Num destes passeios curiosos com a inserção de palavras-chave na esfera virtual pública, algumas peculiaridades do subgênero slasher foram encontradas, algumas já conhecidas e trabalhadas em textos presentes por aqui, noutras, interpretações interessantes sobre pontos de articulação do slasher, por exemplo, com o arcabouço simbólico das narrativas góticas, como é caso do estudo do professor e pesquisador Cláudio Zanini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, publicado em 2017 nos anais da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), uma análise sobre a máscara como indeterminação do rosto do assassino, característica deste estilo marcante na estrutura dramática e visual dos filmes sobre assassinos mascarados que ceifam a vida de vítimas incautas em locais geralmente desertos e perigosos, outro traço do gótico, o locus horrendus, devidamente explicado numa seção mais adiante.
Em sua reflexão, o autor propõe que no segmento slasher, os personagens se encontram diante da indeterminação do rosto do assassino, uma figura invariavelmente mascarada, deformada ou transformada, diante de uma superfície que espelha os seus maiores medos. Ademais, nesta proposta de análise, Cláudio Zanini também completa o quadro de comparações com outros traços do estilo gótico, como a predileção por datas comemorativas especiais, o estabelecimento de algumas relações incestuosas, consideradas estranhas, como é o caso do suntuoso conto A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe, numa leitura que me permitiu, como professor de literatura e cinéfilo, associações com filmes e elementos não presentes no artigo do autor, por exemplo, a aproximação destas questões com Os Anfitriões, slasher tardio de 1987, bem como a semelhança do humano com o sobrenatural e a reduplicação de indivíduos, do clássico O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, salvaguardas as devidas proporções, com Ghostface, uma figura humana trajada pelo icônico figurino que transforma em um ser aniquilador potencialmente poderoso, duplicado em personagens distintos em cada filme da franquia.
Ao acionar alguns textos da teoria literária, Cláudio Zanini também me permitiu lembrar o ensaio A Filosofia da Composição, do renomado Edgar Allan Poe, texto onde o romântico gótico diz que a morte de uma bela mulher era o “tópico mais poético do mundo”, algo que observamos ressoar em Alfred Hitchcock, cineasta que se deliciou com a morte de Marion Crane no chuveiro, na concepção do proto-slasher Psicose, de 1960, além de ter afirmado, durante a produção de Os Pássaros, que era preciso “torturar as mulheres, pois problema de hoje em dia era que nós não as torturamos suficientemente” (grifo meu), linha de pensamento que se desdobra no italiano Dario Argento, um dos mestres do giallo, realizador que certa vez afirmou o seguinte: “se elas possuem um belo roso e silhueta, eu prefiro muito mais vê-las sendo assassinadas do que uma garota feia ou um homem”. Desta maneira, da escrita gótica do século XIX aos filmes contemporâneos, o estilo se desdobra e se transforma, mas não pede as suas estruturas mais básicas, cuidadosamente adaptadas, propositadamente ou não, ao subgênero slasher.
Conjugação de valores de ordem estética e filosófica envolvendo questões políticas, sociais e culturais da história da arte ocidental, o gótico se manifestou na literatura em narrativas que seguiram a linha de O Castelo de Otranto, de Horace Walpole, de 1764, publicação britânica considerada um dos pontos de partida do estilo no campo literário, com histórias permeadas por devassidão sexual, imaginário sobrenatural, segredos do passado, medo e loucura, atmosfera de aflição, mistério e terror, histórias dominadas por clérigos maléficos em suas abadias decadentes, tendo ainda a presença de maldições e profecias como símbolos recorrentes. Em associação com o subgênero slasher, algumas de suas características permitiram a tradução de suas peculiaridades para a linguagem do cinema, como é o caso do termo locus horrendus e a indeterminação do rosto da figura que representa o perigo, dois pontos constantemente presentes na concepção de narrativas deste segmento, repleto de paisagens com cemitérios, igrejas, florestas e ruínas, ambientes propícios para o estabelecimento da sensação de medo necessária para que este formato narrativo funcione conforme as expectativas dos receptores.
A Máscara Reflete o Medo dos Personagens Diante da Morte?
A máscara é um objeto bastante significativo em nossa cultura, elemento com diversas cargas de significação ao longo da história da evolução humana. Adereço utilizado para esconder a identidade, na busca por disfarce ou apego aos pontos determinados em rituais lúdicos, artísticos ou religiosos, a máscara, trazida para o campo de produção do slasher, estabelece a indeterminação do rosto do assassino, figura que surge em cena para aniquilar a vida de jovens incautos, a gravitar numa redoma de horror e morte repleta de segredos do passado e sede de vingança. Um dos objetos mais simbólicos das artes cênicas, a máscara pode ser, conforme estudos diversos sobre o assunto, uma referência ao processo de representação da cabeça de animais em rituais primitivos, ecoantes na posteridade. O seu uso estabelece uma instância de poder para quem a usa, mesmo que seja algo de ordem simbólica. No slasher, o nosso foco por aqui, cria uma identidade apavorante e própria para a figura ficcional na posição de antagonista, nalgumas vezes, retirada pela protagonista, colocando o assassino num lugar de vulnerabilidade, afinal, é neste objeto que vemos depositada, muitas vezes, a força do vilão da trama.
Acredita-se que a origem da palavra máscara venha do latim, de mascus/masca, significado de “fantasma”, versão que possui muita coerência em sua concepção. Ao longo da história, muitos povos sul-americanos utilizavam máscara que simbolizavam animais diversos da natureza, algo que pode ser comprovado nas figuras rupestres, em registros que demonstravam como tal objeto servia para catalisar a presença do espirito metafórico das entidades que eram representadas. Gregos, romanos, os rituais xamânicos, a cultura esquimós, festejos com máscaras de dois lados (com a revelação peculiar de sua surpreendente faceta oculta). No Egito Antigo, tínhamos as máscaras funerárias, pomposas e, ao mesmo tempo assustadoras, como é o caso de muitos destes objetos aplicados na dinâmica das narrativas slashers, com função de criar uma identidade visual marcante para a narrativa, como é o caso de Pânico, A Morte Convida Para Dançar, Sexta-Feira 13 e Halloween, bem como noutros casos, aqueles que podemos considerar risíveis e desconcertados, como O Trem do Terror. Ao dificultar o acesso ao rosto do assassino, a máscara permite a criação de mistério e aumento da carga exponencial do medo.
Nestes filmes, os instrumentos para cometer os assassinatos são prévios ao advento da tecnologia contemporânea, isto é, há a predominância das armas brancas: machados, facas, martelos, agulhas, dentre outros instrumentos que provocam a dor com maior intensidade e permitem ao algoz ser mais incisivo em seu ato de violência. Tais aparatos funcionam como uma representação simbólica da imposição fálica diante do corpo das vítimas, o que reforça a postura de Michael Myers como um monstro dentro do mesmo esquema operacional desde os primórdios de seus crimes, ou seja, por meio de atitudes primitivas e animalescas, numa construção de estilo que também me fez resgatar a leitura de Os Anormais, texto onde o filósofo Michel Foucault alega que em nossa cultura há três figuras que habitam o terreno da anormalidade, em linhas gerais, o monstro humano, a criança masturbadora e o indivíduo a ser corrigido. Aqui, nos interessa pensar no monstro humano, alguém que exerce com domínio a criminalidade pura, com características muito próximas aos personagens que gravitam em nosso cotidiano, sendo um anormal seria um aberrante, não sendo apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma retumbante deturpação das leis da natureza, alguém que combina traços do impossível com o proibido.
Os anormais maníacos Jason, Freddy, Michael, Candyman, Pinhead, dentre outros, habitam esta linha de raciocínio quando aplicamos, também salvaguardadas as devidas proporções, este suporte filosófico ao slasher, subgênero que nos permite ver retratado o horror exacerbado através do retorno fantasmagórico de questões do passado por meio de um antagonista monstruosa. Tal como as narrativas góticas, o slasher é um modelo narrativo que ressalta as trevas visuais, metafóricas e alegóricas de suas histórias. Nestas tramas, temos o estabelecimento de uma atmosfera de isolamento, condições climáticas atrozes, violência brutal, a vantagem do ponto de vista dos assassinos, mascarados ou não, diante de suas vítimas, bem como o padrão da nudez feminina, um suposto atrativo para o público masculino. Para ampliar o feixe de associações entre o subgênero e o gótico, oferto ao leitor um breve passeio pela concepção do tempo e do espaço destas narrativas visualmente tenebrosas e carregadas de um pesado clima de medo, pânico e morte: o locus horrendus, uma antítese do locus amoenus.
O Tempo e o Espaço no Slasher: O Locus Horrendus em detrimento do Locus Amoenus
Na literatura, algumas de suas características permitiram a tradução de suas peculiaridades no cinema, como é o caso do termo locus horrendus, um dos traços góticos no slasher, além da indeterminação do rosto da figura que representa a morte nestas histórias de terror. Em linhas gerais, o termo representa paisagens decadentes, lúgubres, isolados e inquietantes, além de sombrios. Nesta concepção, a natureza pode expressar o seu lado selvagem, de tom irreal e de sonho. Há cavernas, grutas, com histórias que geralmente se passam em atmosferas que nos remetem aos traços do outono e inverno, com filtros, enquadramentos e recursos de iluminação da direção de fotografia trabalhados para a criação de um clima sombrio. Ilustrações: a geografia física de Contagem de Cadáveres e Pouco Antes do Amanhecer, as habitações tenebrosas em meio ao espaço urbano de O Mistério de Candyman, o clima gélido e trevoso de Presos no Gelo, o estabelecimento da noite sombria de Você é o Próximo, a colina com uma casa semelhante aos castelos assombrosos de Psicose, a diversão num espaço aterrorizante de Parque do Inferno, os lugares inóspitos onde as vítimas de Jogos Mortais são encarceradas, a mina de Dia dos Namorados Macabro, os retiros para férias de Acampamento Sinistro e Chamas da Morte, o hotel quase abandonado na baixa estação de Eu Ainda Sei O Que Vocês Fizeram No Verão Passado, dentre tantos outros exemplares do slasher e suas variações.
A presença da chuva, fenômeno meteorológico que escurece mais as paisagens diurnas e tornam as noites ainda mais dificultosas para quem precisa se deslocar para o lado de fora também marcam bastante presença no bojo destas narrativas de terror com a morte iminente para os personagens. Ademais, O locus horrendus é uma oposição do locus amoenus, referido no Renascimento, em parte da Literatura Medieval e nalguns momentos do Arcadismo. São cenários abundantes de beleza, idílicos, com canto de pássaros, elementos sensoriais em consonância com o cromatismo das paisagens, ambientes bucólicos que podem ser contemplados em Folhas Caídas, de Almeida Garret, coletânea de poemas do século XIX que expressam os sentimentos do eu-lírico diante de sua amada, ou no soneto A Formosura Desta Serra, de Camões, bem como nos sonetos de Bocage e nas passagens de Petrônio e Virgílio, adornadas por forte bucolismo. Aproximando ao slasher, podemos perceber que alguns filmes apostam no estabelecimento inicial desta modalidade de representação, o locus amoenus, para logo depois, fazer valer o horror lúgubre e sombrio do locus horrendus, como é o emblemático caso de Sexta-Feira 13, de 1980, dirigido por Sean S. Cunningham. Na produção, os monitores do acampamento desfrutam das belezas de um lugar visualmente encantador, para descobrir, no cair da noite, que a morte espreita e que não há garantia de sobrevivência para nenhum dos envolvidos na trama.
E você, caro leitor, conhece mais algum traço gótico presente no slasher?