No dia 25 de outubro de 2022, a BBC anunciou para os fãs de Doctor Who que os episódios oficiais da série, lançados a partir de 2023, teriam distribuição internacional pela Disney Plus. A novidade foi amparada por comunicados públicos das duas empresas, dando também noções gerais do contrato, falando sobre o papel de cada uma das partes e um fato muito importante: a Disney não apenas distribuiria os novos episódios do show, mas também seria um dos investidores fixos, com capital flutuante pago à BBC e à Bad Wolf. O valor desse investimento foi especulado por dezenas de portais. Sua existência nunca foi mantida em segredo pelas partes, mas não foi divulgada a exata quantia para a Fase 1 do projeto, ou seja, o Especial de Natal de 2023 (que começou a ser filmado 40 dias após o acordo) + a 14ª Temporada e o seu respectivo Especial (2024). O próprio Russell T. Davies e a BBC confirmaram a chegada do dinheiro, e o showrunner brincou, em entrevista à Doctor Who Magazine, que se a quantia fosse tão grande quanto disseram (10 milhões de libras por episódio), ele “estaria falando conosco de sua base na Lua“.
Independente do valor, sabemos que se trata de uma quantia substancial, pois a série passou de uma já elogiável estética de produção e efeitos na Era Chibnall, via produção da Bad Wolf, para um visível aprimoramento nos três Especiais de Aniversário, em 2023. Ninguém pode negar que há muito mais dinheiro envolvido, porque a prova está bem diante dos nossos olhos. E o mais curioso (e também a chave para entender tudo o que será exposto adiante), é que essa grana toda chega à série num momento em que ela tem um de seus piores índices de audiência e uma das piores recepções de enredo e showrunner em toda a sua História. Só é preciso um par de neurônios para juntar as coisas e entender o contexto e o que está em jogo na produção da Nova Who.
Considerando a estrutura dos contratos entre estúdios/distribuidoras ou o que se exige numa coprodução em audiovisual, sabemos que é impossível haver investimento financeiro contínuo sem uma contrapartida criativa, nem que seja “apenas” em componentes estéticos ou numa orientação de abordagem temática a partir de pontos de vista mais convencionais ou similares à identidade da empresa parceira. E isso a despeito de a escolha dos temas ser majoritariamente exercida pela detentora original do projeto. É isso o que temos na atual situação de Doctor Who: a série pertence a uma emissora de radiodifusão pública (British Broadcasting Corporation) e possui contrato de produção com a Bad Wolf — que em outubro de 2021 teve a maior parte de suas ações compradas pela Sony, que a controla no modelo de parent company — e agora, também com a Disney. Subsequente aos anúncios dessa parceria, pipocou pela internet o termo “uma reforma de Hollywood” (“a Hollywood makeover“), indicando que, embora a BBC mantivesse o controle editorial e os direitos de propriedade intelectual de Doctor Who, o Mickey teria garantida uma… ora, ora, ora… “contribuição criativa” na série, podendo… ora, ora, ora… “influenciar certas decisões, num processo de visão criativa compartilhada“.
A origem do termo “reforma de Hollywood” se deu na reportagem de Craig Simpson, escrita para o The Telegraph no dia do anúncio da parceria, e já indicava o básico: certos controles criativos são feitos a partir de sugestões condicionadas ao orçamento, mas também podem se manifestar com veto a certas ideias do showrunner ou da detentora original. Em outra escala, e essa mais perigosa — porque vem disfarçada com a tag “vocês terão mais diversão!” –, o controle se dá com a imposição aos produtores originais para produzirem mais rápido, em maior quantidade e com maior derivação da fonte (spin-offs e especiais, por exemplo), o que progressivamente tende a derrubar a qualidade das criações e saturar o público com o famoso “mais do mesmo“. Também podemos identificar controles contratuais via condições prévias para que determinados projetos sejam realizados. Em 9 de janeiro de 2023, a jornalista Annabel Nugent publicou no Independent uma reportagem que fala diretamente sobre a interferência da Disney na Nova Doctor Who, com Davies tranquilizando os fãs de que “a essência da série não vai mudar, mas é claro que muitas mudanças irão acontecer, tocando basicamente em assuntos que cercam o processo que dissequei acima.
Assim como a Bad Wolf, a Disney tem hoje um assento na mesa de decisões criativas da série, com um peso de indicações um tantinho mais engessado, dado o tipo de produto que o streaming da empresa se dispõe a distribuir. A nivelação para uma aparência com “a cara da Disney” que indiquei na minha crítica de The Giggle é um fato para o futuro da série. Podemos debater sobre a intensidade, os caminhos, a qualidade dessas intervenções (convenhamos que nem tudo são trevas), mas não a sua existência. Na já citada reportagem de Annabel Nugent, o próprio T. Davies reforça, numa análise ainda mais categórica do que a minha, o que muita gente se recusa a ver:
As pessoas estão, naturalmente, preocupadas com o fato de os produtores americanos darem apontamentos sobre as coisas. Bem, não fique. A Disney está dando apontamentos excelentes. E estou aqui para lhe dizer que há 20 anos você não assiste a um drama na televisão britânica que não tenha apontamentos [de produtoras] americanas. Tudo é uma coprodução… é realmente, completamente normal.
Mas não é como se isso fosse novidade para os whovians! Em 1996, quando a Fox coproduziu O Senhor do Tempo, filme que nos trouxe o 8º Doutor de Paul McGann, tivemos uma abordagem e um caminho que correspondiam à visão que aquele estúdio tinha do show, mirando, inclusive, numa ressurreição do programa feita nos Estados Unidos que, ainda bem, acabou não dando certo.
Muito disso foi abordado de maneira descontraída por RTD no evento Doctor Who Q&A, realizado no final de novembro (2023). Outra comprovação dessas relações de controle entre Disney, BBC e Bad Wolf pode ser lida nas páginas 31 a 33 da Doctor Who Magazine #586 (lançada em janeiro de 2023, mas com capa de fevereiro). Ali, RTD tenta nos tranquilizar sobre O Rato, o quanto sua visão é a que vai ser a grande base para tudo e que for escrito, e que o lugar à mesa da Disney só vai acrescentar boas ideias ao projeto, sem tirar a essência de Doctor Who, algo que eu, depois desses 3 Especiais de Aniversário, tenho dificuldade de acreditar — mas desejo estar enormemente errado. Ainda há esperança.
O indicativo mais categórico eu deixei para o final, porque é dito pelas próprias empresas, em seus próprios sites, e num comunicado oficial, aqui e aqui. Vejamos… o que diz ali, no início do segundo parágrafo do comunicado? O que diz? Hein? Hein? “UNDER A SHARED CREATIVE VISION“!!! Portanto, a afirmação de que a Disney tem interferência criativa compartilhada nessa nova fase da série não é uma exposição “alarmista“, “neurótica“, “irresponsável“, “nada a ver” ou uma “teoria da conspiração“. A própria empresa afirmou isso, sendo reforçada pela BBC. É um fato. É inquestionável. É a Nova Era de Doctor Who.
Problematizando a relação entre indústria, arte e o que isso gera de produto final para nós (fãs, espectadores, críticos), acho interessante citar uma abordagem do meu amigo e colunista aqui do Plano Crítico, Rafael Lima, que ressalta o fato de que não podemos tirar a responsabilidade de Davies nas más escolhas e na execução geral dos eventos da série — algo que eu concordo totalmente. Um showrunner — ainda mais um com o poder de barganha de Davies — não pode ter sua responsabilidade retirada de forma alguma, mesmo que haja uma orientação/imposição/veto de investidores, seja previamente às filmagens, seja posteriormente, na montagem. A execução das ideias acertadas com os produtores e os investidores precisa sair de algum lugar, certo? E não é o Chat GPT da Disney quem irá escrever esses roteiros, esses diálogos e criar as novas situações do programa. A execução do plano da produção é de total responsabilidade de quem assina o show. Exatamente o mesmo critério que a gente utiliza para analisar um filme, onde o resultado da obra será distribuído entre as pessoas que colocaram os mandamentos dos produtores na tela: roteirista, diretor, fotógrafo, compositor, figurinista, diretor de arte, etc… Na TV, toda essa galera é como um grupo de músicos numa orquestra: executam tecnicamente o que devem executar, cada um em sua área, mas regidos pela batuta do showrunner.
Agora nos resta esperar e ver para onde estão nos levando. Muitos dos nossos leitores já disseram que estão encantados com tudo o que está sendo feito até aqui. Outros, como eu, estão amargando as decisões pouco elogiáveis de RTD, e sua falta de coerência e propósito interno nos eventos dos Especiais de Aniversário, assim como a característica de seus roteiros e as contradições imediatas nos enredos. Alguns ainda acham que esses tropeços serão consertados no andamento dessa fase. Não tenho mais certeza disso, depois do “mavidade“, do Newton meio indiano, da a justificativa marqueteira para a bi-regeneração, da péssima justificativa para o rosto repetido do 14º Doutor e da “como-assim?“-justificativa para a regeneração das roupas… mas pode ser. Tudo é possível. Eu ainda tenho esperanças de que as coisas irão melhorar. Bola pra frente, Doctor Who!