado, delineando os caminhos para uma autorrepresentação. Essas especificidades encaminham o material fílmico para uma subversão do controle masculino na construção da imagem feminina no fazer cinematográfico, além de romper com o passado cultural em que o popular era majoritariamente masculino, deixando evidente que seu foco não é a questão popular e sim a questão de gênero.

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