Entrevista no Festival Olhar de Cinema, edição 2022. Aqui, uma conversa com Rodrigo de Oliveira, diretor e roteirista de Os Primeiros Soldados, filme exibido no evento.
Você pode conferir a entrevista na íntegra logo abaixo. Não deixem de assistir ao filme e comentar também a sua opinião sobre as questões levantadas. Bons filmes!
- ATENÇÃO: Há SPOILERS do filme nessa entrevista!
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[MICHEL GUTWILEN]: Hoje estou aqui para entrevistar o Rodrigo de Oliveira, diretor do filme Os Primeiros Soldados, que já tinha sido exibido ano passado presencialmente no Festival do Rio, neste ano de 2022 foi para a Mostra de Tiradentes, realizada online e agora também passa presencialmente no Olhar de Cinema, onde estamos in loco aqui. Além disso, o filme conta com previsão de estreia no circuito comercial para Julho. Seja bem vindo, Rodrigo.
[RODRIGO DE OLIVEIRA]: Bom dia, Michel. Obrigado pela conversa.
[MICHEL GUTWILEN]: Então Rodrigo, você na verdade começa sua trajetória no Cinema como crítico da Revista Contracampo. A nível pessoal, preciso dizer que ela é uma grande fonte de inspiração para mim, pois eu não fiz faculdade de Cinema e nem existe faculdade de crítico, então acaba que boa parte da minha formação autodidata acabou sendo a leitura dos textos de lá. A partir disso, me interessa muito investigar como se dá este seu processo de transição da crítica para a realização dos filmes e as várias consequências disso. Você sair da área de confrontamento com os filmes na teoria para depois realizá-los leva a uma mudança muito brusca de algum pensamento da época que você era crítico. Alguma coisa que você pensava e depois viu que não era nada disso? Enfim, como foi toda essa passagem?
[RODRIGO DE OLIVEIRA]: Eu comecei a fazer Cinema na crítica e isso era uma coisa que para gente era muito consciente ali naquela geração, de que a gente fazia parte do Cinema brasileiro, assim como fazem os filmes e os curadores, era um mesmo movimento. Eu estudei Cinema na UFF em Niterói e eu nunca tinha pensado em realizar filmes. Eu até cheguei a fazer curtas na graduação, que nunca foram finalizados, mas meu objetivo nunca foi realizar filmes. Eu já entrei na faculdade muito consciente de que a crítica de Cinema era o que eu queria. Eu vivi dela por muito tempo, porque eu também tinha essa relação com a Contracampo do começo. A Contracampo é do final de 2005 e eu me lembro de ir para o Rio e ver o grupinho da Contracampo se reunindo nas mostras do CCBB, aí eu olhava e pensava “eu quero fazer parte”, então o gesto de escrever sobre os filmes sempre foi a coisa mais natural para mim, eu não considerava fazer filmes até 2008.
Em 2008 eu estava cobrindo o Festival de Ouro Preto e escrevi uma crítica de um filme da Paula Gaitán, Diário de Sintra. A gente ficou próximo por causa da crítica, em Janeiro de 2009 o Festival de Tiradentes me chamou como crítico convidado para comentar e debater um filme dela, o Vida, que é sobre a Maria Gladys, e aí logo depois ela falou que estava trabalhando na sua primeira ficção, que tinha um roteiro que estava meio enrolada e falou para eu dar uma lida para ver o que acontecia. Eu morava no Rio na época e aí muito imediatamente eu comecei, com nós decidindo começar o roteiro do zero. Foi a Paula que me levou para o Cinema, mas por causa do trabalho na crítica. Apesar de não escrever há muito tempo, de vez em quando eu ainda escrevo alguns textos, para catálogos de festivais, como há pouco tempo escrevi pra mostra do Hong Sang-Soo. Aí foi um parto, textos que eu paria em horas, agora eu levo uma semana para escrever.
Eu acho que a gente tinha ali naquele período da crítica online, na metade dos anos 2000, uma postura muito moral na relação com o cinema brasileiro e do mundo. Acho que a crítica de cinema brasileiro depende muito dos filmes, então o período da Retomada para os filmes é tão complicado quanto para a crítica. A crítica não encontrava filmes que as desafiasse de fato, então quando a gente começa a escrever nessas revistas online há um reajuste do que se espera dos filmes, do que é que se cobra dos filmes e o que se espera dos mundos que os filmes encenam. Isso eu carrego muito até hoje, pois apesar de eu não escrever regularmente há muito tempo, a minha postura diante dos filmes é uma postura de quem nasceu na crítica e isso tem vários aspectos. Um deles é que eu consumo filmes absurdamente. Eu sei que tem muitos colegas cineastas que não gostam de ver filmes antes de fazerem os seus próprios para não se influenciarem, mas eu sou o oposto. Para Os Primeiros Soldados, se eu não assisti todos, eu assisti 95% dos filmes feitos sobre HIV/AIDS na história. E aí fica muito mais fácil e gostoso entender o que eu quero e não quero, quais ideias eu rejeito e quais eu abraço, o que eu acho que falta. É isso, a crítica me ensinou a ser homem no mundo, mais do que crítico. É uma maneira de se colocar no mundo, moralmente e eticamente. Aquilo que você pede das imagens e o que você recebe em trocas das imagens. Isso me acompanha até hoje.
[MICHEL GUTWILEN]: Aproveitando que você citou que fez muita pesquisa para o filme e assistiu muitos outros sobre HIV/AIDS, meu lado cinéfilo curioso queria te pedir alguma recomendação.
[RODRIGO DE OLIVEIRA]: Então, eu começaria sempre pelo primeiro, que se chama Buddies, do Arthur Bressan Jr., de 1985. O Arthur era um diretor de soft porn gay nos EUA, aí quando começou a epidemia ele juntou um dinheiro e fez esse filme. Em 1985 é no calor do momento e já é um filme sobre tudo que vai acontecer a partir dali. Ele é sobre o começo de uma relação comunitária, que tem um paciente de AIDS terminal no hospital e um personagem de sorologia negativa, gay também, que vira um buddy (companheiro) desse cara que está no hospital e não tem ninguém que vai lá visitá-lo. É um filme incrível.
As referências para esse filme foram muito vastas e a maior delas foi sempre o cinema brasileiro. A gente fez um esforço muito consciente, sobretudo na relação com a equipe inteira e com o elenco, em que tínhamos um drive no Google com uns 30 a 35 filmes brasileiros realizados de 1982 a 1986. A ideia era: “assistam, porque os corpos eram diferentes, se movimentavam de maneira diferente, as pessoas falavam de modo diferente”. Isso servia tanto para o fotógrafo quanto para os atores. De todos esses filmes brasileiros, há um que é uma referência absurda, que é nosso primeiro cineasta positivo, que morreu dessa doença, que é o Wilson Barros, com o Anjos da Noite, um filmaço absolutamente incrível sobre essas figuras desgarradas na noite de São Paulo. Então, para começar, eu diria esses dois.
[MICHEL GUTWILEN]: Como entramos nesse assunto, eu queria te perguntar, se não for muita intrusão, de onde vêm esse ímpeto de fazer este filme, esse desejo de ficcionalizar e contar essa história.
[RODRIGO DE OLIVEIRA]: A identidade de toda pessoa LGBTQIA+ é marcada pela AIDS, quer a gente tenha consciência/desejo ou não. Na origem de toda homofobia, transfobia e sorofobia que a gente sofre ainda hoje está a AIDS. Esse tema, de alguma forma, ficou invisível, especialmente no cinema brasileiro. De alguma forma, pós coquetel, em que indetectável é igual a intransmissível, é como se AIDS tivesse saído de moda, ao mesmo tempo em que ainda morrem mais de 11 mil pessoas por ano dessa doença no Brasil, então eu sabia que em algum momento da minha história de Cinema eu precisava encarar esse tema e reagir a essa invisibilidade.
Os Primeiros Soldados era um filme que eu gostaria de ter visto quando era adolescente. Como um cara gay, eu penso na AIDS em todas as semanas da minha vida desde que eu tenho 10 anos de idade e descobri que era gay. Isso é muito diferente para pessoas heterossexuais e pessoas gays de outras gerações. A gente tem um filme com um elenco adolescente, que para quem a AIDS é um assunto absolutamente distante e nunca tinham pensado nisso, apesar de serem gays e fazerem parte dessa comunidade com essa história por trás. A ideia do filme então vem um pouco disso.
Então, ainda sem muita certeza do que eu queria fazer sobre o assunto, eu comecei a pesquisar, sobretudo os dados do meu estado, que é o Espírito Santo. Em uma pesquisa até meio aleatória, eu descobri que as estatísticas das vítimas da AIDS começaram a ser contadas a partir de 1985, o ano em que eu nasci, quando se sabia — e isso estava ali pelos jornais que li — que desde o final de 1982 já tinham havido casos e, certamente, mortes. Nosso maior medo como minoria é virar estatística e tinha um contingente imenso de pessoas que nem estatística virou, então a ideia do filme vem daí, de abordar esse começo, que é o que está invisível e tem as pessoas mais invisíveis ainda, com histórias que não ouvimos e pessoas que nunca conhecemos, porque elas morreram muito cedo, em um momento que a AIDS sequer tinha nome. Era uma chance de fazer um filme sobre a AIDS que fosse diferente de todos os outros que já existiram.
[MICHEL GUTWILEN]: Uma frase que você estava falando agora e ressoou muito comigo é a de que você gostaria de ter assistido ao filme em sua adolescência. Isso de certa forma já desemboca em duas perguntas que eu gostaria de fazer. A primeira delas seria justamente sobre o papel da juventude em Os Primeiros Soldados, representada pelo personagem do sobrinho Muriel. Fazendo um exercício imaginativo aqui, eu penso que o filme existir sem ele, se fechar só no protagonista e ele ter seu destino, mas a inserção deste personagem leva a narrativa em direção ao futuro, encerrando com um tom otimista, esperançoso. Queria que você falasse sobre este personagem e como se comunica esse desejo do filme de pensar um futuro.
[RODRIGO DE OLIVEIRA]: O Muriel é claramente um representante meu e de todas as gerações posteriores a geração do Suzane, Rose e Humberto. Primeiro, nessa chave do futuro, sim, mas também eu entendi que era gay no ano em que o Renato Russo morreu, quando eu tinha de 10 para 11 anos. A consciência da minha sexualidade por causa das notícias, que já tinham vindo do Cazuza, mas que para mim no Renato Russo explodiu, de que a minha sexualidade estava ligada diretamente àquela figura e aquela doença, que era retratada daquele jeito, na mídia sobretudo. Ao mesmo tempo em que eu descobri que era gay, eu descobri do que eu morreria. 1996 é o ano da chegada do coquetel. Descobrir a minha identidade e ao mesmo tempo que o meu destino está traçado por causa de algo que eu sou e não posso mudar… eu imagino que ao longo da história muitas pessoas tenham se escondido de si mesmas, permanecidas no armário, se negado por conta desse destino fatalista, que naquela altura ainda era o discurso oficial da AIDS. Mas, muitos de nós, acho que a maioria, não consegue ir contra essa natura. “Eu sou isso, essa é a doença que mata os gays, é disso que vou morrer e vamos lá, porque eu não posso negar a minha própria existência, então eu preciso lidar com o legado dessa coisa”.
Então, o Muriel vem muito disso, dessa primeira geração que dá o seu primeiro beijo já sabendo que a AIDS existe no mundo e ainda assim se abre para ele, se investe nessa sua identidade ao mesmo tempo em que carrega para si a responsabilidade de manter e expandir o legado desses que a gente perdeu. O desenho do sobrinho no filme é muito esse. Não só uma garantia de futuro dele e dessa geração, mas também uma garantia de perpetuação da memória dos que se foram. O filme é muito sobre autoprodução de memória e o Muriel é uma chave nisso, a última coisa que se diz no filme é o garotinho que está com ele perguntando se ele fica mal vendo as fitas do tio, com Muriel respondendo que alguém tem que ver. O pacto que o filme estabelece com o espectador é um pouco esse: essas pessoas existiram e para elas não serem apagadas de novo alguém tem que ver, então o papel do Muriel é um pouco o do espectador no filme.
[MICHEL GUTWILEN]: Acho que você começou a entrar na outra questão que eu queria falar, ainda retomando a frase de que você gostaria de ter assistido ao filme na adolescência, que é justamente este jogo metalinguístico que envolve o papel do Cinema no filme. Parte da narrativa de Os Primeiros Soldados se dá por uma gravação dos personagens, que partem dessa necessidade de registrar e como isso também pode ser um modo de ajudá-los a sobreviver, perpetuando informação e conhecimento. Ao mesmo tempo, o seu filme, Os Primeiros Soldados, também joga a luz no desconhecido, retomando essa história no Cinema, que precisa voltar a ser comentada. Então eu queria que você falasse dessa sua escolha dos personagens quererem se filmar.
[RODRIGO DE OLIVEIRA]: Nas pesquisas que eu fui fazendo para o filme e o roteiro, eu me esbarrei com vários arquivos autogerados. Talvez o mais famoso seja o Act Up de New York, um grupo de ativismo que foi fundamental nos EUA para conseguir os medicamentos. Se existe um tratamento eficaz hoje em dia é por causa dessas pessoas e eles se filmavam muito, mas isso já é a partir de 1986 e 1987. Uma figura fundamental para o filme é o escritor francês Hervé Guibert, que escreveu um livro muito importante, a primeira autobiografia de uma pessoa que vivia com HIV na França, que se chama Para o Amigo Que Não Me Salvou a Vida. Em 1992, um pouco antes de morrer, ele faz um filme para a TV francesa, onde ele se filma nos últimos dias do seu tratamento. Eu já sabia que existia no Espírito Santo um grupo que hoje a gente chamaria de um coletivo queer ativista, que se chamava Balão Mágico, e usou as primeiras câmeras de vídeo que chegaram na universidade para criar e estabelecer performances de ativismo político.
A linha comum nessas coisas todas é que o gesto de filmar sempre recaia sobre o sujeito da história. Essas minorias, sobretudo as LGBTQIA+, sobre elas recai o peso de ser, ao mesmo tempo, sujeitos e historiadores da própria história, porque a gente está alijado da história oficial, então se a gente não contar, ninguém conta. Conversando no processo de pesquisa do filme com amigos que convivem com HIV, mesmo hoje um diagnóstico provoca uma mudança da sua relação com o tempo que é muito radical. Mesmo que hoje não exista mais a certeza da morte no horizonte, que o tratamento garanta uma vida longa e saudável, o estigma é muito forte. Você é confrontado com o fato de que se você não tomar aquele remédio todo dia, você pode morrer como morrem pessoas dessa mesma doença há 40 anos. Aí eu fiquei pensando muito nessas duas coisas, primeiro nessa ideia do auto registro, de pessoas conscientes que estariam aqui tentando sobreviver de alguma forma e, segundo, que, para mim, o Suzano jamais poderia morrer no final do filme. Isso era uma coisa consciente desde o começo, eu não queria que o filme terminasse com uma morte.
A gente fala muito hoje sobre pessoas que vivem com HIV porque é possível ter essa vida longa pós-diagnóstico, mas, por via de regra, os filmes sobre AIDS são de pessoas que morrem de AIDS, então por mais que houvesse uma morte no filme, eu queria muito entender como essas pessoas viviam com o vírus na época. Afinal, elas viviam, tinham sonhos, esperanças, vibração, então a maneira de fazer com que se esse filme tivesse uma expressão de alegria era não só trazer esse registro da própria história, como também subverter cronologicamente o tempo do filme. O que acontece depois da morte do Suzano não é exatamente um flashback, mas uma reintrodução da vida dele, de Rose e Humberto, que estão com ele no sítio, de modo que o filme existe nesse presente contínuo, onde a morte é uma nota de meio de rodapé e nunca o final.
[MICHEL GUTWILEN]: Vou até te fazer uma pergunta improvisada aqui, por essas tangentes que as conversas vão levando. Você fala dessa sua vontade de não acabar com a ideia de morte da morte enquanto essa última imagem. Eu queria voltar um pouco para a sua jornada como crítico, e também como realizador, para abrir o debate sobre um assunto que eu mesmo me questiono muito, e também escuto de outros colegas, que é que muitos filmes voltados para histórias de minorias (raciais, LGBTQIA+, imigrantes, etc.) acabam com essa ideia pessimista, muitas vezes com morte. Queria que você falasse como enxerga essa questão de maneira geral no Cinema
[RODRIGO DE OLIVEIRA]: Quando eu falo que a nossa postura dos críticos onlines ali nos anos 2000 era muito moral, éramos a maioria (sendo, eu, sobretudo) daneynianos. “O barato é o Serge Daney, o [Jacques] Rivette e o travelling de Kapò, essa demarcação do que não se deve fazer, o Morte Todas as Tardes do [André] Bazin”. Tem certas decisões que se tornam mais simples uma vez que você entende os limites de como o Cinema pode suprimir humanidades ao invés de elogiá-las e expandi-las, então… — a pergunta improvisada vai ter uma resposta improvisada também [risos dos dois] — eu acho que a gente tem uma responsabilidade, sobretudo quando são as próprias minorias que se filmam. As responsabilidades são muito grandes e são maiores do que a gente consegue dar conta. Neste filme, por exemplo, os primeiros tratamentos de seu roteiro eram absolutamente panorâmicos, porque eu sabia que não existia um filme sobre o começo do HIV, não só no cinema brasileiro, mas no cinema latinoamericano. Eu procurei bastante e não tinha. É um pouco o que acontece no começo do filme, o Suzano fala: “os primeiros sofrem de uma coragem que ninguém nunca vai se lembrar”. Essa coisa de ser o primeiro filme que vai falar sobre essas coisas me demanda responsabilidades muito grandes, então a primeira versão do filme era muito panorâmica, existiam muitos mais personagens, eu sentia que precisava falar tudo que eu tinha acumulado sobre o assunto.
Aí o tempo passa e essa responsabilidade vai ficando mais suave, sobretudo quando você passa a acumular com outras pessoas. Eu tenho um elenco que é todo LGBTQIA+, então isso torna essa responsabilidade mais compartilhada. Todo mundo estava ali contando as coisas meio juntos, então certas decisões ficam muito mais simples. E aí, por exemplo, quando no filme a gente vai mostrar o corpo doente, magro, enfraquecido e cheio de sarcomas, é uma coisa que, para mim, com essa formação toda, me dá uma pausa. “Como fazer isso?” Como me relacionar com a ideia de que em algum momento a gente vai ter que mostrar esse corpo? É isso que o Cinema faz: a gente vai ter que, com a maquiadora, descobrir qual a substância e a marca, aí o ator vai ter que ser aplicado com uma marca específica, fazer uma dieta… então tem toda uma discussão técnica que é muito pragmática para imitar algo da vida que é muito traumático e verdadeiro para muita gente. Muita gente no mundo morreu com o corpo marcado daquele jeito que o Suzano está. Aí vem as questões sobre como filmar isso, em que momento isso aparece, a que distância precisa estar para que o personagem exista nessa sua fraqueza. O filme está pedindo para ele a exposição mais radical de seu corpo e o que o filme oferece de volta? Porque essa relação não é só o filme pedir coisas dos seus personagens, mas os personagens têm o direito de pedir coisas de volta do filme. O diretor precisa ouvir isso, ele não pode ignorar esses chamados que a ficção devolve para ele.
Então isso tudo se passa no processo de realização, mas aí, em algum momento, por exemplo, entra o ator, o Johnny Massaro, pois é o corpo dele que vai estar lá. A gente está ensaiando um dos momentos do filme em VHS, ele está sendo massageado pela Renata Carvalho e pelo Vítor Camilo. É uma cena que no roteiro do filme está escrito que a Rose vai falar “Suzano, tem uma manchinha nova aqui”, mas aí na hora de filmar ele acrescenta “seja bem-vinda” e tudo se descortina. A relação com esse corpo doente e a imagem da tragédia não precisam ser tão problemáticas para mim porque não é para o personagem. O personagem abraça e admite que aquilo é seu corpo. Ele vive e o filme faz isso, ele inclusive se exibe com orgulho daquele corpo, então, eu, que estou registrando, não preciso de tantas ressalvas. Essa conjugação entre o que o filme quer de mim e o que eu quero do filme resolve muitas dessas questões éticas que esse Cinema de minorias apresenta.
[MICHEL GUTWILEN]: Já que você cita o exemplo dessa cena de que havia algo no roteiro e o Johnny Massaro solta uma fala nova improvisada, eu queria te perguntar sobre como se dá a sua relação com os seus atores, se você trabalha com uma rigidez de muitos ensaios, se você dá mais liberdade para eles conseguirem acrescentar elementos nos personagens etc.
[RODRIGO DE OLIVEIRA]: Os atores são a parte mais divertida para mim em todo filme. Todos os filmes que eu fiz tiveram processos de preparação muito diferentes uns dos outros, porque eu acho que cada um demanda coisas muito particulares. No caso de Os Primeiros Soldados, a gente sabia que tinha um orçamento restrito demais — e é o caso sempre dos meus filmes — para deixar para descobrir coisas no set. Então, uma vez que o set começou, o roteiro estava super fechadinho. Os atores sabiam desde o começo que as respostas estavam todas no roteiro, que ele precisava ser seguido muito à risca e que os momentos de liberdade existiram antes.
A gente foi para uma sala de ensaio, que é algo que eu nunca tinha feito, e praticamente não ensaiamos a cena do roteiro. A gente trabalhou exaustivamente com improvisações em torno do que não estava no roteiro. Era importante não só estabelecer algumas relações do filme, como a família do Suzano (Suzano, Maura e sobrinho) e os três protagonistas (Rose, Suzano e Humberto), mas também que os atores tivessem uma vivência dos personagens para além do que existia no roteiro. Eu nunca tinha feito isso, mas a gente lia as cenas que estavam no roteiro, ia para a sala de ensaio e improvisava um momento anterior e posterior a cena, com muita coisa sendo descoberta neste processo e que depois foi entrando no filme, com muitas decisões que parecem pequenas, mas que eu acho que dá uma dimensão de vivência para os personagens e, certamente, para os atores é muito importante.
Aqueles momentos de VHS que existem no filme e se passam no sítio, há mais ou menos uns 12 ou 13 deles e ensaiamos uns 50. Umas 50 pequenas cenas da vivência daquele trio no sítio, de maneira que eles sabiam completamente como funcionava tudo. Para mim era muito importante que a gente entendesse a dinâmica de como funcionava aquele espaço, deles terem se isolado e recebido remédios, de como faziam exames, de como saiam do isolamento para poder ir buscar coisas na cidade, então tudo isso eles viveram na sala de ensaio. Quando a gente chega para filmar, essas memórias da experiência deles na casa estão muito no corpo. A verdade é que foi um processo de filmagem muito fácil porque estava todo mundo preparado e eventualmente algumas coisas mágicas aconteciam na hora de filmar, o que se deve muito ao fato de que os atores estavam extremamente preparados e imersos nesses personagens. Tudo que aparecia de novo no set, de alguma forma a gente se preparava muito. Estávamos muito preparados para absorver este novo e quando acontecia era mágico, sobretudo neste momento do sítio, mas eu por exemplo nunca ensaiei com a Renata Carvalho a dublagem que ela faz na boate para a música do Gonzaguinha. Eu nunca vi antes. A gente sabe porque ela escolheu essa música para dublar, mas eu não quis ver antes. Falei para ela: “pensa aí em uma performance”. A mesma coisa com a dança do Johnny Massaro no sítio, que digamos que é a despedida do corpo saudável que ele faz, na primeira parte do filme. A gente tinha mapeado alguns gestos, mas ali é um plano único de 11 minutos, de uma relação dele com a câmera. É um plano onde tanto ele quanto o Lucas Barbi, que é o fotógrafo, estão meio que sozinhos ali, jogando, e depois eu montei esse negócio todo. Então é isso, coisas que só eram possíveis porque os atores estavam muito dentro do filme.
[MICHEL GUTWILEN]: Vou fazer mais uma pergunta improvisada que veio baseada em algo que você falou. Você cita essa cena da Renata Carvalho, em que você não viu ela encenando a música do Gonzaguinha antes. Você acredita em alguma Verdade na captura da imagem nessa primeira tentativa, ao invés da reencenação e do ensaio? Que talvez exista algo mais específico e verdadeiro na espontaneidade da primeira vez e que na repetição não exista?
[RODRIGO DE OLIVEIRA]: Eu acho que o trabalho da gente fazendo o filme é muito o de tentar reproduzir a Verdade na hora que a gente precisa dela. Por exemplo, meu longa de ficção anterior (porque eu fiz um documentário no meio do caminho), que se chama Teobaldo Morto Romeu Exilado, a gente não fez ensaio nenhum, a ideia do processo de preparação era que os dois atores protagonistas eram amigos pessoais há 20 anos e isso era um pouco a relação que tinha no filme. Aí eu pensei: “o trabalho de atores eles já fizeram, pois eram amigos na vida real e eu, cineasta, vou adaptar o filme para caber dentro dessa relação”. Então ali, na primeira vez que um personagem chega no filme, foi a primeira vez que o ator chegou no set, foi a primeira vez que eles de fato se reencontraram.
Mas uma coisa que Os Primeiros Soldados me ensinou muito também, e isso vale muito também por causa da relação com os atores, é que não existe uma relação muito direta entre Verdade e ignorância, no sentido daquilo que não se sabe ainda. Não é porque algo é inédito que é mais verdadeiro. Eu lembro muito quando a gente estava filmando a cena em que o Suzano volta para a boate para distribuir as Polaroids, aí uma assistente de produção do filme veio conversar comigo e falou algo tipo: “eu não acredito que o Johnny está fazendo essa cena desse jeito”, porque foram uns 14 ou 15 takes de um momento que exigia sobretudo fisicamente dele, em que ele estava tossindo, muito fragilizado. Naquela altura, era a primeira coisa que a gente filmava com ele depois que saiu do filme por duas semanas para perder 13 kg, então ele estava fragilizado fisicamente, ele tinha que se jogar no chão, e ele fez isso por 14 ou 15 vezes! Eu nem me lembro qual é a que está no filme, mas certamente não é a primeira. Então eu acho que a Verdade é algo que se cultua e que se preserva, então tem coisas que foram descobertas dois ou três meses antes e que acontecem no filme de maneira igualmente fresca e nova, mesmo que tenham sido feitas muitas vezes, então isso depende muito dessa ilusão fundamental do Cinema, de ele que parece muito com a vida, mas não é a vida. O Paulo José que diz isso, que ele é uma versão melhorada da vida, e porque ela é melhorada a gente consegue lidar com essa ideia de Verdade, imediatismo e de presença de maneira diferente.
[MICHEL GUTWILEN]: Acabou que o papo foi indo para várias tangentes, mas voltando para essa necessidade do filme em criar sua ficcionalização, eu queria te perguntar como você lidou com essa diferença na encenação quando você está filmando pelo olhar mais “objetivo”, que é diferente de quando você emula o documental, o que também faz o filme ter texturas diferentes na imagem.
[RODRIGO DE OLIVEIRA]: O grande barato desse filme era isso. Primeiro, na parte “normal”, entender um registro de época, porque para a gente o barato nunca foi só restabelecer o ano de 1983 através da expressão plástica. Então nunca foi só do quanto a gente conseguiria objetos de época e maquiagem. Não, eu me lembro de conversar muito com o Hugo Reis, técnico de som e que depois virou editor de som, sobre tentar imaginar um som de época, e isso passava por coisas técnicas do tipo tentar restabelecer certos microfones que se usavam na época. As coisas também soavam de maneira diferente no Cinema, então será que a gente conseguia se reconectar com a maneira pela qual o som era experimentado em 1983? Isso vai também para a fotografia, na janela 1.66:1 do filme, que me parece a janela propícia para filmar grupos de maneira inteira, pois a relação com os corpos dentro daquele espaço de janela fica muito mais íntegra, aparecendo os corpos inteiros sem que eles desapareçam como é no scope. Enfim, eu e o Lucas Barbi, fotógrafo, somos amigos de 20 anos, estudamos na UFF juntos, então a gente também divide um prazer cinéfilo muito grande, com nossa conversa caminhando muito sobre referências. Nesse filme, especificamente, a gente tinha um barato muito diferente sobre como filmar cores. Eu queria muito que fosse um filme colorido, vivo, mesmo nos momentos mais terríveis sempre tem vida acontecendo no quadro.
E esse barato outro que era esse registro improvisado, caseiro, amador, no meio do filme. Eram as partes mais divertidas de filmar, porque a gente não filmou com um VHS original, mas a gente filmou com uma das primeiras câmeras digitais que existiram, que tem uma imagem muito pobre hoje em dia. Ela era muito pequenininha, então ela despertava uma relação muito diferente com os atores no set. Alguns dos momentos do filme é o ator, Vitor Camilo, que faz o Humberto, que está operando a câmera, então a gente estava realmente fora. Quando eles estão no dia da graça, que é quando recebem os remédios da França, estão só os três no Fusca, ali no meio do nada, e nós da equipe estamos super longe, são só os atores se filmando e isso era muito gostoso, porque a gente tinha uma leveza e possibilidade de tirar peso do filme, do set. Acho que a gente filmou 3 ou 4 diárias de VHS, sendo dias muito leves que eu gosto muito. Depois, montando o filme, das coisas que eu mais gosto é quando ele vai e volta, porque eu acho que alguma coisa se cria na passagem de uma coisa para outra. Das coisas que ainda mais me emocionam no filme até hoje é quando, no final o Suzano pede para parar de filmar e a gente volta para a imagem normal. Isso tudo estava ali já muito presente desde que a gente filmou.
[MICHEL GUTWILEN]: Acho que agora eu vou narrar um pouco da minha experiência espectatorial com o filme para chegar na pergunta sobre o que eu considero o movimento chave do filme, em que ele verdadeiramente me toca. Desde o início do filme eu estou gostando, me emociono e tal, até aí tudo bem, mas a virada de chave é quando entram as imagens amadoras e elas vão passando a ressignificar as imagens anteriores, dando novos sentidos e ampliando as emoções daquelas cenas já vistas, uma vez que você passa a entender gestos que antes pareciam insignificantes e depois ganham senso de urgência. Então, enquanto eu estou vendo aquelas cenas amadoras das fitas de VHS, ao mesmo tempo a minha mente está fazendo este trabalho retroativo com as outras cenas, e é aí que o filme ganha muita força, quando volto a pensar na escolha da música do ano novo, na cena íntima do cinegrafista. É como se as imagens existissem em potência, não tivessem efeito imediato, mas sim mediato. Foi isso que me fascinou e me emocionou muito no filme. Fale sobre esse movimento de “esconder e depois revelar”.
[RODRIGO DE OLIVEIRA]: Uma coisa que para mim sempre foi muito consciente, que era um desejo desde o começo do projeto, era que o filme fosse um corpo sensível, como sensíveis são os corpos das pessoas que estão sendo filmadas. Eu queria que o filme não falasse dos sintomas da doença, mas que ele permitisse sentir aqueles sintomas. Na prática, o Suzano sofre de uma doença relacionada a AIDS, que é a neurotoxoplasmose, que faz com que ele tenha lapsos de memória, mas isso nunca é mencionado, o que a gente vê é ele experimentando a perda de sentidos, a confusão, a ausência de consciência. É um filme que se passa em um momento que os personagens não sabem o que está acontecendo com eles, então eu queria muito que a jornada do espectador fosse de ignorância, como é para os personagens, que as coisas só fossem se revelando para o espectador na medida que fosse se revelando para os personagens. O que o filme pede, na verdade, é um pacto de ignorância. Eu sempre gosto quando as pessoas entram no filme sem saber que é sobre HIV/AIDS, porque ele pede um pouco isso, “talvez vocês já tenham ouvido falar histórias, mas esse é um filme diferente desse tipo”, tanto que a palavra AIDS só aparece pela primeira vez nos últimos cinco minutos, então era muito consciente essa tentativa de fazer com que as experiências dos personagens fosse a experiência de quem estivesse assistindo, de que certas coisas só se revelassem por completo no momento que elas estivessem aparente para os personagens, que de alguma forma a gente sentisse vendo o filme um pouco o que os personagens sentem. Por uns 10 minutos os três protagonistas desaparecem e o filme fica meio à deriva, é a sensação mais recorrente que eu ouvia, que eu cheguei a sentir no início da minha vida pública na relação com a AIDS, das pessoas que simplesmente saiam de circulação.
Então, muito do prazer de pensar a estrutura de Os Primeiros Soldados, que eu acho que é um filme bastante tradicional, na maneira como ele aborda a narrativa, mas é na estrutura que ele provoca rupturas, a ideia sempre fosse que a estrutura espelhasse muito a experiência dos personagens e também do espectador. Quando eu ouço você falar isso, fico muito feliz, porque a ideia era bem essa mesmo, de que a vida acontecesse a revelia do conhecimento sobre ela. O filme é um pouco a jornada por conhecimento: “a gente vai morrer sabendo o máximo que podia”. E eu acho que é isso, quando se completa a história dele e no final do filme começa a história do futuro, das próximas gerações, eu queria muito que as pessoas tivessem essa sensação: “eu precisei chegar até aqui para ter uma dimensão mais completa de quem foram essas pessoas”, mas que bem pasolinianamente [Pier Paolo Pasolini] só se completa no momento da morte mesmo. Até o último dia da vida a gente pode viver algo que vai transformar completamente quem a gente era, e eu acho que o filme vive um pouco isso, tanto é que quando se fala a palavra AIDS pela primeira vez, o filme já está acabando.
[MICHEL GUTWILEN]: Que interessante! Para fechar, só para dar uma sensação cíclica à entrevista, como começamos falando de você enquanto crítico, eu queria te perguntar te perguntar como é essa passagem do crítico para o realizador e se confrontar com textos sobre os seus filmes. Como foi isso no seu início de carreira como diretor e como você vê isso agora. Foi uma relação que se manteve, que mudou? Como você vê as críticas negativas?
[RODRIGO DE OLIVEIRA]: Eu gosto muito da crítica de Cinema, então eu sempre torço para que boas críticas sejam escritas dos meus filmes, independente das opiniões que elas tenham, porque eu acredito muito neste diálogo, nessa troca que se dá no campo das ideias e foi isso que eu tentei fazer enquanto escrevia, tentando expandir os sentidos do filme, tentando conversar com esse espectador/leitor para fazer com que os filmes ficassem maiores, independente se era para mostrar os defeitos ou elogiar qualidades. Então é sempre isso que eu espero das críticas e nem sempre é o caso, inclusive das críticas positivas, que o filme vem recebendo muitas. Mas, enfim, na minha época e ainda é hoje, é muito difícil se encontrar com textos e isso acontece por diversas razões, não só pela qualidade do crítico que está escrevendo, mas também do veículo, do tempo que ele teve e isso são todas coisas que eu entendo.
Eu estou sempre atrás de um diálogo crítico que frutifique e eu ouvi tanto isso quando eu era crítico, então eu gosto muito quando isso acontece comigo. Eu gosto muito de descobrir coisas que eu não sei sobre os meus próprios filmes, coisas que só existem porque existe o olhar do Outro. A gente está rodando com esse filme desde Novembro de 2021, então nesse trajeto já houveram críticas negativas e positivas, mas o que me impactou mesmo foi o que as pessoas me disseram e eu ainda não sabia, que aí eu penso e revejo o filme para ver se eu consigo enxergar ou encontrar aquilo, então eu torço muito para que algum crítico se disponha de maneira íntegra e aberta para o filme, pois isso é uma experiência que eu tinha escrevendo.
É muito mais difícil escrever uma crítica negativa do que positiva, então eu ainda estou esperando uma crítica negativa maravilhosa sobre o filme, eu espero que apareça…. quer dizer, eu não estou torcendo para ninguém não gostar do filme, mas eu espero que apareça, porque eu me divertia horrores escrevendo críticas negativas. Eu sabia que era uma responsabilidade triplicada, você tem que ser muito íntegro com o que você sente, mas também com o filme que existe e as pessoas que o fizeram.
[MICHEL GUTWILEN]: Então é isso, fechamos o bate papo. Gostaria de agradecer ao Rodrigo pela disponibilidade e queria agora ceder o espaço para ele fazer uma breve divulgação do filme, que vai estrear nos circuitos comerciais em breve, convidando vocês a verem o filme.
[RODRIGO DE OLIVEIRA]: Bom, Os Primeiros Soldados estreia dia 7 de Julho nos cinemas do Brasil e nesse mesmo dia ele vai estar disponível para aluguel em várias plataformas de streaming para quem estiver longe dos cinemas. Estamos fazendo o máximo para que ele chegue perto de vocês, mas no Brasil pós-pandêmico isso é mais difícil, então eu espero que vocês consigam entrar em contato com o filme, seja na sala grande ou na telinha pequena. É isso, obrigado.