Como dito no popular, “tamanho não é necessariamente documento”. Essa é uma expressão que podemos utilizar para se referir ao Grande Dragão Vermelho e a Moça Vestida Como o Sol, uma das obras-primas de William Blake. A técnica é cirúrgica: há linhas extensas que cruzam todo o desenho e evocam uma espécie de flash em zigue-zague que dão a impressão oportuna de um relâmpago, juntamente com o bater de asas. As dimensões, 43,7 x 34,8 centímetros, não intimidam pelo tamanho, sem deixar, no entanto, de ser algo visualmente suntuoso. Datada de 1803-1805, a pintura foi concebida em tinta preta e aquarela sobre traços de grafite, bem como linhas incisas na superfície do papel tecido. Interpretada por críticos e estudiosos como uma obra de arte que reflete a deserção espiritual e suas inevitáveis consequências, essa tradução intersemiótica do apocalipse bíblico foi encomendada por Thomas Butts, um dos principais patronos de William Blake. Na relação de produção e encomenda, a memória da história da arte foi enriquecida com essa obra brilhante, retomada na pesquisa do escritor Thomas Harris para o romance Dragão Vermelho, publicação dos anos 1980 que nos apresenta Hannibal Lecter brevemente, pela primeira vez, antes do igualmente ambicioso O Silêncio dos Inocentes, livro que amplia a mitologia do personagem.
Popularizados massivamente por causa das eficientes traduções para a linguagem cinematográfica, os romances de Thomas Harris são sempre revestidos de muita pesquisa e investimento em descrições cirúrgicas que tornam o trabalho dos adaptadores, em especial, os diretores de fotografia e os designers de produção, mais próximos o possível do ambiente literário levado para a fusão de imagens e sons próprios ao cinema. Hoje, Harris é escritor de uma franquia que compreende os romances já mencionados, a violenta e volumosa continuação intitulada Hannibal e os antecedentes desta figura da cultura pop contemporânea em Hannibal – A Origem do Mal, equivocada publicação que serviu de base para o material cinematográfico homônimo, igualmente ineficiente. Aqui, nos deteremos ao Dragão Vermelho, de 1981, romance que nos apresenta a trajetória de Will Graham, interpretado no cinema e na televisão em desempenhos dramáticos bem peculiares, todos intensos e complementares. Ao longo de sua investigação, o policial precisa lidar com os crimes do assassino chamado Fada dos Dentes, algo que no íntimo sabemos ser Dollarhyde, um pacato cidadão que esconde em sua faceta tímida toda a monstruosidade de um perigoso psicopata originado de situações adversas e macabras.
William Blake e o seu Grande Dragão
Para dar conta do criminoso, Will precisa lidar com Hannibal Lecter, um perigoso intelectual preso por cometer os abomináveis atos de canibalismo, algo que o põe na categoria de ogro contemporâneo. Esse monstro, como o livro e suas adaptações deixam bem delineado, é capaz de colaborar com a investigação se receber os incentivos para um aprisionamento, digamos, mais ameno e sofisticado. Livros, comidas especiais e outros recursos. É assim que somos apresentados ao assassino da vez, um homem que possui problemas de personalidade, traumas pesados do passado que ecoam em sua atualidade, além de uma relação com o ponto que mais nos interessa aqui, a pintura de Blake, Grande Dragão Vermelho e a Moça Vestida Como o Sol, manifestação artística que dialoga com as duas forças gravitacionais de Dollarhyde, o indivíduo que exerce a sua cidadania diariamente do trabalho para casa e o ser psicótico que precisa dar vazão ao “grande dragão” que emerge de suas entranhas, num processo de identificação macabra que promete eclodir num espetáculo de morte e horror sem precedentes na vida destes personagens.
Dollarhyde é um admirador da obra de William Blake. De um lado, temos um homem monstruoso, cinematograficamente tatuado e assustador, imponente, num paralelo ao seu outro lado, o grande homem bobo, oprimido pelas memórias malditas de sua sofrida infância e juventude com a avó materna castradora. Essas lembranças indesejadas são os elementos catalisadores da busca do personagem pela fusão com a figura pintada por Blake na já mencionada obra que alegoriza o último livro bíblico, passagem das sagradas escrituras que George Bernard Shaw certa vez descreveu como “um curioso registro das visões de um viciado em drogas”, trecho cheio de figuras de linguagem e alegorias que fizeram D. H. Lawrence escrever a sua própria versão, tendo em vista exorcizar os demônios que pulularam ao seu redor depois de uma leitura previamente descompromissada, mas que o levou a crer que o Apocalipse possui tantos mistérios quanto palavras, livro que ainda não ganhou, ao meu ver, uma versão cinematográfica digna de suas propriedades dramáticas e gráficas. Precisamos lembrar que a Bíblia é literatura, e das boas, principalmente quando esquecemos as interpretações fundamentalistas de entidades religiosas oportunistas que utilizam da fé alheia para comandar pessoas e suas posses financeiras.
As várias facetas de Dollarhyde: presença na cultura cinematográfica (em 1986) e na série televisiva
Ao longo de sua tessitura com riquíssimos detalhes, o livro pode ser visto como uma espécie de tratado teológico com mensagens moralistas que se encaixam em ciclos e seus desfechos, parte da própria história da humanidade, dividida em fases. As suas estruturas proféticas demonstram o quão os maus serão castigados e os bons serão exaltados, numa dinâmica que reflete a tal “recompensa dos justos”. Lido, relido, reescrito numerosas vezes em nossa trajetória narrativa extensa, o livro em questão é uma história de revelações, cheia de detalhes e com abertura potencialmente dramática, isto é, demarcada pela chegada da figura do Anticristo. A ira de Deus se estabelece, os selos são desencadeados, as igrejas recebem as suas cartas e o dragão, criatura mítica, faz o seu reinado de medo e horror, numa punição severa e visualmente significativa para a humanidade perdida e pecadora. Com suas sete cabeças, dez chifres e sete diademas, o monstro em questão batalha com o Arcanjo Miguel, num conflito celestial de grandes proporções. O final é promissor para as forças do bem, haja vista o aprisionamento da “besta”, derrubada e acorrentada, preâmbulo para o juízo final, momento que gosto de definir como a ida definitiva para o Auto da Barca do Inferno, numa relação metalinguística com o humanista Gil Vicente.
De volta ao romance de Thomas Harris e seu rico panorama cultural desenvolvido com pesquisa e interpretação cuidadosa das fontes e da própria obra mencionada, temos o estabelecimento de uma narrativa cíclica. A concepção e a ambientação da história de investigação de Will Graham, diante do universo hediondo concebido por Francis Dollarhyde, são abordagens metafísicas e por isso, angustiantes para nós e para os personagens. Nos sentimos inseridos nesta atmosfera doentia de medo e paranoia, num jogo de duplos que pode ser mortal não apenas para quem centraliza a história, mas para as figuras gravitacionais deste universo de dor, incerteza e estabelecimento de um cenário trágico que infelizmente é inevitável. O dragão, na linha de raciocínio complexa de Dollarhyde em suas elucubrações, é o ser que permite o nascimento do novo, engole a sua presa e a cospe transformada. É a sua transição para um ser de nível superior, momento de deixar a sua voz, corpo e vontade ser parte de uma coisa só, a justaposição do humano e da monstruosidade destrutiva/renovadora do Grande Dragão Vermelho, pintado majestosamente por William Blake e selecionado como suporte das mudanças psicológicas e até mesmo físicas do psicopata caçado por Will Graham.
O Grande Dragão Vermelho, Francis Dollarhyde e seus processos de mutação no filme de 2002
Em seus delírios criminosos, o assassino se sente perturbado pela voz da avó que o reprime constantemente. Retoma o abandono materno, a ausência de uma figura fraterna forte, as celeumas de viver com uma idosa que o maltratava cotidianamente, infligindo acusações que minavam a sua masculinidade desde a infância. Tanto nos livros quanto nas traduções audiovisuais, a semiose da avó, presente nas memórias auditivas do personagem, ampliam a sensação de opressão psicológica sofrida por este indivíduo que tem na força do grande dragão vermelho o estímulo para empreender respostas e continuar a sua caminhada de simbiose, numa busca por tornar-se a criatura monstruosa e mítica da Bíblia Sagrada e fazer o Grande Dragão Vermelho e a Moça Vestida Como o Sol, de Blake, exposto no Museu do Brooklyn, ser parte de suas entranhas. É lá que, tanto no romance quanto no filme de 2002, ele devora a obra num surto que quase ceifa a vida de duas funcionárias incautas do museu, levadas a acreditar que o pacato homem era um pesquisador interessado em alguma análise acadêmica da obra. A criatura representada na arte devorada por Dollarhyde lhe trazia uma sensação de segurança. Tê-la dentro de si era uma forma de interiorizar as suas potencialidades.
O rapaz só não contava com a chegada da jovem Reba em sua vida. É uma complexa modificação de cenários e conflito de vontades fortemente antagônicas, pois a moça traz sentimentos nunca antes experimentados pelo homem que durante uma considerável parcela de tempo de sua existência, cobiçou se transformar na figura bíblica idolatrada. É um dilema delineado com cautela no romance e em suas versões cinematográficas. Pressionado por suas vontades, Dollarhyde atravessará uma delicada fase que culmina num desfecho nada romântico para todas as pessoas envolvidas nesta história de investigação policial com toques de filme de terror sofisticado. Produzida pelo pintor e poeta britânico, o Grande Dragão Vermelho e a Moça Vestida Como o Sol é uma das quatro pinturas encomendadas como partes da ilustração para uma edição do livro sagrado que conta alegoricamente a história da humanidade da criação aos momentos de tormenta do painel apocalíptico lido, analisado e interpretado por Thomas Harris para a concepção do romance que se projetou em filmes e séries e permitiu que este universo se tornasse uma franquia de ótimos e irregulares momentos. Em sua obra, Blake retrata parte de sua vocação para a emulação da mitologia cristã no universo das artes visuais. É uma parcela pequena, mas significativa para a vastidão de pinturas que refletem, tal como descrito anteriormente, este universo de riqueza dramática e gráfica, ideal para adaptações em outros formatos de linguagem.