Entrevista no Festival Olhar de Cinema, edição 2021. Aqui, uma conversa com Bruno Costa, diretor e roteirista que está exibindo Mirador no evento.
Você pode conferir a entrevista na íntegra logo abaixo. Não deixem de assistir ao filme e comentar também a sua opinião sobre as questões levantadas. Nos vemos ao longo do Festival!
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Michel Gutwilen: Olá, tudo bom? Aqui é o Michel Gutwilen. Eu sou crítico de cinema no Plano Crítico e estou aqui na cobertura do Festival Olhar de Cinema. Hoje estou aqui com o diretor de Mirador, Bruno Costa. Tudo bom, Bruno? Como é que você está? Fala de você, apresenta seu filme.
Bruno Costa: Tudo bem, Michel. Queria agradecer, começar agradecendo o convite para bater um papo sobre o filme. O filme estreou no começo do ano, no Festival da Mostra de Tiradentes, que também aconteceu de forma online. E agora a gente está passando o filme aqui “em casa”. Em casa nos dois sentidos, porque sou de Curitiba e o festival de cinema é aqui de Curitiba, mas de casa porque continuamos ainda no modo online. Infelizmente, porque era muito legal no Olhar de Cinema a gente poder se encontrar nas sessões e tomar aquela cerveja depois, toda discussão que rola pós-filmes. Estamos vivendo esse momento diferente no online, mas muito feliz por estar passando o filme de alguma forma. No online, propicia-se que o filme chegue a muito mais pessoas, que de repente não poderiam viajar para os festivais, para ter acesso aos filmes, então tem o seu lado bom também, poder viajar como filme em si.
Michel: Sim, com certeza. E eu fico pensando nesses pontos favoráveis e nesses pontos negativos de ser online ou presencial. Alguns filmes, principalmente certos filmes brasileiros, teriam uma força muito grande numa sala de cinema, com aquele público junto, com aquela experiência compartilhada. Eu sinto que o Mirador seria um filme muito assim, de uma sala de cinema, de uma força, das pessoas olhando para aquela história e se identificando. Mas também tem esse lado, que é uma história que está chegando para o Brasil inteiro, então tem seus prós e contras.
Bruno: Com certeza. Quando a gente fez o filme, ninguém imaginava uma pandemia. Mas é isso, o Mirador sempre foi pensado, desde o roteiro, em fazer um filme popular mesmo, que não fosse o dito filme de arte, um filme hermético, um filme difícil. A gente queria mesmo o filme que chegasse ao maior número de pessoas, o tipo que funciona no “boca a boca”. A pessoa assistiu e falou: “vi esse filme aqui, brasileiro, super legal, tem uma menininha, que é fantástica, e o ator é muito bom”. Uma história que fosse muito nossa, uma história que fosse ao mesmo tempo um drama muito brasileiro, uma coisa muito da nossa realidade, algo crível, verossímil e atual, com uma temática meio contemporânea, mas ao mesmo tempo tivesse uma roupagem popular, um formato e gênero que todo mundo pudesse assistir, que não fosse uma linguagem elitizada, só para iniciados e tudo mais.
E aí a gente fica sentindo essa falta. O filme não teve uma sessão presencial, porque não foi possível ainda, mas imagino, com certeza, que seria um filme que seria muito legal. Ainda vai chegar esse momento, espero, de sessões presenciais. Eu faço questão. Nem que seja uma sessão que eu tenha que alugar a sala, pagar do meu bolso o aluguel de uma sala de cinema, para enfiar um monte de gente lá e ter essa sensação, porque a gente não fez nem uma sessão com equipe, nada, muito doido isso. Eu acho que é um filme que funciona mesmo na sala de cinema, mas para o momento é o que tem mesmo, cada um assistindo em suas casas, e o pró é isso, o filme está sendo visto em vários estados brasileiros.
E agora vamos ver como vai ser o próximo passo, depois dos festivais até o final deste ano. No ano que vem é o lançamento comercial, como é que ele vai vir pro mundo, ainda não sabemos, tudo muito em aberto. De repente vai direto para um serviço de streaming ou se a gente vai conseguir fazer um lançamento em salas. Se fizer um lançamento em salas de cinema, qual a abrangência desse lançamento? Está tudo muito em aberto. Mas a nossa vontade é ocupar todos os lugares possíveis.
Michel: Olha, Bruno, se te conforta de alguma coisa, acho que esse boba a boca funcionou minimamente online, porque eu mesmo não tive a oportunidade de ver o filme na exibição de Tiradentes. Aí outros colegas críticos assistiram, já tinham falado muito bem, aí quando eu vi que estava passando no Olhar de novo, ele virou uma prioridade. Para mim, senti que muita gente fez isso. E essa recepção que ele teve já em Tiradentes ajudou ele no Olhar agora. Então, pelo menos isso.
Mas, assim, vamos falar sobre o filme em si. Eu queria perguntar primeiro como você utiliza esse papel meio que de “inversão” que o filme faz, porque pelo menos no meu referencial de cinema e série, acho que a gente está muito mais acostumado a receber produtos audiovisuais sobre mães solteiras. Acho que é algo muito mais comum, e claro que na vida real existe também muito esse abandono materno, não é só o paterno, mas que no cinema essa inversão é uma coisa que não é muito abordada. Queria que você comentasse sobre esse aspecto do filme e como isso implica na história. Na minha leitura do filme, pelo menos, essa presença de uma certa masculinidade do personagem é meio forte. Ele é esse lutador, esse cara meio bruto, que não sabe expressar muito bem seus sentimentos, mais introvertido e começa a ter que fazer essas várias coisas que nunca fez. Ele precisa ir para espaços que homens não estão muito acostumados, como a escola, um lugar muito associado ao materno. É a mãe que leva, vai em reunião etc. Naquela cena em que ele vai para a escola, só tem mulher. Ele fica parecendo uma figura meio alienígena.
Bruno: Ele fica meio deslocado ali. Você pontuou coisas importantes, que balizaram nosso trabalho desde o início do roteiro. Quando tivemos a ideia para fazer o filme, a gente partiu desses pontos que sabíamos ser diferenciais e ao mesmo tempo muito delicados e perigosos de serem trabalhados. Porque é isso, as estatísticas de abandono parental é na casa dos 80 ou 90%. São homens que fogem e desaparecem, com as crianças ficando com as mães para cuidarem. Aí eu pensei “a gente vai falar desse 10%?”. Só que eu acho que é justamente isso. Quantas histórias a gente já viu de mães solos trabalhadoradoras? A gente quis falar da figura masculina, como as estatísticas dizem, que normalmente são as que mais abandonam, mas a partir de um personagem masculino, mostrando ele nesse papel da pessoa que fica com a responsabilidade de cuidar da criança. Acho que esse é um dos grandes diferenciais do filme, essa inversão. É um filme sobre um pai solo que é um atleta, de luta, então ele orbita por esses ambientes muito brutos, rústicos, masculinos e de repente tem essa pessoinha que fica com os cuidados 100% sob responsabilidade dele, com ele precisando lidar com isso. Então o filme é muito sobre essa jornada desse cara se tornando pai, o pai que ele não era presente e não exercia ali sua função, sendo muito mais o que a gente chama de pai recreativo, um pai de aparências.
A ideia do filme surgiu de que eu tinha muita vontade de fazer um filme no universo do boxe, porque teve uma época que eu treinava, gosto muito dos filmes do tema (Rocky, Touro Indomável), mas eu não queria fazer um tema de boxe, em que ele fosse o mote principal. Isso é muito longe da nossa realidade, eu não queria fazer aquela coisa que os americanos fazem, aquela jornada do herói, que vai, sofre, apanha e no final ele vence, mas eu achava que o boxe era um universo muito imagético, interessante, carregado de imagens fortes e que propicia muitos movimentos, mas isso tinha que ser pano de fundo. Eu preciso de uma história, algo que possa ser ambientado nesse universo, mas que se sustente enquanto narrativa.
Então surgiu muito da observação de amigos próximos, cada um à sua maneira, passando por problemas complicados em relação a filhos e ex-esposas.. Inclusive o William, o co-roteirista, ele é um desses amigos. Ele estava passando por esse momento de separação e tinha filho pequeno, então eu reparei que era um imbróglio comum entre meus colegas da minha idade. Então eu pensei que era isso, falar dessa questão da paternidade, de toda a problemática que envolva uma criança de um casal separado por algum viés. Aí que surgiu a história, unindo o universo do boxe com a questão da paternidade. Foram muitas versões do roteiro até a gente chegar nesse mote principal, que é a mãe que fica de saco cheio e não aguenta mais a ausência desse pai e some no mundo, vindo todas as complicações e essa jornada de aprendizado nele.
Michel: Nessa última fala você antecipou a próxima questão que eu ia abordar. Como vocês pensaram essa questão de criar as motivações para a mãe ir embora? Eu vejo que vocês lidaram com um aspecto mais implícito, não exatamente frontal, mas fica muito claro nas entrelinhas que é isso que você falou. O Maycon era um pai ausente e ela não aguentava mais criar a filha sozinha. Isso fica claro nas cenas em que ela dá instruções para fralda e ele fica desligado, mexendo no celular, assim como quando ele leva a filha para o pula-pula, ficando implícito que ele foi assim durante a paternidade inteira. É como se a jornada do filme fosse para ressignificar essa paternidade dele. Aí eu queria que você falasse sobre isso, se você quis entrar em um mérito de culpabilização do seu protagonista, se essa é uma jornada redentora?
Bruno: Sim, é bem esse ponto. A gente tinha duas preocupações. A principal era não culpabilizar a mãe. Ela tem todos os motivos para ir embora, ele não é uma vítima. Ele provocou isso com essa ausência e falta de cuidado, sendo esse pai relapso, que fica claro no começo. Ela chegou em uma situação limite. Uma das nossas grandes preocupações era não culpar essa personagem feminina. Tudo que a gente tem ouvido de feedback, tanto de críticos quanto do público geral — e a gente fica muito feliz, porque entende que acertou a mão — é que ninguém sentiu isso, fez essa leitura de que culpamos a mulher. Todo mundo entende e fica do lado dela. As pessoas vibram e gostam de ver o pai passando por essa situação. Inclusive, essa ideia veio da Ju, namorada do William (co-roteirista), que disse: “e se a mulher que fosse embora?”. Quando estávamos no processo do roteiro, ela que deu a ideia, então veio de uma mulher. Ela gostaria de ver esse cara passando por isso que as mulheres passam na maioria das vezes. Daí deu aquele estalo e a gente pensou que era ali que estava o filme, se desenrolando toda a história.
Então sim, a gente pensava nessa jornada dele um pouco redentora, mas ao mesmo tempo foi uma escolha difícil. A gente não queria chegar no final e que fosse um final feliz, porque a vida não é assim. Eu enxergo muito que o filme termina, mas a história não. O filme se encerra no meio de um processo de aprendizado ainda, em processo de desconstrução e reconstrução dessa nova fase da vida dele. Imagino que talvez para alguma parcela das pessoas o final possa ser frustrante, se você comparar com o cinema hollywoodiano, porque o final não é aquela coisa super mega redentora onde tudo se resolve e todos são felizes para sempre, porque isso simplesmente não existe. Tudo que eu escrevo e penso de cinema sempre tem um pé muito forte no real, nas coisas da nossa sociedade, do nosso país, das minhas vivências e do que observo ao real. Se a gente olhar para a realidade ao nosso redor não combina com finais felizes.
Michel: Eu fiquei pensando justamente sobre como esse final não é um encerramento, ficando muito claro que as dificuldades que esse protagonista enfrenta no dia-a-dia ainda vão continuar. Não é exatamente um significado de vitória, mas de que cada dia é um dia em que ele vai levando e sobreviver diariamente é uma pequena vitória. Por isso acho uma escolha muito sensível que o filme termine com esse momento de felicidade, de brincadeira, que é uma coisa até muito rara no filme. Eu não sei se foi exatamente consciente, mas não são exatamente muitos momentos que se vê ele brincando com a filha, porque é muita correria. Então nos poucos momentos em que isso surge, acaba que recebem uma força maior, por ser algo tão raro no meio da loucura que ele vive.
Bruno: É completamente consciente. São dois fatores. É uma falta de tempo, porque ele se vira com dois empregos, diversas atividades e carrega a menina para cima e para baixo. Ao mesmo tempo, é uma por uma total falta de jeito, porque é sobre um cara que está se tornando pai, ele não sabe muito bem como brincar. Ele se apega primeiro às necessidades básicas: alimentar, dar banho, vestir, levar ao médico. Brincar está no final da lista de prioridades. Ele vai aprendendo muito aos poucos o que é a sua paternidade. Então, o filme se encerra, mas o aprendizado dele fica nas entrelinhas. A gente entende que o personagem evoluiu, aprendeu algumas coisas, mas que está longe do ideal, que ele está em construção. A gente tinha essa vontade de não botar este ponto final e ao mesmo tempo de não ser filme de final aberto, não é esse o tipo de filme. Ele segue aprendendo, como é na vida, um aprendizado ininterrupto.
Michel: Para mim, uma cena muito simbólica é a que ele cozinha o feijão. Você vê que é um processo difícil para ele, que ele está enrolado, enquanto a filha está brincando sozinha. A cena cria essa ideia de ser algo trabalhoso para ele e aí chega na hora de comer e a filha não quer. Aí que você que a paternidade é algo muito difícil.
Bruno: Pense numa criança que vivia com a mãe até dois dias atrás, mas que tinha esse pai super ausente, e aí do dia para a noite ela se vê com esse cara, sendo cuidada por ele. Então essa cena é bem significativa mesmo, porque é a rejeição dela. O Maycon até diz que ela gosta muito de feijão e não entende, mas é porque ele é praticamente um estranho para ela. Essa cena reforça o que ele vai passar, de reconquistar esse reconhecimento por parte dela enquanto pai. Quando ele tá cozinhando, ela tá no chão, você que para ele é muito difícil, ainda que seja simples para muitos fazer um arroz e feijão, você vê que ele está enrolado, joga um tupperware para a filha brincar. Lá para frente, as coisas vão se transformando. Começa um pouco nesse caos físico, que é a bagunça da casa dele, para uma coisa mais organizada e harmônica da segunda metade do filme.
Michel: Eu queria falar um pouco agora sobre outro aspecto do filme. É óbvio que o tema principal do filme é essa relação de paternidade, mas existe um elemento implícito muito forte que é a questão racial. Ele é esse homem negro isolado no Sul, que veio do Nordeste. Eu queria que você falasse mais sobre isso. Eu estava até escutando a sua entrevista para os curadores do Olhar e, me corrija se eu entendi errado, mas isso foi até meio que uma coisa não muito planejada no roteiro, que isso surgiu quando vocês escalaram o ator principal. É muito curioso ver como o filme ganha esses contornos e possibilidades extremamente novas enquanto vocês filmavam. Eu queria saber se vocês inseriram algo no roteiro, se vocês mudaram alguma cena quando perceberam que existe esse elemento? Para mim, por exemplo, existe algo na escolha dos atores. Sempre quando ele precisa lidar com alguém que representa alguma instituição burocrática, que só está ali para atrasar a sua vida, esses personagens são vividos por pessoas brancas.
Bruno: Sobre essas escolhas de casting e essas personagens que são brancas que ele se depara (na creche, a mulher do conselho) não foram exatamente uma escolha do tipo: “vamos escolher pessoas brancas”, foi mais aberto. Foi uma certa coincidência, mas não exatamente, porque estamos em Curitiba, onde há mais pessoas brancas, até entre pessoas e atrizes. Falando da escolha do Edilson (ator de Maycon), o personagem não estava escrito enquanto um homem negro. A mãe sim, porque eu escrevi já com a atriz em mente. O personagem o Maycon se tornou negro quando escolhemos o Edilson, que foi indicação do William (co-roteirista), que informou de uns curtas dele e eu comecei a assistir. Achei ele muito bom e entrei em contato com ele. A partir desse momento então começamos a escrever com o rosto.
Então as questões raciais, como você muito bem apontou, elas acabaram surgindo naturalmente pela presença desse corpo negro, desse ator negro e nordestino. Então foram duas camadas que surgiram: negro e nordestino, que agregam muito mais complexidade ao personagem e história, que surgiram da escolha do ator, mas que não estava no roteiro. Eu dizia no roteiro que o personagem vinha do interior do estado para Curitiba, então isso mudou. A gente acaba tendo uma outra visão desse embate e desse personagem contra essas instituições, no enfrentamento da burocracia da creche, da desconfiança da pessoa do Conselho Tutelar, em como ele é tratado na boate enquanto homem-objeto e até mesmo na relação patrão-funcionário no restaurante.
No fim eu gosto muito do resultado dessa camada racial do filme. Ela está ali, levanta outra discussão além da paternidade, sem que a gente precisasse pesar a mão para isso, escrever cenas específicas levantando essa ou outra bandeira. Está tudo ali muito diluído na história, se desenrolando de forma muito natural. Eu não sei como isso chega para cada pessoa, a gente não sabe como cada um reage, mas como diretor e um dos roteiristas eu posso dizer que a gente não escreveu o roteiro pensando em pesar essas questões raciais. Foi mais uma questão processual mesmo, que foi surgindo nos ensaios com os atores, com modificações nos diálogos, e no próprio embate do corpo desse ator negro com os espaços e essas figuras brancas que ele encontra em sua jornada.
Michel: É muito interessante ver esses desdobramentos naturais. Para mim, por exemplo, aquelas cenas na casa de swing, o elemento racial é extremamente forte sabe, é algo que ressignifica toda a cena. A cena até poderia ser vista dentro de um contexto da questão de inversão que falamos, pois é um homem que está se prostituindo, o que normalmente a gente associa mais com a mulher, mas isso ganha outra camada. É aquele homem negro vendendo seu corpo para uma senhora branca, algo que é de um potencial imagético muito forte. Então eu queria que você falasse sobre essa subtrama da prostituição, porque obviamente o filme não adota um posicionamento moralista que enxerga a profissão como algo vergonhoso, mas é mais o próprio protagonista que não está acostumado em sua vivência, mas sim para ele é uma humilhação dentro de sua visão de mundo. Só que isso deixa seu sacrifício ainda mais forte, porque você vê ele se submetendo a isso para sustentar a filha.
Bruno: Sim, tem essa subtrama da casa de swing, e realmente para o personagem isso é um grande conflito. Ele é levado pelo colega de restaurante, primeiro diz que não, mas conforme a corda aperta, ele acaba cedendo, como uma forma de conseguir dinheiro. Há aí uma camada que envolve a questão da masculinidade, porque é um uso diferente daquele corpo, porque ele é um atleta, boxeador, e todas as atividades que ele realiza são para a subsistência, mas se ele pudesse se dedicar a só um, seria o boxe. Então o corpo já é a ferramenta dele de trabalho, então esse corpo passa a ser utilizado como forma de sobrevivência de diversas formas, até nos outros trabalhos, como ele carregando chapa no caminhão ou até no restaurante, dele levando lixo e lavando louça, culminando nesse trabalho de garoto de programa. Já foi apontado em outras análises que esse é um filme muito físico, apesar de ter um drama interiorizado, pois o personagem não é muito falante. A presença do Edilson entrega uma camada muito interior do personagem, a gente olha para ele e fica imaginando o que o personagem está pensando e sentindo, mas é também um filme muito físico. A câmera está muito próxima do personagem, acompanhando ele no dia-a-dia, o que passa muito para o espectador, porque é como se a câmera pulsa junto com o protagonista em todas as atividades que ele faz.
Michel: Ainda sobre isso, minha cena favorita do filme é aquela transição que você faz dele na cama depois do sexo, sem camisa, meio envergonhado, aí depois surge uma tela preta (inclusive queria que você falasse sobre isso) e depois ele de novo sem camisa, só que agora com a filha no banho, brincando. É impressionante como se o corpo se reconfigura e se ressignifica completamente de uma cena para outra a partir do contraste. Em uma o corpo é objeto e depois volta a ser dele, o que obviamente entra em um aspecto racial também. Fala sobre essa cena.
Bruno: Sim, eu gosto muito dessa transição e dessas duas cenas. Foi algo que surgiu quando montamos o filme e ficamos refletindo se seria meio chocante para algumas pessoas essa associação de imagens diretas dele saindo da prostituição para ele dando banho na filha, mas no fim é isso. É uma transição muito forte porque fala do sacrifício que ele está fazendo para dar uma condição melhor para sua filha e cuidar dela. Ele faz isso a contragosto, incomodado, contrariado, mas ele faz o que precisa ser feito e está ao alcance dele, até que ele possa se livrar desse emprego.
Você falou da tela preta, é um artifício que eu gosto de usar desde os curtas que eu rodava na faculdade. É um artifício que para mim dá quebras dramáticas, para marcar uma elipse, um choque em quem está assistindo. Eu gosto e utilizo quando acho válido. Agora falando isoladamente da cena do banho é uma das mais bonitas do filme e minhas preferidas, porque é um momento totalmente dele, dessa pequena alegria das pequenas coisas, de muita cumplicidade entre eles e dos atores Edilson e Malu enquanto pai e filha.
Michel: Para finalizar, eu queria agora falar um pouco sobre o boxe. Uma coisa que me chama atenção é que você nunca deixa exatamente claro se ele venceu a luta, como se isso não fosse exatamente o foco principal. Isso foi uma escolha proposital? Você não quer mostrar o resultado, talvez até deixar implícito, porque isso não importa tanto no fim das contas, é mais como se a luta fosse uma metáfora para o fato dele estar sempre levando porrada no filme todo, mas ele continua levantando e seguindo.
Bruno: O boxe acaba virando mais um pano de fundo, como já falamos, mas ele acaba correndo em paralelo como metáfora essa luta diária pela sobrevivência, pelos cuidados da filha, com os obstáculos da vida. Desde a fase inicial do roteiro não era uma questão importante para a gente definir o final da luta e deixar isso 100% claro, ficando aberto para interpretações, ainda que eu acho que pende mais para um dos resultados. A gente fez questão de não mostrar o resultado porque o filme não é sobre isso, é sobre a paternidade. Também entendemos que isso era uma escolha arriscada, porque se você bota um personagem enquanto boxeador e parte de sua trajetória é a preparação para a luta, uma parcela das pessoas pode ficar com a expectativa de saber se ele venceu ou não. Então para reforçar de que o filme não é sobre isso, a gente fez uma escolha de montagem começar já com essa luta quase que no seu final, já mostrando o estado em que as coisas estão, então a gente parte para quando ele acorda. A cena inicial é na verdade um flashforward e depois partimos para quando ele acorda, que não é no dia seguinte, aí acompanhamos seu dia-a-dia de trabalho e toda a jornada do filme, retomando a cena da luta lá na frente, mas já de uma forma reduzida, pois já mostramos no início e sabemos mais ou menos onde ela vai dar. Então a luta funciona muito mais como uma metáfora para essa resiliência presente na alma desse personagem, que cai, levanta, apanha e segue em frente. Citando o clássico Rocky Balboa: “Ninguém vai bater mais forte do que a vida. Não importa como você bate e sim o quanto aguenta apanhar e continuar lutando; o quanto pode suportar e seguir em frente. É assim que se ganha.”