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Entenda Melhor | Vinland Saga

por Guilherme Coral
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Publicado pela Panini no Brasil e pela Kodansha no Japão, Vinland Saga se encontra em seu 15º volume no exterior. O mangá, em andamento, já conquistou milhares de fãs e é muito comparado a Berserk não só pela sua retratação histórica (ainda que a saga do Espadachim Negro seja uma obra de fantasia) como pela forma como a violência é abordada. Vamos, portanto, nos aprofundar um pouco nesses dois elementos e nos personagens do mangá, para que a história escrita por Makoto Yukimura, cuja crítica vocês encontram aqui, seja ainda melhor aproveitada.

Os Vikings

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Um forte elemento que une essas pessoas de diferentes localizações é sua religião. Eles acreditavam que somente através do combate os guerreiros alcançariam Valhalla, onde ficariam próximos aos deuses Odin (o pai de todos) e Thor (que era um dos mais populares dentre os nórdicos). Tal crença certamente é proveniente dos próprios hábitos saqueadores desse povo, atuando como justificativa e incentivo para os jovens seguirem nas perigosas expedições, seja de pirataria ou conquista propriamente dita.

A sociedade dos vikings teve início como qualquer outra civilização europeia, por meio da agricultura e do comércio. A prosperidade inicial da civilização ajudou os vikings a voltarem os olhos para o mar, centrando toda sua economia na navegação, fosse para trocas, explorações ou até mesmo pilhagem. A pirataria surgiu como uma prática comum logo no final do século VII, e, por volta do ano 800 de nossa era, os saques na Grã-Bretanha se iniciaram. Foi durante esse período que essa civilização alcançou seu auge, ao mesmo tempo que passou a ser temida no oeste europeu.

Essas expedições foram registradas pelo próprio povo em diversos poemas, conhecidos como Sagas, os equivalentes aos contos de cavalaria medievais. Essas nada mais são que histórias gloriosas, sobre conquistas de um determinado homem ou grupo. Vinland Saga se apoia em duas dessas famosas histórias, a de Erik, o Vermelho e da Groenlândia, já mencionadas anteriormente.

A mulher tinha um papel de destaque na cultura viking, especialmente considerando-se as constantes viagens dos homens. Contavam com uma liberdade muito maior quando comparadas às outras mulheres europeias e podiam, inclusive, possuir terras. Ainda assim, enquanto que a tarefa dos homens era prover sustento para a família, a das mulheres era educar os filhos e cuidar da casa, embora existam esparsos registros de mulheres portando armaduras e armas.

A sociedade viking começou a se extinguir justamente nas invasões à Bretanha no século X, quando entrou em contato com o cristianismo. A partir daquele momento, muitos escandinavos foram convertidos, dando início a um lento processo de aculturação que significou o fim de seus hábitos anteriores.

Os Personagens

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Thorfinn

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O protagonista do mangá foi inspirado pelo personagem histórico Thorfinn Karlsefni, que seguiu Leif Eriksson em sua expedição para a América do Norte (ou Vinland, como chamavam).

Thorfinn, assim como seu correspondente histórico, nasceu na Islândia e, desde cedo, teve contato com a violência que marcaria sua juventude. Seu pai, Thors, foi morto por Askeladd e, desde então, o menino jura vingança sobre o assassino. Movido pela honra, contudo, ele se recusa a matar Askeladd de qualquer maneira que não seja um duelo e, por isso, segue junto com seu bando de piratas enquanto refina suas habilidades e utiliza toda e qualquer oportunidade para exigir uma luta do algoz de seu pai.

O garoto utiliza duas adagas, sendo uma delas de Thors e, com o tempo, se tornou um hábil guerreiro de colocar medo em qualquer oponente. Sua aparência malcuidada, bem representada pelos seus cabelos desgrenhados, refletem perfeitamente sua personalidade conturbada – trata-se de alguém que ficou parado no tempo, movido apenas pelo seu trauma de infância. É calado, selvagem e com aparentes traços de sociopatia.

O autor, contudo, não deixa seu protagonista na unidimensionalidade e coloca nele traços de bondade e compaixão que aparecem em determinados pontos da história. Assim como seu pai, ele, aos poucos, ganha fortes cicatrizes de guerra, tornando-se, também, avesso à ela, corroborando o tom pacifista da obra.

Askeladd

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Embora Thorfinn seja o protagonista do mangá, Askeladd ganha notável destaque na narrativa, muitas vezes tendo até mais espaço em cada capítulo. Isso é válido principalmente nos quatro volumes iniciais, já lançados no Brasil. Sua criação foi inspirada pelo personagem de fábulas nórdicas Askeladden. Segundo esses contos, trata-se de um indivíduo que sempre ganha no fim, superando os outros em razão de seu intelecto.

Seguindo o mesmo princípio daquele no qual foi baseado, Askeladd é, definitivamente, um dos personagens mais inteligentes da história. Especialista em prever os movimentos do inimigo, ele também se define como um dos maiores guerreiros de Vinland Saga, sendo capaz de duelar páreo a páreo com Thors.

Sua competência, porém, é mantida em segredo, uma vez que esse líder de um bando viking se esconde sob sua personalidade mais relaxada, somente demonstrando maior seriedade nas situações de vida ou morte.

Askeladd foi responsável pela morte de Thors, pai de Thorfinn e, desde então, manipula o jovem através de sua vontade por vingança. Muitas vezes emprega o menino como sua carta na manga, utilizando-o como uma espécie de assassino que, em geral, infiltra as linhas inimigas em missões especiais.

Por ser meio nórdico e meio galês, Askeladd consegue transitar entre esses dois grupos com facilidade, atuando, também, como um efetivo negociador nas situações mais arriscadas. Além disso, ele acredita nas lendas antigas de seu povo, em especial naquela do Rei Arthur (ou Arcturius). Esse fator garante uma evidente profundidade ao personagem, que, pouco a pouco, passamos a enxergar como tendo algumas motivações ocultas – certamente um dos mais fascinantes de Vinland Saga.

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O pai de Thorfinn não foi necessariamente baseado em um personagem, mas conta como óbvia inspiração Thor, o Deus do Trovão. Além de ter uma estatura considerável e ser um guerreiro praticamente imbatível, podemos traçar um paralelo entre o personagem com o caráter de protetor da humanidade do deus nórdico.

Thors foi um famoso general Jomsviking, cuja maestria no campo de batalha o garantiu o título de “Troll de Jom”. Após anos realizando saques e participando de guerras, o guerreiro decidiu fugir. Cansado da violência, ele desertou os Jomsvikings e se escondeu na Islândia, onde, por muitos anos viveu pacificamente com sua família, composta por sua esposa Helga e seus dois filhos, Ylva e Thorfinn.

O Troll de Jom é o primeiro personagem a ser apresentado com uma força evidentemente sobre-humana, algo que assombra até mesmo os demais personagens, mesmo os mais próximos dele. Apesar disso, ele é tido claramente como a representação do caráter pacifista da obra e, ironicamente, coloca em movimento o instinto assassino de seu filho.

Thorkell

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O principal antagonista do primeiro arco do mangá, Thorkell fazia parte do mesmo clã que o pai de Thorfinn, os Jomsvikings. Após longas expedições no território inglês, contudo, ele decide mudar de lado e lutar pelos britânicos, pois estava cansado de sempre ganhar com facilidade – vemos aqui, novamente, um claro desmerecimento acerca das habilidades de outros que não os vikings.

Thorkell é primeiro visto na invasão à Londres, onde se depara com Thorfinn e logo demonstra sua proximidade com Thors. Assim como o pai do garoto, o antigo Jomsviking conta com uma força sem igual, já nos mostrando de relance o tipo de antagonista que encontraremos no futuro. Apesar de estar do lado oposto, o personagem jamais é retratado como um vilão de fato e constantemente extravasa sua personalidade descontraída.

Essa característica funciona ainda como outro motivo de sua deserção, ao passo que todos os outros membros do clã apresentam feições duras e um comportamento tipicamente militar. Floki (qualquer semelhança com o nome Loki não é mera coincidência), o general dos Jomsvikings com quem temos o primeiro contato, é uma figura ameaçadora, sendo uma antítese perfeita de Thorkell e portando uma velada sede por sangue que vai muito além dos ensejos por glória de seu antigo companheiro.

Thorkell é um dos primeiros personagens a demonstrar uma forte defesa de sua religião, defendendo os conceitos nórdicos de Valhalla. Aqui, entramos sutilmente no conflito entre o cristianismo e a crença em tais deuses e Yukimura traz esse diálogo para primeiro plano de forma cômica, realizando um questionamento comum aos guerreiros da época que era comparar Cristo aos deuses Thor e Odin.

Thorkell foi inspirado em Thorkell, o Alto, que, por volta do ano 1000, atuou como comandante dos Jomsvikings. Ele participou de inúmeras incursões à Grã-Bretanha e, posteriormente, mudou de lado, tornando-se súdito do rei Ethelred da Inglaterra.

Bjorn

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O segundo em comando do clã de Askellad, Bjorn é apresentando como um guerreiro sedento por sangue, porém sua personalidade é trabalhada mais a fundo em determinados pontos da história. Não se trata de um personagem central dentro de Vinland Saga, mas oferece algumas características interessantes, em especial considerando-se a cultura Viking.

Bjorn é um berserker, que, após consumir um tipo específico de cogumelo, entra em um estado de transe, lutando em uma fúria descontrolada. Os berserkers fizeram parte de inúmeras sagas escandinavas e sua fama deu origem ao termo em inglês “berserk”, que se traduz livremente como “agir de forma descontrolada”.

Canute

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O jovem príncipe dos escandinavos é exibido de forma frágil, portando fortes traços femininos que sedimenta a dúvida em seus súditos sobre sua masculinidade, algo ampliado ainda mais em virtude de sua crença no cristianismo. Apesar disso, o príncipe lentamente se constrói como um homem forte e decidido, logo se tornando similar à figura na qual foi inspirado, Canute, o Grande, tido como o maior governante escandinavo da Inglaterra.

Em termos de narrativa, Canute ainda oferece uma interessante relação entre ele, Askeladd, Thorfinn e Thorkell, provocando inúmeros twists na narrativa que constantemente servem como revitalizações da trama. Graças a isso, Vinland Saga sempre adota uma narrativa contínua, com poucas interrupções, que geralmente se resumem a alguns flashbacks ou algumas mudanças de perspectiva.

Vinland Saga x Berserk

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Desde o início, Vinland Saga foi inúmeras vezes comparado ao famoso mangá Berserk. Tanto pelo seu realismo quanto pela crueza de sua narrativa, oferecendo violência explícita, que facilmente nos deixa com um nó no estômago. Mas a comparação vai além disso? Até que ponto podemos, realmente, colocar lado-a-lado essas duas histórias?

Comecemos pelo óbvio: o próprio título de Berserk remete à cultura viking – o termo berserk, como dito anteriormente, surgiu de uma parcela dos guerreiros escandinavos que entravam em uma espécie de transe de fúria. Guts, após o prólogo do mangá entra nesse estado, aprofundando-se na violência que o marcou desde a infância. Algo similar ocorre com Thorfinn durante o primeiro arco de Vinland, colocando-o no mesmo caminho de destruição.

As semelhanças se estendem ainda para a forma como aspectos da Era Medieval são retratados, trazendo não só combates mais realistas (embora tenhamos alguns saudáveis exageros para maior tensão em cada história), como os personagens em si são colocados de forma crível, bem caracterizados tanto em expressões faciais, aparência quanto na própria vestimenta. Isso tudo garante um tom mais adulto a ambos os mangás, que os colocam em um costumeiro pé de igualdade.

As semelhanças, contudo, param por aí. Vinland Saga é uma obra de tom pacifista, que melhor seria comparada a Samurai X ou Vagabond, como já mencionado. O personagem principal vai da inocência para a violência para depois seguir no caminho pacífico de seu pai, enquanto que Guts aprofunda-se em seu transe, em seu caráter como berserker. Logo nas páginas iniciais, vemos Thors resumir em uma frase sobre o que se trata Vinland: “um verdadeiro guerreiro não precisa de uma espada”.

Se pensarmos bem, logo notamos o evidente: Thorfinn utiliza duas adagas, representando que sua luta é algo mais pessoal, é o desejo de vingança que o levou por aquele caminho. E o que vem depois disso? Garantindo esse enfoque dramático nas motivações do protagonista, temos ainda a origem dessa arma que ele porta, trata-se de um presente de seu pai e não uma simples lâmina que pode ser descartada. Em contraposição, há a gigantesca espada de Guts, que facilmente traz à tona agressividade, tão bem colocada em prática em suas lutas constantes.

Além disso, temos a clara diferenciação de tom de ambos os textos. Vinland Saga, por mais que ofereça alguns momentos de suspensão de descrença, com personagens portando habilidades sobre-humanas, mantém-se preso à realidade. Trata-se de um mangá histórico propriamente dito, com um pé sempre fincado na realidade. Berserk, por sua vez, aprofunda-se na fantasia e utiliza o medieval apenas como parte do cenário e do conceito que o autor visa utilizar como pano de fundo.

Temos, portanto, duas histórias com claras similaridades que podem nos lembrar uma da outra. Quando comparadas em detalhes, contudo, logo observamos que Vinland Saga e Berserk são de teores substancialmente diferentes tanto em mensagem quanto em progressão narrativa. Ainda assim, dois mangás que definitivamente valem a leitura.

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