As sereias são monstros híbridos, isto é, surgem da combinação entre traços humanos e animalescos no desenvolvimento de uma única forma. Curiosamente, elas combinam o que é familiar e o que é diferente, o próprio e o outro, numa forma única de ser. E assim assustam. Ou encantam, a depender da perspectiva. Elas são figuras que se aproximam do ideal de espanto, semelhante ao conteúdo simbólico das Górgonas, Harpias, Esfinges, etc. Desde a Antiguidade, os estudiosos da mitologia traçaram especulações sobre a origem e a forma das sereias. Em determinado período, eram jovens companheiras de Perséfone. Após o sequestro desta figura mitológica, o seu pai as castigou pela inabilidade no resgate, transformando-as nas criaturas aladas que conhecemos. Afrodite também está nas bases do mito. A deusa supostamente teria extraído a beleza destas criaturas pelo fato delas desprezarem os prazeres da vida amorosa. As sereias estão até mesmo no mito dos argonautas. Na história, Orfeu estabelece um duelo com as sereias e apenas um dos navegadores se jogar ao mar para o encontro fatídico. Na Odisseia, elas representavam o desejo de saber. O erotismo estava lá, mas sem muito impacto. A carga sensual e sedutora iria se ampliar mais adiante na cultura, indo para o lado perigoso e mortal do mito, transformado na posteridade, a ecoar no Filme Noir, por exemplo, no século XX.
Outro detalhe: as sereias geralmente são tidas como imagens alegóricas das cortesãs e prostitutas que ameaçavam os homens de boa família. O cristianismo as interpretou depois como figuras que seduziam visualmente e se tornaram a representação cabal do que era considerado pecaminoso. Já na era da pintura pós-romântica, os artistas trataram as sereias como criaturas agressivas, monstros obscenos que precisavam ser contidos. Assim, num misto de monstruosidade e sedução, elas estiveram constantemente presentes ao longo da história do cinema. No Primeiro Cinema (A Sereia, de Mélies), no cinema clássico hollywoodiano (Ele e a Sereia), nas comédias românticas (Splash – Uma Sereia em Minha Vida), na ficção de horror (A Criatura da Destruição), no cinema infanto-juvenil (Aquamarine), bem como noutros gêneros narrativos. Assim, antes de adentrarmos nesta saga com as figuras mitológicas no cinema e na televisão, torna-se importante ressaltar aos leitores: esse texto não tem a pretensão de esgotar, nem poderia, o panorama de filmes sobre as sereias no cinema. O que temos aqui é um recorte, já bastante panorâmico. Os filmes e séries contemplados são aqueles conferidos durante o I Encontro de Mitologia e Narrativas Ficcionais, promovido numa instituição universitária situada em Salvador, em especial, no curso de Cinema e Vídeo. São produções assistidas, analisadas, selecionadas, categorizadas e trazidas para cá, no intuito de promover um diálogo com esta abordagem temática clássica, mas sempre atual e retomada pela cultura do entretenimento.
Sereias no Cinema: Panorama de Aventuras Marinhas e Narrativas Alegóricas
Do cinema clássico ao advento das comédias românticas dos anos 1980 e 1990, as sereias passearam por diversas narrativas, em sua maioria, básicas, apesar de interessantes, materiais dramáticos medianos com grande apelo para o entretenimento e menor preocupação com reflexões e coisas do tipo. Ele e a Sereia, dirigido por Irving Pichel, é um deles. A comédia romântica retrata um homem que atravessa a sua crise de meia-idade e resolve viajar com a esposa para férias no Caribe. O que ele não esperava lá era encontrar uma sereia e se apaixonar. Cheio de trapalhadas, o filme é a típica comédia clássica, leve, com reflexões ligeiras sobre identidade, aceitação e companheirismo. O filme foi lançado em 1948, mesmo ano de Miranda, produção britânica baseada numa peça homônima assinada por Peter Blackmore. Comandado por Ken Annakin, a história acompanha a divertida saga do Dr. Paul Martin, em férias na Cornualha, momento de diletantismo que se transforma numa deliciosa onda de desafios quando encontra uma sereia que o aprisiona numa caverna subaquática e garante a sua libertação apenas com uma condição: ser levada para conhecer Londres e usufruir do cosmopolitismo e dos luxos da cidade. 1948 foi um ano propício para tais figuras mitológicas e Tarzan e as Sereias, escrito e dirigido por Robert Florey. Razoável e bem a cara de sua época, o filme nos apresenta Mara, jovem de uma tribo de pescadores de pérolas que é obrigada a se casar com um mercador, algo que vai contra a sua vontade. Para resolver o problema, ela conta com Jane e Tarzan para mudar os rumos de sua vida.
Outro destaque próximo é Mad About Men, de 1954, escrito por Peter Blackmore, também responsável pelo texto de Miranda, descrito anteriormente. Na trama de diálogos razoáveis e confusões amorosas tipicamente hollywoodianas, a mesma sereia do filme de 1948 aparece. Desta vez, a professora de ginástica Caroline vai para a Cornualha e lá, conhece Miranda. Elas se aproximam e decidem trocar os seus lugares, numa história cheia de humor e irreverência, apesar de suas limitações dramáticas. Dentre tantas outras narrativas do cinema clássico, temos a aventura As Sereias de Tiburon, lançado em 1962, produção que retrata a vida do biólogo marinho Samuel Jamison (George Rowe), um homem com desejo absurdo de conquistar um tesouro supostamente perdido na ilha que nomeia o filme, Tiburon, local guardado pelas sereias lideradas pela figura mitológica interpretada por Diana Webber. Com direção de fotografia de John Lamb, um renomado especialista em filmagens subaquáticas, o filme é uma divertida, por vezes arrastadas, mas ainda assim curiosa, investida no campo das sereias como personagens de interesse na cultura cinematográfica. A cauda utilizada pelas criaturas marítimas foi produzida pelo mesmo material adotado para a personagem mítica em Ele e a Sereia, comentado anteriormente.
Em 1976, o diretor Karel Kachyňa assumiu A Pequena Ninfa do Mar, guiado pelo roteiro de Ota Hofman, baseado no conto de Hans Christian Andersen, o clássico A Pequena Sereia. Na produção, somos levados para as profundezas do mar, no Palácio Real, espaço onde a pequena Ninfa, uma das formosas princesas do reino, vai casar com o seu pretendente. O presente nupcial, quando divulgado, deixou todo mundo curioso: um navio cheio de ouro, pertencente a um príncipe da superfície. Toda a família e chamada para assistir ao naufrágio da embarcação, mas quando a Ninfa se apaixona pelo dono do seu futuro presente, as coisas ficam mais complicadas. É um filme com alta carga filosófica, cheio de discussões e longe de ser uma trama de entretenimento ligeiro.
Mesmo que não seja um ponto alto da dramaturgia, convenhamos que Splash – Uma Sereia em Minha Vida é um clássico absoluto, não apenas por seu sucesso de público quando lançado, mas por causa das extensivas exibições na televisão aberta brasileira durante os anos 1990 e 2000. Dirigido por Ron Howard, em 1984, o filme apresenta um garoto (Tom Hanks), salvo de um afogamento por uma sereia por quem ele se apaixona perdidamente, depois que a figura mitológica reaparece em sua vida duas décadas após o incidente. Eles precisam driblar vários desafios para conseguir manter um relacionamento. Em 1988, o cineasta Greg Antonacci assinou a direção de Madison – A Sereia, telefilme que é uma continuação pouco conhecida de Splash. Com roteiro de Bruce F. Singer, a trama rasa aborda o casamento abalado do casal depois que os negócios da família não caminham pelo trajeto desejado. O resultado é uma catástrofe e a dupla protagonista segue para Nova Iorque em busca de aventuras. Na mesma década, o Brasil investiu na lenda com a animação musical Mônica e a Sereia do Rio, dirigido por Walter Hugo Khouri e escrito por Arnaldo Galvão e Mário Matoso Neto. Na trama, Mônica e Cebolinha passam por diversas aventuras, sendo o tema da sereia o destaque da produção já envelhecida e um pouco arrastada.
Bonitinho, um pouco vago e menos interessante do que poderia ser é Fishtales, de 2007, dirigido por Alki David e roteirizado por Michael Greenspan, comédia romântica sobre um pai viúvo, Thomas Bradley (Billy Zane), também pesquisador de uma instituição que resolveu cortar a sua bolsa de investigação científica. Para mudar o cenário, ele segue para Septses, uma ilha grega, tendo em vista ficar na casa de um professor e exercer parte de sua análise de dados sobre temas próprios para serem trabalhados na cultura local. Lá, ele conhece Neried (Kelly Brook), uma sereia que só pode assumir a forma humana a noite e como já era de se esperar, se tornará o novo amor do protagonista, seduzido pelos encantos da atraente personagem. Neste mesmo ano, a cineasta russa Anna Melikian escreveu e dirigiu o fantasioso Sereia, trama que retrata a mitologia por meio de alegorias, numa história sobre uma garota dotada que deixa de falar aos seis anos de idade.
Nos meandros do terror, as sereias já estiveram numa quantidade menor de filmes, caso façamos alguma comparação com as comédias românticas e aventuras. Sereia Predadora é um dos casos mais peculiares, pois flerta com as primeiras versões destas criaturas, com asas, muito parecida com o antagonista da divertida franquia Olhos Famintos. Sob a direção de Gregg Bishop, a trama de 2016 nos apresenta um grupo de jovens rapazes em comemoração, numa despedida de solteiro de um deles. Certa noite, numa boate, eles se envolvem em algumas confusões e acabam liberando uma garota aparentemente inocente de uma situação de cárcere, sem sequer imaginarem que ela é uma predadora perigosa e mortal. Um pouco antes, o cineasta Milan Todorovic assumiu o comando de Mamula – A Sereia Assassina, terror de 94 minutos sobre duas jovens turistas estadunidenses que viajam para uma ilha no Mediterrâneo e acabam indo para uma fortaleza militar abandonada, local onde todos acreditam na lenda sobre uma criatura metade mulher, metade peixe, em suma, uma sereia perigosa e mortal. Mais recente, tivemos A Maldição da Sereia, um terror cheio de potencial, mas desperdiçado pela execução mediana. Na trama, dois pescadores tiram uma sereia do mar, um deles morre, ela os ataca, é esquartejada e no final das contas, levada por um cientista para uma louca experiência num hospício.
Ainda no campo do terror, mas não tão explícito enquanto gênero cinematográfico, fora a abordagem do estranho na obra, temos Blue My Mind, lançado em 2007, alegoria fantasiosa para o conturbado período da adolescência, narrativa escrita e dirigida pela cineasta Lisa Bruhman. No enredo, acompanhamos a trajetória confusa que mescla elementos simbólicos e reais para abordar o cotidiano de Mia (Luna Wexdler), uma adolescente que atravessa transformações internas e externas que vão do profundamente metafórico ao apego na seara do numinoso e estranho. Ela muda de cidade e precisa se adaptar ao novo contexto. O problema é que para ser aprovada, a garota adentra numa sequência de fatos que envolvem drogas, sexo aleatório com estranhos, num processo que culmina em sua transformação física que lembra um peixe, seja pela junção dos dedos ou pelo desejo quase insaciável de comer peixes vivos. Não é necessariamente uma história sobre sereias, mas flerta com estranhezas que se aproximam deste universo em alguns momentos.
Como será possível acompanhar nos textos sobre as sereias no cinema, estas figuras da mitologia vão aparecer em diversos momentos da produção cultural nas décadas de 2000 e 2010. Em 2011, elas foram destaque em algumas passagens do divertido Piratas do Caribe – Navegando em Águas Misteriosas, quarta incursão na franquia protagonizada por Johnny Depp. No filme, as sereias são associadas aos lendários relatos sobre a Fonte da Juventude. Segundo a tal lenda, as lágrimas de uma sereia são raras, por isso, devem ser colhidas para a realização de um ritual que envolve o aprisionamento de uma delas para colocar em um dos cálices presentes no tal local. As sereias desta produção, deslumbrantes, cobertas de escamas e presas que reforçam a sua monstruosidade natural, alimentam-se de homens e possuem força sobre-humana, tendo até mesmo potencial para naufragar navios. Criadas por Ben Snow, supervisor dos efeitos visuais do filme, elas ganharam bastante apoio do CGI, mas no geral, a concepção buscou investir em atrizes, dublês e muitos treinamentos com nado sincronizado, tendo em vista a junção do real com as possibilidades do digital, num resultado muito interessante visualmente.
As Sereias e Os Filmes de Animação
Barbie, a personagem que está sempre plena com seus figurinos, maquiagem e segredos de beleza, já viveu algumas aventuras como sereia, mas nenhuma animação teve o mesmo impacto cultural que Ariel (voz de Jodi Benson), A Pequena Sereia, produção que possui extenso legado ganhou duas continuações, não necessariamente interessantes, mas inofensivas ao legado da princesa marinha. Lançado em 1989, o clássico instantâneo é a 28ª animação da Disney, livremente baseada no conto de Hans Christian Andersen. Basicamente, temos a história de uma linda sereia que deseja ser humana. Ela ignora as ordens se seu pai, num posicionamento considerado feminista, e vai até a superfície para compreender um pouco do comportamento humano. Lá, assiste encantada e com distanciamento, ao aniversário de Eric (voz de Chris Daniel Banes), príncipe que sofre um naufrágio e é salvo pela sereia que até canta para recuperá-lo.
Quando o moço acorda, ela se afasta e desaparece. Dentre tantas situações, Ariel faz um acordo com Úrsula (voz de Pat Carroll), uma bruxa do mar. Ela a transforma em humana, mas deixa a sereia com um desafio nada fácil de se resolver. Ariel precisa receber um beijo e o amor sincero humano, pois caso contrário, terá de cede a sua voz para a bruxa, eternamente, recurso deixado como garantia numa concha. Junto com seus amigos Linguado e Sebastião, a sereia atravessa uma série de obstáculos e encontra o seu final feliz, continuado posteriormente em A Pequena Sereia 2 – Retorno ao Mar e A Pequena Sereia – A História de Ariel, universo que ganhará versão live-action e passou por polêmicas recentemente, haja vista a escolha de uma atriz negra para interpretar a personagem. Há também uma série animada em três temporadas, voltada ao universo do Rei Tritão e da Princesa Ariel. Para os interessados, Mako Mermaids, produção australiana, ganhou uma série animada, disponibilizada pelo serviço de streaming Netflix, comprovação cabal da ampla presença das sereias em nosso esquema cultural contemporâneo. Há, também, as sereias do universo Barbie, pueris, mas divertidas.
Sereias e Cultura Televisiva: A Era das Séries
No Brasil, as sereias foram personagens sensuais e sedutores em O Canto das Sereias, exibida pela Rede Manchete em oito episódios, ao longo do mês de julho de 1990. Com tema musical atraente, composto por Marcus Viana, a produção foi assinada por Paulo César Coutinho e teve direção geral de Jayme Monjardim, com as suas cenas gravadas nos melhores pontos de Fernando de Noronha, lugar paradisíaco ideal para a história de Ulisses (José de Abreu), homem que provoca a paixão de Teoxípe (Ingra Liberato). Na trama, ele se muda para uma ilha no intuito de salvar o seu casamento, algo que não vai dar muito certo. Telêmaco (Giuseppe Oristânio), também alvo de uma paixão, torna-se o foco de sua madrasta, a mulher de seu pai. Neste feixe de situações conflituosas, as sereias não apenas seduzem os homens, mas espalham a paixão por todos os lugares por ondem passam. Do mito, a série aproveita o canto, os nomes icônicos de personagens da mitologia grega, tudo isso adaptado para o contexto brasileiro, numa produção que atende aos requisitos de entretenimento e ainda possibilita discussões intrigantes sobre relações familiares.
Na produção cultural mais recente, temos as sereias presentes em duas séries que apostam no lado sombrio destas figuras mitológicas. Siren – A Lenda das Sereias e Tidelands, respectivamente, em ordem de qualidade dramática, trouxeram todo o lado sombrio, misterioso e empoderado das sereias e tritões, em tramas com alto teor de sensualidade. Concebida pelo Freeform, um dos ramos da ABC, Siren durou três boas temporadas e diferentemente dos seres lúdicos e mimosos do estilo Disney, avançou pelos meandros da linguagem misteriosa e sombria, como já mencionado, num discurso também feminista e crítico ao esquema bélico que rege as relações internacionais estadunidenses, com criaturas luxuriosas e sedutoras, mas também perigosas e mortais, em confronto por espaço e contenção dos estragos humanos ao ecossistema marinho. Com elementos de Game of Thrones e True Blood, Tidelands teve menor impacto que Siren, mas ainda assim, apresentou alguns momentos interessantes. Produzida pela Netflix australiana, a narrativa em oito episódios, criada e escrita por Stephen M. Irwin, Leigh Grant e Tracey Robertson, entregou ao público um misto de sociedade secreta com indivíduos em busca de respostas para a composição de suas próprias identidades. Ainda em território australiano, as sereias também estiveram nas infanto-juvenis H2O – Meninas Sereias e sua derivada, Mako Mermaids, produções focadas na lógica juvenil de autodescoberta e outras celeumas da vida adolescente.
A maioria destas produções ganharão análises individuais, devidamente exploratórias de suas potencialidades dramáticas e estéticas. Preparados para a navegação? Esperamos contar com você, caro leitor, nesta travessia que promete ser bastante panorâmica. Vamos nessa?