Bacharel em Artes pelo Instituto Hampton, Ruth Carter é uma das mais expressivas figurinistas do cinema contemporâneo. Por ter nascido nos frenéticos anos 1960, a profissional viveu intensamente os primeiros passos da juventude nas décadas de 1970 e 1980, permanecendo evidente ao longo dos períodos seguintes, em especial, nas parcerias com Spike Lee em diversos filmes. Indicada ao Oscar de Melhor Figurino em três ocasiões, 1992 (por Malcolm X), 1997 (por Amistad) e 2018 (por Pantera Negra), Carter foi a primeira mulher negra a ganhar o prêmio da academia em sua categoria. Dentre os seus trabalhos memoráveis, temos a composição do personagem de Angela Basset para a cinebiografia da cantora Tina Turner, além dos trajes de todo o elenco de Malcolm X, épico controverso de Spike Lee, um espetáculo de tecidos e adereços.
As recordações dos figurinos de Amistad, de Steven Spielberg também demarcaram os meus primeiros anos de cinefilia. Havia algo de muito especial naquele trabalho, recordo. Passado algum tempo desde este rompante de sensibilidade estética, meu reencontro com Ruth Carter e a sua relevante produção na área dos figurinos se deu em um episódio da Segunda Temporada de Abstract, série que contempla os processos criativos de artistas renomados no campo do design. A artista esteve presente em 2018 em minhas reflexões sobre alguns dos principais filmes de Spike Lee, bem como no acompanhamento da cerimônia do Oscar 2019, evento que concedeu o troféu de Melhor Figurino para Pantera Negra, um filme com amplo lastro de debates sociais e políticos no bojo da história ancestral dos africanos.
Dona de um estilo próprio, guiado por estratégias de produção fascinantes, Ruth Carter afirma que não é uma costureira, mas uma contadora de histórias. O despertar para a função se deu quando a sua mãe, durante uma das apresentações de uma peça teatral na qual Carter esteve envolvida, questionou: “minha filha, você quer mesmo seguir a sua vida lavando as roupas dos outros?”. Na verdade, o que a figurinista fazia era organizar o deslocamento dos atores no backstage dos palcos, arte que dominou as suas práticas no começo da carreira e durante sua vida universitária.
Sem ficar raízes profundas onde habita, pois sempre viaja para o local onde desenvolve os seus trabalhos, Ruth Carter alega que a sua relação começou de maneira curiosa com Spike Lee, talvez o cineasta mais importante de sua trajetória, haja vista a quantidade de filmes e a importância não apenas estética, mas também temática de suas produções, isto é, os debates raciais. Tendo negado a devida atenção ao cineasta ainda em começo de carreira, ela soube por terceiros que o mesmo iniciante que havia lhe enviado alguns rascunhos tinha acabado de lançar Faça a Coisa Certa em Cannes. Ela se questionou: “por qual motivo não o respondi antes?”. Spike Lee era o homem responsável pela explosão semiótica da África no cinema estadunidense.
Foi deste momento em diante que os dois estabeleceram uma longa parceria. O cineasta aparece num dos depoimentos do episódio sobre “Figurinos de Ruth Carter” na série Abstract. Sob a direção de Claudia Woloshin, Spike Lee afirma que confia plenamente no trabalho da figurinista a ponto de saber que o material que virá dialoga perfeitamente com os seus anseios narrativos. Como Carter expõe, ela primeiro lê o roteiro, para logo mais fazer a decupagem. O seu intuito é “sustentar em cores e roupas as palavras do texto fílmico”. Apaixonada pelos anos 1970, sua época predileta para criação, a figurista alega que o setor é demasiadamente importante, pois é quando o ator e o personagem se fundem. O trabalho, como reitera, nunca acaba. Sempre há algum detalhe que às vezes precisa ser deixado de lado por conta do tempo dentro do esquema industrial de produção.
Uma de suas práticas é ir para as ruas e observar o comportamento das pessoas. É dessa realidade que ela colhe seu material para mesclar com a inspiração. Responsável por filmes como Amistad, de Steven Spielberg, ela leu o manifesto original em sua totalidade, pois acreditava que era preciso mergulhar profundamente naquele mundo para a sua representação tanto tempo depois. Alguns detalhes para a sua função foram extraídas de classificados de escravos fugitivos, publicados em jornais do século XVIII e XIX. Ruth Carter comprova o que já foi reafirmado várias vezes sobre o faro investigativo por parte de cada profissional que complementa a equipe geral de uma realização artística. É preciso total dedicação para evitar representações equivocadas.
Para Malcolm X, épico de Spike Lee que atravessa várias gerações, Ruth Carter precisou investir em bastante pesquisa, sendo uma delas no presídio onde o personagem esteve encarcerado durante longo período. No desenvolvimento do trabalho, a figurinista criou peças que acompanharam a sua evolução enquanto personagem. São peças exuberantes na fase inicial, repleta de cores vivas, ressaltadas pela direção de fotografia interessada em destacar os figurinos como parte intrínseca da formação do perfil físico, psicológico e social não somente do protagonista, mas também dos coadjuvantes que gravitam em torno dos conflitos centrais. São peças seguidas de traços mais comuns em sua estadia na prisão, encaminhadas para a utilização de trajes formais na composição da fase final do ativista, constantemente de ternos, gravatas e outros adereços mais elegantes.
Os figurinos de Pantera Negra, por sinal, originaram-se da fusão de material de época adaptado para a realidade fantástica da aventura. A produção foi primeira vitória da Marvel Studios neste segmento, os figurinos foram inspirados por meio de sua viagem para a África do Sul. Ruth Carter pesquisou povos, monarquias, mesclou teoria com observação de campo e fez algo que muitos artistas da cultura branca não fizeram ao longo da história dos últimos séculos: pediu autorização para se apropriar dos elementos culturais selecionados para compor o seu trabalho. Ainda no bojo da aventura, a figurinista inseriu traços do afro-futurismo, estética contemporânea da filosofia e das artes que reflete os impactos da diáspora africana por meio de cosmologias não-ocidentais.
Com críticas que fazem uma observação da população negra na atualidade, os elementos da arte afro-futurista dialogam com a ficção científica, fantasia, realismo mágico, etc. É a busca por projeções futuras em uma cultura subjugada há eras, tendo o uso da tradição como estratégia de produção futurista. Dentre os países visitados, Ruth Carter esteve em Mali, Quênia e na Etiópia, resgate que respeitou os aspectos ancestrais da cultura africana, quase sempre estereotipada na produção cinematográfica hollywoodiana. Posicionada politicamente, a figurinista disse não ter importado “nada de cunho colonial” e na Mostra de Figurinos realizada no Fashion Institute of Design & Merchandising, em Los Angeles.
Amplamente comentada nas mídias após ter ganhado um prêmio na cerimônia do Oscar 2018, Ruth Carter não deveria reconhecida antes de instâncias de legitimação deste tipo? Algumas barreiras já foram eliminadas, mas ainda é preciso combater muitas avalanches racistas no bojo de um tecido cultural ainda cheio de ranços racistas e mitológicos no que concerne às reflexões sobre utopia e democracia racial. Que venham mais figurinos, Ruth Carter!