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Entenda Melhor | Salvador Dalí, Surrealismo e o Cartaz de Cinema como Obra de Arte

O cartaz de cinema é uma obra de arte?

por Leonardo Campos
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Salvador Dalí é um dos principais expoentes do surrealismo na história da arte moderna. O espanhol se tornou uma figura conhecida por sua excentricidade e por traçar combinações entre elementos oníricos e bizarros sem deixar a força da plasticidade de suas criações de lado, dando ao movimento cores e estilos muito peculiares. Ao conferir o seu nome dos compêndios e documentários sobre a canônica história das artes, percebemos que a crítica o trata como um artista que nunca se manteve covarde diante da testagem de limites, ação que na maioria das vezes, deixava os seus espectadores boquiabertos, sem opinião imediata acerca daquilo que contemplavam. Para a realização especifica deste texto, o pintor narrou em determinada ocasião que o seu pai lhe apresentou um livro com imagens de doenças venéreas. Ainda criança e sem maturidade para o provável espetáculo de horror que lhe fora exposto, Dalí alegou ter ficado traumatizado, sem esquecer as terríveis visões, marcantes para o resto de sua vida.

Foi um momento de associação entre sexo e morbidez, temática presente na excêntrica In Volupta Mors, fotografia retratada com maestria no cartaz original do clássico moderno O Silêncio dos Inocentes. Criação do artista ao lado do fotógrafo Phillipe Halsman, estadunidense conhecido por sua longa carreira para a revista Life, a imagem mescla o já mencionado tom mórbido com a sensualidade proposta pela posição das sete modelos que formam um crânio humano. É parte de uma série de “quadros vivos”. O erotismo, neste trabalho, encontra ressonâncias com a ideia de pulsão de morte, proposta psicanalítica que faz parte da obra geral de Salvador Dalí, um intelectual influenciado pelas publicações freudianas, contemporâneas ao seu fazer artístico. Conforme registros históricos, o pintor usou esse trabalho para campanhas de soldados na Segunda Grande Guerra Mundial, tendo em vista confrontar os combatentes com os riscos das doenças sexualmente transmissíveis, uma preocupação a mais para quem esteva no front de batalha. São campanhas que apresentam a mulher como um ser tentador e, por isso, perigoso.

É como o feminino presente em O Silêncio dos Inocentes, um projeto arriscado, intenso e levado por desejos que põem vidas em risco, salvaguardadas as devidas proporções comparativas. Escrito por Thomas Harris e transformado em roteiro cinematográfico por Ted Tally, o filme ganhador dos cinco principais prêmios da cerimônia do Oscar de 1991 foi dirigido por Jonathan Demme. Ao longo da narrativa, acompanhamos a trajetória de Clarice Sterling, agente do FBI interpretada com força por Jodie Foster, personagem que precisa lidar com os crimes de Buffalo Bill (Ted Levine), um psicopata que teve o seu pedido de transição de gênero negado e adentrou por um espiral de insanidade que o faz desejar uma roupa de pele humana, costurada com base nas vítimas que aniquila em diversos pontos de uma região dos Estados Unidos. Para melhor compreender o criminoso, Clarice precisa do apoio de Hannibal Lecter (Anthony Hopkins), figura sofisticada intelectualmente, presa numa cela de segurança máxima, conhecido por seus atos canibais.

Um dos enigmas de seus crimes é o casulo raríssimo deixado na garganta de cada cadáver. Ao passo que a investigação avança, Clarice descobre que o conteúdo deixado como pista é uma Acherontia Styx, popularmente conhecida como a Mariposa da Morte, criatura que traz em sua estrutura uma imagem semelhante ao que conhecemos como a visão de uma caveira humana, espécie rara encontrada em regiões bem específicas do nosso planeta. Com seu aspecto assustador, a tal mariposa é associada à chegada de Colombo em determinados pontos do América do Sul, além de representar mau agouro, maus espíritos, dentre outras sensações que a intensifica na cultura popular. Presente também na capa do romance As Intermitências da Morte, de José Saramago, a mariposa em questão emite pulsos sonoro de curta duração e é conhecida por se alimentar em voo, sem a necessidade de pausar, algo que a torna peculiar no universo dos insetos, escolhida cuidadosamente por Thomas Harris para a realização das alegorias propostas no romance que se transformou no bem-sucedido filme de terror de luxo.

Para a criação do cartaz de cinema, os produtores de O Silêncio dos Inocentes aprovaram o projeto que trazia a imagem de Clarice Sterling, silenciada com a mariposa que em sua estrutura, traz uma montagem de In Volupta Mors, a sombria fotografia que na obra de arte em questão, metaforiza a insatisfação de James Gumb, paciente que teve a sua cirurgia negada, fato que acentuou o seu distúrbio de personalidade e, consequentemente, a insatisfação com o seu corpo. Conhecido por apresentar o inconsciente no desenvolvimento de sua atividade criativa, Salvador Dalí concebeu as suas produções por meio de técnicas como frottage (esfregar), grattage (raspar), a colagem, o dripping, a assemblage, dentre outras, abordagens que lhe permitiam a liberação da criatividade por meio de realizações sugestivas, conteúdo menos teórico e mais espontâneo, indo na contramão de técnicas sugeridas com “boa arte” no passado. Inserido nas vanguardas modernistas, o artista é um fiel representante do abstrato, do irreal e do que se convencionou a chamar de inconsciente.

Trazido para o filme, o tema da transexualidade é tratado como cobiça, algo doentio e tortuoso que na época de lançamento, gerou alguns protestos por parte de grupos que consideraram a narrativa uma alusão aos estereótipos da homossexualidade, associada ao que a sociedade prega como doentio. Hoje, sim, podemos fazer essa leitura, mas muito longe do mea culpa comum aos interessados por algo que hoje é questionado e pode ser cancelado, venho em defesa do filme para propor uma reflexão mais ampla sobre a franquia e observar que O Silêncio dos Inocentes é produto de uma época, de um modo de operação para a realização de narrativas, com isso, em vez de cancelar, devemos refletir e apontar os seus problemas, sem desconsiderar os trunfos dramáticos e estéticos desta produção que pode ser apontada como uma das melhores do cinema moderno, haja vista o bom desenvolvimento da trama, dos personagens, dos aspectos visuais e sonoros e, claro, do cartaz de cinema que é uma autêntica obra de arte, o foco para o nosso desfecho.

Muito além da tarefa publicitária que lhe é atribuída, o pôster original de O Silêncio dos Inocentes é uma obra-prima dos cartazes no cinema mais recente. Ele associa a imagem de Clarice Sterling com a mariposa da morte e a fotografia In Volupta Mors, do surrealista Salvador Dalí, dando ao material uma função de obra de arte sofisticada que ultrapassa os limites de divulgação para se ofertar aos nossos olhos como arte a ser contemplada não apenas no contexto de lançamento da obra que vende, mas para se tornar um recurso ilustrador da cinefilia em nossas paredes. Pensar o cartaz do filme é também refletir sobre o lugar deste recurso de marketing impresso e digital na cultura dos fãs de cinema e na perpetuação da memória desta arte que se transformou ao longo do século XX e ainda apresenta fôlego para ser reinventada cotidianamente. Inicialmente, o papel do cartaz é seduzir o espectador e deixa-lo interessado no filme que é comercializado.

Há, no entanto, uma relação fetichista do público com os cartazes. Eu, por exemplo, individuo que vos escrevo, possuo quatro deles a estampar as paredes de minha casa, como item decorativo, algo semelhante ao que o personagem de Truffaut faz em A Noite Americana, durante uma cena de sonho. Na passagem, ele toma para si um cartaz de Cidadão Kane, de Orson Welles, exposto numa sala de cinema. É como levar a própria sétima arte para dentro de casa ou ambiente de trabalho, uma forma de reforçar para si mesmo e para os demais o amor e o interesse pela arte cinematográfica, exaltada no cartaz que é uma referência maior do nosso relacionamento com filmes. Há alguns que são banais, simplórios, desleixados, mas há outros, como o sofisticado trabalho artístico em O Silêncio dos Inocentes, recurso de marketing que tal como mencionado, ultrapassa os limites da venda de um conteúdo e se estabelece como arte a ser refletida e consumida, indo além da Publicidade e Propaganda e dando pistas sofisticadas ao espectadores que se deparam com a justaposição de imagens dispostas neste que é um dos cartazes de cinema mais interessantes e belos do cinema moderno.

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