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Entenda Melhor | The Woody Allen Experience

por Leonardo Campos
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Instrumento de sopro com palhetas simples e chaves mecânicas semelhantes aos mecanismos da flauta: saxofone. Instrumento de teclado com cordas percussivas que vibra numa caixa de ressonância: piano. Instrumento de sopro da família dos metais, também presente na música clássica: o trompete. Som mais grave da mesma família dos trompetes, conhecido por seu timbre suave e ágil. Do que estamos falando? Da tuba. E o que dizer dos instrumentos de corda friccionadas por um arco, tocado também com os dedos, a depender do estilo? Ah, sim, o contrabaixo. Instrumento de sopro, da família dos metais, mais grave que o trompete e mais agudo que a tuba: o trombone. Eis uma apresentação panorâmica dos instrumentos musicais que fazem parte do conjunto responsável pelo jazz, estilo musical dominante ao longo da cuidadosa coleção The Woody Allen Experience, seis discos em CD que resumem a trilha sonora na carreira do cineasta em questão, responsável por obras-primas, tais como o trágico Ponto Final: Match Point, os melancólicos e metalinguísticos A Rosa Púrpura do Cairo e A Era do Rádio, dentre outros.

Ao adentramos nessa experiência com 14 faixas em cada disco, somos inseridos num universo musical riquíssimo, originado na cultura negra de New Orleans, nos meandros do século XIX, explosiva na cultura ao longo das décadas de 1920 e 1950, numa transformação que se ramificou tal como um rizoma por outros estilos e culturas. Curioso é observar a presença dos afroamericanos nos filmes do diretor, por meio da música, mas a ausência dos mesmos como parte das narrativas de suas produções, pois dos primeiros casos aos mais recentes, não lembro de nenhum personagem relevante em seu cinema que seja negro. Foi algo que surgiu como uma digressão durante as longas horas de audição desta coletânea, mas algo que deve ser problematizado em outro texto sobre o cineasta. Aqui, vamos versar sobre música em seu estado mais puro, combinado? Em The Woody Allen Experience, o foco é o jazz de New Orleans como mencionado.

De origem incerta, sem espaço para definições muito exatas, entender o jazz é como aceitar algumas ideias de Michel Foucault ao tratar da “origem” em determinados trechos do elucidativo Microfísica do Poder, isto é, a despreocupação em encontrar o marco zero das coisas. É a busca por uma análise que leve em consideração um mapeamento mínimo para compreensão de fenômenos, sem achar que seja possível encontrar um ponto de partida exato para registro. O jazz, por sinal, pode ser pensado como um fenômeno. Foi a manifestação da musicalidade propiciada pela diáspora africana, outro rizoma de uma cultura devastada, um paradoxo entre o belo (a música) e o grotesco (a escravidão) no bojo dos espaços geográficos que aderiram aos negros diaspóricos. Neste caso, New Orleans, cidade com porto marítimo, serviu de caldeirão para a fusão entre elementos dos afroamericanos e as ressonâncias da cultura europeia. Essa base formativa para o desenvolvimento do jazz é o ponto de apropriação das trilhas do cineasta Woody Allen.

A relação de Woody Allen com a música não é profissionalmente profunda como a abordagem cinematográfica, mas o diretor tem uma paixão enorme pelas composições que marcaram a história de sua vida e, por conseguinte, seus filmes. Em seu cotidiano, há uma tradição de se apresentar durante as segundas-feiras no Michael’s Pub, em Nova Iorque, local onde conheceu Eddy David e juntos, formaram uma parceria de longa data, ambos apaixonados por jazz e suas ramificações, em especial, o blues. É a tradição de New Orleans entre 1920 e 1950 que preenchem a sua paixão por música. Inclusive, a sua postura debochada e refratárias às afetividades hollywoodianas foi o que lhe permitiu escolher a música na cerimônia do Oscar de 1978, quando Noivo Neurótico, Noiva Nervosa foi premiado como Melhor Filme de 1977. O evento, na época, ocorria durante os dias de segunda, algo que impediu o cineasta de participar, pois preferia praticar clarineta com os amigos.

A sua relação com a música nas trilhas sonoras, como mencionado, está mais voltada para a seleção de faixas em álbuns de sua coleção gigantesca, formada por clássicos e releituras contemporâneas de seus ícones prediletos. Salvaguardas algumas raras exceções, tais como a textura percussiva de Phillip Glass para O Sonho de Cassandra, a maioria das canções em seus filmes é formada de obras largamente conhecidas da era de surgimento e consolidação do jazz na cultura, uma modalidade constantemente apropriada pela produção musical branca. Assim, para quem se dedicar ao mergulho no conteúdo vasto proposto em The Woody Allen Experience, o retorno nunca mais será o mesmo, pois é pouco possível que 84 faixas dispostas nos seis discos da coleção passem incólumes por seus corações e audições sensíveis ao que é sublime.

No disco 01, temos “All Of Me”, de Billie Holiday, uma faixa de jazz composta por Gerald Marks e Seymour Simons, em 1931. Do desespero das suas primeiras partes ao júbilo melódico final, a canção foi gravada por diversos artistas do ramo e encontrou na voz de Holiday o seu maior ancoradouro. “Mack The Knife”, de Louis Armstrong, composta por Kurt Weill para a Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht, em 1928, é um sucesso que saiu da Alemanha na época e ganhou a popularidade no bojo de produção estadunidense, com gravações de Frank Sinatra e Ella Fitzgerald. A versão de Armstrong é de 1956. O primeiro bloco ainda traz Begin The Beguine, de Frank Sinatra, canção popular de Cole Porter, regravada em 1956. “I’m in The Mood for Love”, na voz melancólica de Nat King Cole, expõe uma versão aprimorada da composição de Jimmy McHugh e Dorothy Fields, também popular, principalmente por tocar constantemente nas rádios.

Conhecida por dominar, em sua carreira de cantora e compositora, o jazz, blues e R&B, Billie Holiday impõe a sua tessitura grave, com registro cavernoso de um timbre robusto para outras canções da coleção, tal como Frank Sinatra, cantor, produtor e ator que trafegou pelo jazz, swing, blues, pop clássico e easy listening, este último, contagiante com sua mescla de flautas, piano, teclados e violino. Louis Armstrong, solista famoso, traz com o seu trompete e domínio do dixieland, um subgênero do jazz de New Orleans, a chamada “personificação do jazz” para o conjunto, alcunha para a sua presença firme na seara deste estilo musical. Dominante na voz e no piano, Nat King Cole empresta a sua voz trabalhada numa veia religiosa, oriunda de suas bases familiares, para dar um toque único ao primeiro bloco de The Woody Allen Experience. No primeiro disco também podemos encontrar Ella Fitzgerald e Nina Simone, dois ícones do segmento em questão.

Billie Holiday, Nina Simone, Louis Armstrong, Miles Davis, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Nat King Cole e Erroll Garner: poderosas vozes apropriadas pelo cinema de Woody Allen.

Além de cantora, Fitzgerald era pianista, compositora e versátil ao aderir ao som da música soul, folk, gospel, etc. Simone, por sua vez, é conhecida por sua tonalidade pura de meio-soprano, dramática e impecável diante da musicalidade oriundos dos instrumentos de sopro. São vozes que ecoam nos estilos tangentes empregados no disco 02. “Out of Nowhere”, de Miles Davis, permite ao álbum ter a presença de um dos trompetistas mais influentes do século XX, conhecido por passear por várias fases do jazz. “Misty”, de Sarah Vaughan, composta pelo pianista Errol Carrol, apresenta aos nossos ouvidos uma voz firme, de alguém com larga experiência no rádio. Violinos e piano acompanham a faixa que serviu de inspiração para Perversa Paixão, o filme de mulher fatal dirigido por Clint Eastwood nos anos 1970. Moonlight Serenade e Stompin’ at The Savoy, de Benny Goodman e Glenn Miller, respectivamente, dão uma forma ainda mais pomposa ao segundo disco.

Na primeira, Miller se envolve profundamente na canção composta e gravada em 1939. Trombonista, arranjador e compositor, ele é um dos poucos envolvidos na coletânea que possui experiência musical acadêmica. No entanto, a sua interação profissional é popular. Na segunda, Goodman, o clarinetista e líder da banda de jazz King of Swing, profundamente influenciado por suas raízes jazzísticas, entrega ao disco uma canção composta em 1933, assinada por Edgar Sampson. São artistas que anuncia os embalos musicais do terceiro disco. “Canal Street Blues”, de King Olivier, um tocador de corneta de jazz e notável compositor, é uma das faixas emblemáticas, acompanhada de “I I’ll See You in My Dreams”, de Django Reinhardt, “It Had To Be You”, de Marion Harris, “Let’s Misbehave”, de Irving Aaronson, dentre outras. São faixas que tangenciam estilos e vozes presentes nos discos seguintes.

Django Reinhardt, famoso por adotar o gipsy jazz em seu estilo de produção, é a voz que assume a faixa regravada de uma canção popular de 1924, assinada por Iham Jones e Gus Kahn, dupla também responsável pela composição da faixa interpretada por Marion Harris, cantora em alta na década de 1920, conhecida por ser a primeira mulher branca a cantar jazz e blues. Irving Aaronson assume a regravação da música de Cole Porter, de 1927. “In The Mood”, do trio feminino Andrew Sisters, é um dos destaques do disco 04. A faixa composta por Jenny Dale e Joe Garland, em 1952, é interpretada pelo contralto, soprano e mezzo-soprano de La Verne Sophie, Maxene Angelyn e Patricia M. Andrews, respectivamente. É uma canção associada ao boogie-woogie, estilo de blues sincopado com a presença firme da mãe esquerda no piano, acompanhado de violão, instrumentos de sopro e, no caso desta composição, traços do country e do gospel.

“Bewitched”, de Bill Snyder, e “Dancing in The Dark”, de Errol Garner, promovem ao quarto disco a presença de notáveis compositores e pianistas, sendo o caso de Snyder uma regravação de Lorenzo Hart, realizada em 1950. “You Are Too Beautiful”, de George Olsen, é também uma retomada ao que Hart compôs, em 1932, juntamente com Richard Rodgers. Olsen, conhecido por tocar bateria em trabalhos na Universidade de Michigan, tornou-se um cantor conhecido por seu destaque ao swing na interpretação das canções que lhe era destinadas. “Ain’t We Got Fun”, de Billy Jones, regravação da canção popular de 1921, assinada por Richard A. Whiting, Gus Kahn e Raymond B. Egan, é também uma faixa voltada aos embalados da dança, neste caso, o foxtrote e sua suave performance progressiva com movimentos longos e contínuos, parecidos com a valsa, acompanhados de repetições de um refrão com frases seguidas de quatro notas empolgantes.

Tuba, saxofone, trompete e piano: instrumentos basilares para execução jazzística 

O disco 05 é um festival de músicas igualmente emblemáticas. “’All of You”, de Connie Russell, traz para o conjunto a voz inconfundível da cantora e atriz conhecida por sua experiência na CBS com rádio. A faixa que demarca a sua presença é uma regravação de Cole Porter, de 1954, uma das mais retomadas do artista amado e idolatrado por Woody Allen. “Paper Doll”, do grupo The Mills Brothers, traz para os ouvintes as vozes do quarteto de jazz e pop, afroamericanos com programa radiofônico próprio na época. De origem musical religiosa, as vozes em questão assumem a canção composta por Johhny S. Black em 1915. Ademais, temos ainda “Remember Pearl Harbor”, um slogan da Segunda Guerra Mundial, espécie de reforço para as memórias ataque japonês à base estadunidense do título. Gravada por vozes como a de Frank Sinatra, tornou-se canção também por meio da gravação de Carson J. Robinson, o mestre dos assobios, voz, violão e gaita.

O sexto e último disco da coletânea traz, dentre os destaques, Doris Day, Al Jonson, Ray Heatherton, Duke Wellington, Kenny Drew Trio, etc. Em “That Old Feeling”, canção de Sanny Fair e Lew Brown, de 1937, Doris Day, a cantora e atriz do cinema hollywoodiano clássico, também experiente no rádio, emprega a sua voz para interpretar uma faixa bastante popular, tal como “I Could Write a Book”, de Kenny Drew Trio, composta por Lorenz Hart, conhecida por seu uso no musical Pal Joey, regravada pelo grupo em questão. “Where Or When”, de Ray Heatherton, cantor estadunidense com currículo também em espetáculos teatrais e televisivos, é outra faixa de 1937 que se encontra presente nesta The Woody Allen Experience. “I’m Sitting On Top of The World”, de Al Jonson, um dos artistas mais bem-pago e glamourosos da década de 1920, emprega a sua voz de cantor extrovertido e impetuoso para a canção que dá ao álbum “algo a mais”.

Dentre outros destaques, para finalizar a jornada analítica do sexto disco, temos “Take The Train”, de Duke Ellington, compositor e pianista que foi uma das grandes influências para o jazz ao longo das décadas de 1920 a 1960. Ele traz o improviso, a parceria e o clima de um ritmo musical predominante no que chamamos de cinema de Woody Allen, um diretor com estilo autoral, peculiar em suas jornadas para a seleção do que será a parte auditiva na condução da visualidade de suas imagens, sempre dirigidas com esmero na fotografia e no design de produção, setores que transformam em cinema os conflitos e personagens de um realizador que além de ter demonstrado capacidade de atuar, também conseguiu construir um amplo universo de figuras dramáticas dirigidas com base em seus próprios textos. Woody Allen, com sua postura retrô, vai ao cenário musical dos anos de ouro da cultura jazzística para nos fazer mergulhar numa experiência única, disposta nas 84 faixas desta coleção eficiente das trilhas que compõem a cinematográfica brilhante deste cineasta talentoso na gerência da tragédia e da comédia.

De volta ao jazz e suas origens, algo que acredito ser necessário para compreensão da musicalidade entoada nos seis discos que compõem a The Woody Allen Experience, o que sabemos é a característica improvisadora como elemento “essencial” do jazz, um estilo musical democrático, de interação e colaboração. Em sua execução, a base é o padrão pergunta e resposta, em interações que podem ser verbais ou não-verbais, diferente da música clássica, conhecida por seguir fielmente a interpretação de seus “roteiros” (composições). No jazz, a interpretação é muito peculiar, pois tudo depende do momento e de quem interage no espetáculo. Ramificado, o jazz traz em suas bases a relação entre a musicalidade africana e os instrumentos europeus. Para alguns historiadores, o seu senso de improvisação é ideológico, pois funciona como protesto social contra a opressão política da classe dominante que se apropriou do estilo em questão.

Entretenimento para os trabalhadores pobres de New Orleans, parte integrante do porto que se transformava numa extensa cidade, a história do jazz é organizada por Eric Hobsbawn em partes didáticas para quem precisa de uma leitura introdutória. A sua pré-história está entre 1900 e 1917, quando se tornou manifestação da cultura negra em todo o país, seguido do “tempo antigo”, de 1917 a 1929, era da expansão, possível de ser observada no “tempo médio”, de 1929 a 1941, com a conquista dos públicos minoritários em alguns pontos da Europa e dos Estados Unidos e o “tempo moderno”, desde 1941, era da internacionalização do jazz e associação com outras linguagens. Da reunião espontânea de músicos ao longo da after hours, período de entretenimento após longas horas da jornada de trabalho “neoescrava” da cultura estadunidense da época, o jazz reúne algumas características comuns, reconhecidas como a súmula de sua estrutura estilística.

Em A História Social do Jazz, publicação citada anteriormente apenas pelo nome do autor, o historiador Eric Hobsbawn, somos informados que compõem a embalagem do jazz, o ritmo e a peculiaridade das escalas originárias da África, os instrumentos próprios, bem como seus vocais específicos, acompanhados de poucas cordas e muito metal e madeira. Com formas musicais criadas por repertórios específicos, o jazz é uma música de executantes, não focada demasiadamente em seus compositores. É preciso domínio dos instrumentos para a improvisação característica do gênero. Originado do jazz, o rock evoluiu com o surgimento de novas possibilidades tecnológicos no campo da música. Com variações, o jazz permaneceu mais adjunto aos seus elementos de raiz. E é nessa permanência pela originalidade e por um estilo próprio que Woody Allen se apaixonou e trouxe as mais variadas composições do ramo para a sua cinematográfica vasta de personagens embalados pelo ritmo contagiante do jazz.

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