Assim como o gênero musical analisado nesta breve reflexão, Moby Dick foi um romance que quebrou padrões. Conforme a crítica literária especializada, a obra-prima de Herman Melville foi um dos textos responsáveis por antecipar os ideais modernistas no âmbito da literatura. Não compreendido pelo público leitor da época, haja vista a sua complexidade, o romance vendeu apenas 3 mil cópias ao longo da vida do escritor que empregou, em sua linguagem, elementos de ambuiguidade que eram incomuns para a época. Moby Dick traz, em seu desenvolvimento, traços do artigo científico, de ensaios, textos enciclopédicos sobre as baleias e peculiaridades de caça, bem como uma colagem de técnicas que a crítica, durante do século XX, apontou como perspectivas modernistas. Resultado de muitas experiências literárias em sua formulação, o romance traz foco no individuo, fragmentação e desconfiança nas instituições, algo que o torna um antecipador do discurso moderno visto em escritores canônicos, tais como William Faulkner, James Joyce e TS Eliot. Como um vanguardista, Melville pagou alto preço por sua ousadia.
No romance, o mar é um espaço utilizado para versar sobre os nossos conflitos interiores. O monstro, influenciador de nossas decisões, é catalisador de uma tragédia sem precedentes, reforçada por um homem de alma abissal, profunda, conturbada e misteriosa com o mar. A história, como sabemos, é a saga do capitão Ahab em busca da baleia cachalote branca que nomeia o romance. Numa ocasião anterior ao que é contado por Ismael, único sobrevivente da trajetória do Pequod, o personagem foi atacado pelo cetáceo e perdeu a sua perna. Agora, tendo a vingança como combustível, ele deseja frear a fúria de Moby Dick e aniquilar o animal, único propósito de sua vida enquanto o romance é contado por meio de diversos tipos narrativos, um fenômeno literário que não teve o seu reconhecimento quando publicado, mas alcançou o status de clássico no século XX, ainda hoje inspirando traduções em diversos suportes, dentre eles, o cinema, a televisão, histórias em quadrinhos, pinturas e, claro, a música, nosso foco por aqui.
Para quem é admirador do rock, o nome Led Zeppelin não soa estranho de forma alguma, ao contrário, é uma referência básica mesmo para aqueles interessados em outras vertentes deste profícuo gênero da música. Integrante do segundo álbum de estúdio da banda de rock inglesa, lançado em 1969, o famoso solo instrumental traz Jimmy Page em seus créditos, guitarrista e principal compositor da banda, tendo na engenharia de som, a assinatura de Eddie Kramer. Com variações de tambores e instrumentos percussivos, tendo nas baquetas um destaque bastante perceptível, esta canção era parte regular do show. Pat’s Delight e Over The Top eram os seus títulos alternativos, a faixa se ajusta no que conhecemos por blue-rock, isto é, musicalidade estruturada com base em instrumentos de baixo, teclado, guitarra elétrica e gaita. Há associações também com o hard-rock, subgênero que insere a distorção dos sons das guitarras, bateria com ritmo de condução, bumbo forte e com vocais agressivos, neste caso, ausentes, por se tratar de uma paisagem musical instrumental. Segundo relatos de Jimmy Page, este solo foi criado enquanto improvisava num estúdio com o baterista John Bonham. Não que seja preciso recorrer a isto, haja vista uma breve pesquisa no Google para tal confirmação, mas esta criação musical é uma das definições do potencial do romance de Herman Melville, publicado em 1851, mas ainda ressonante nas malhas da produção cultural do século XX, bem como na atualidade. Como no livro ponto de partida, temos aqui um solo que começa hesitante e parte para um clímax potencialmente crescente, um marco na história da banda e do gênero musical em questão.
Outra busca, mais profundamente, por desdobrar os elementos de Moby Dick em outras linguagens, veio da banda Mastodon. Conhecida por sua sonoridade que flerta com o heavy metal, ressonância do groove metal, rock progressivo, hardcore punk, dentre outros subgêneros, a banda que se lançou no terreno do rock em 1999 concebeu a sua referência ao clássico em 2004, num álbum conceitual que traduziu, da literatura para a música, os eventos filosóficos do romance que reflete, dentre tantas coisas, a batalha do homem contra a natureza. Com riffs pesados, interlúdios longos e apreço ao rock progressivo, o álbum em questão traz, ao longo de seus 46 minutos, singles como I Am Ahab, Seabeast, Iron Trusk, Blood Thunder, dentre outras conexões com a saga do capitão Ahab em busca do seu nêmesis, carregando em sua fúria toda a tripulação. Considerada como a produção que expõe o elemento “água”, parte da tetralogia inerente aos quatro primeiros álbuns da banda, Leviathan emula coerentemente para a linguagem musical, a batalha do homem contra si mesmo, a aceitação da morte, além da guerra travada contra à baleia cachalote branca e enigmática, responsável por selar o destino do capitão do Pequod. Tudo isso, embalado em vocais estáticos e hipnóticos em suas melodias.
Na primeira faixa, Blood and Thunder, temos o início da viagem musical, já embasada na intertextualidade ao trazer para a sonoridade o personagem Stubb, um dos imediatos da embarcação na narrativa literária. O fascínio que a água exerce na humanidade estrutura faixa seguinte, I Am Ahab, antecipação de Seabeast, canção com vozes guturais, guitarras distorcidas e instrumentos em tom menor, a mais amena do álbum, composição que menciona o não civilizado Queequeg, bem como resgata diálogos presentes no romance. A continuidade vem com Island, faixa com riffs dissonantes, carregado em fuzz, com sonoridade suja, seguida de Iron Tusk, embasada em graves pesados e tom sombrio, faixa que expõe sabiamente pela linguagem musical, o breve encontro dos personagens com a bestialidade da misteriosa baleia. Megalodon traz dedilhar de suspense e bateria caótica para transmitir o desconforto e o tom tortuoso da perigosa navegação no Pequod. Naked Burn estabelece um interessante esquema intertextual com a onipotência das forças da natureza, juntamente com algumas conexões bíblicas. Aqua Dementia, penúltima faixa, considerada a síntese do álbum, delineia o primor técnico do álbum, num processo de audição que nos faz sentir a tensão entre homem e natureza, bem como os perigos da ambição desmedida da humanidade, um dos temas proeminentes do romance. Por fim, agitada como as caudalosas ondas do mar, temos Hearts Alive, canção que ao longo dos seus 13 minutos, altera paisagens “limpas” com trechos mais pesados, selando esta produção musical que tal como o solo de Led Zeppelin, reforça o potencial rizomático de Moby Dick, um romance de 1851 que se ramificou pela cultura do século seguinte e ainda no contemporâneo, continua sendo instigante, ponto de partida para mais traduções, referências e estudos.