Após os rascunhos de Mário de Andrade nos idos de 1920, período marcado pela escalada do cinema enquanto linguagem, outros integrantes do campo intelectual e cultural brasileiro também atuaram na crítica cinematográfica brasileira. A lista é numerosa, todavia há três nomes que ganham destaque nesta pesquisa: o cineasta excêntrico Mário Peixoto, o intelectual e “produtor cultural” Alex Viany e o múltiplo Vinícius de Moraes, conhecido mundialmente como poeta, mas um homem que também esboçou linhas que ajudaram na formação da crítica de cinema nacional. Antes de adentrar nas contribuições de Vinícius de Moraes, creio ser relevante contextualizar o período e versar um pouco sobre Alex Viany, outro agitador cultural da época em questão.
No livro Alex Viany: crítico e historiador, o pesquisador Arthur Autran esboça um panorama histórico da formação de cineclubes e revistas de cinema da primeira metade do século XX, apresentando-nos a fermentação crítica antes do período que é considerado o auge da reflexão cinematográfica no Brasil: o Cinema Novo. Conforme aponta Autran, a ABCC (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) foi inaugurada em 1945. A instituição aglutinava diversos intelectuais estabelecidos no Rio de Janeiro, interessados na discussão sobre a arte cinematográfica, dentre eles, Pedro Lima e Moniz Viana. Em São Paulo, o Clube de Cinema agregava críticos e estudantes de cinema. Em meio a este processo, surge a revista Filme, publicação considerada órgão oficial do CEC (Círculo de Estudos Cinematográficos), um cineclube recém-fundado que reunia boa parte dos críticos e estudiosos de cinema.
A situação, inicialmente, era animadora: os cineclubes propiciavam a exibição e a divulgação de filmes, geralmente da produção internacional. A revista era pensada como arquivo e elemento difusor das ideias acerca da linguagem cinematográfica; no entanto, como ocorreu com outros periódicos, Filme deixa de circular após o segundo número, afinal, como expõe Autran, não havia mercado consumidor para a publicação, e as vendas eram insuficientes para cobrir o custo de sua confecção e distribuição. A partir dessa afirmação, é possível perceber que, desde os meados do século XX, as revistas especializadas em cinema passam por problemas similares: um abismo entre o público consumidor e as publicações que dialogam entre os pares (questão explanada com mais ênfase no tópico sobre a geração Contracampo, mais adiante), bem como o custo da revista impressa no Brasil.
É nesse momento histórico que Alex Viany passa a trabalhar no campo da crítica cinematográfica: em A Scena Muda, outra publicação do período, o crítico assina a coluna semanal Telas da Cidade. A produção de Viany demonstra o esforço do crítico em ampliar as discussões sobre cinema e estabelecer, de fato, a crítica como exercício cotidiano na mídia brasileira. Entretanto, cabe ressaltar que esse campo era dividido em duas vertentes: de um lado, os amantes do cinema europeu, e, do outro, os adeptos do cinema hollywoodiano. O livro de Arthur Autran situa historicamente os fatos acima elencados e ainda fornece para esta investigação mais possibilidades de compreensão da crítica no período, e da crítica-rizoma que se ramificou para outros eixos que não fossem Rio- São Paulo: na Bahia, a experiência dos cineclubes criados por Walter da Silveira, além da produção contínua do cineclubismo em Minas Gerais, alimentado por Cyro Siqueira, Jacques do Prado Gouveia e Guy de Almeida.
Destacam-se também algumas iniciativas no Rio Grande do Sul, Pernambuco e Paraíba, e, ao apresentar esses outros contrapontos da crítica cinematográfica brasileira, questiona-se o modo como normalmente é apresentada a produção cultural no Brasil, desde o auge do Modernismo: a centralização das discussões fica nos polos Rio de Janeiro e São Paulo. Os manifestos que pululam em outras regiões mostram-se igualmente importantes, porém são menos estudados nos manuais e livros especializados em cinema. Para Autran (2003), a Revista de Cinema, veiculada nos anos 1950, foi a publicação mais importante da área à época, até porque as palestras que envolviam a publicação da revista nos cineclubes promoviam a reflexão e, concomitantemente, a alimentação da crítica brasileira.
Apesar de influentes e conservadores, muitos críticos renomados surgiram nesse período. É o caso de Moniz Viana (Correio da Manhã) e Almeida Salles (O Estado de S. Paulo), profissionais com destaque social e profissões privilegiadas (ambos eram médicos). Foi também a época de Vinícius de Moraes, que havia chegado da Inglaterra desempregado, tendo em seu histórico diversificado a posição de censor cinematográfico para o Estado, antes de adentrar nas malhas da crítica. Na biografia Vinícius de Moraes: o poeta da paixão, José Castello enumera os motivos que o levaram a biografar um dos mais famosos e respeitados ícones da poesia brasileira. Um dos fatores é que Vinícius de Moraes foi um homem que viveu cheio de paixão, sempre aberto à transitoriedade e ao risco, elementos basilares da arte do poeta. O autor ainda reitera a multiplicidade de Vinícius, ao dizer que ele viveu para se ultrapassar e para se desmentir. Normalmente, esse interesse de Vinícius passa sem uma percepção mais ampla, predominando as informações acerca do seu lado político, poético e musical, chegando-se, no que se refere ao cinema, no máximo, às referências e colaborações para as trilhas sonoras de diversas produções fílmicas.
A faceta de cronista do cinema é evidenciada no artigo “Vinícius de Moraes: crítico de cinema”, do pesquisador Afrânio Mendes Catani, que diz ser necessário destacar a importância do escritor no âmbito da crítica cinematográfica brasileira ainda em formação, nos idos dos anos 1940. Para embasar a sua pesquisa, foram analisados os textos produzidos na revista Clima e no Jornal A Manhã. No final da efervescente década de 1920, os intelectuais brasileiros Plínio Süssekind, Claudio de Mello e Octávio Faria deram início às atividades do Chaplin Club, cineclube que teve como produto a revista Fan, defensora do cinema mudo. O veículo teve uma história curta: nove edições, publicadas entre 1928 e 1930. O interesse por cinema ressurgiu em São Paulo através do Clube de Cinema da Faculdade de Filosofia, criado por Paulo Emilio Salles Gomes, tendo Décio de Almeida Prado e Antonio Candido como colaboradores.
Engajados, eles deram início às atividades com a revista Movimento, e, logo depois, lançaram a revista Clima, publicação que deu gás aos textos críticos sobre cinema no Brasil. No entanto, cabe ressaltar que o interesse era o cinema internacional: após o retorno de Paulo Emílio Salles Gomes da Europa, eram exibidos filmes, com debate posterior, mas em francês. O pesquisador Afrânio Mendes narra que Vinícius, nessa época, estava casado e com uma filha para criar. Era um período de busca por estabelecimento profissional em algum lugar que disponibilizasse subsídios para sustentar a família. Assim, conquistou uma vaga no Suplemento Literário do jornal A Manhã, assinando, dentre outras colunas culturais, a crítica cinematográfica.
Durante o período de atuação do poeta-crítico, a polêmica mais relevante, e que aqueceu as discussões sobre cinema em um nível mais amplo, foi a questão cinema mudo x cinema falado. Segundo Afrânio Mendes, a discussão do Cineclube de Cinema mostrava o atraso estético das reflexões, haja vista que, até 1942, o que se debatia era o cinema dos anos 1920. Vinícius de Moraes ganha destaque nesse processo, pois, assim como o “manifesto” da revista Fan, produto do Chaplin Club que militava pela continuação do cinema mudo, o crítico adentrou nessa batalha ao participar de um evento organizado pela Escola de Belas Artes no Rio: o foco dos debates era o cinema mudo (não-sonoro). O evento, que teve a participação de Orson Welles, diretor de Cidadão Kane, foi considerado irrelevante pelo público, principalmente pelo fato de Vinícius, um homem visto como ultrajante, defender o cinema mudo e promover o atraso do pensamento cinematográfico no Brasil.
Em A Revista Fundamentos e a crítica de cinema (1948-1954), Afrânio Mendes Catani, responsável por nos apresentar o lado crítico de Vinícius de Moraes, explana os elementos que fizeram da revista citada um acontecimento relevante para a historiografia da crítica nacional. Editado durante seis anos, com trinta e cinco números publicados, o veículo de comunicação abordava temas polêmicos, como questões de cunho político, histórico, sociológico, artístico (literatura, música, teatro e artes plásticas), e, no que concerne à reflexão cinematográfica, focava na militância que via o cinema hollywoodiano como uma ameaça. Os artigos “políticos” de Carlos Ortiz, Alex Viany, Bráulio Pedroso, dentre outros, possuíam um posicionamento antiamericano, com simpatia pelo cinema soviético e pelo cinema europeu. Para Afrânio Mendes, a análise da produção de críticas cinematográficas na revista é algo que contribui para a elucidação de como uma parcela dos críticos debatia, militava e estudava o cinema, com olhar apurado para a emergência do cinema nacional, dentro de um campo de forças marcado pela hegemonia do cinema internacional, em especial, o estadunidense.
Então, caro leitor, além de poeta, músico, o múltiplo Vinícius de Moraes foi também um entusiasmado crítico de cinema.