Contos, poemas, crônicas, romances. Gêneros da literatura que permitem reflexões interessantes quando o assunto é o Natal. Em linhas gerais, estas histórias retratam personagens envoltos em situações que se dividem entre a alegria e a tristeza. Nas versões alegres, contemplamos evoluções de figuras ficcionais inseridas em momentos de confusões nos encontros familiares, desencontros amorosos, peripécias na dinâmica consumista, dentre outros. Nas versões tristes, observamos a construção dos escritores diante de personagens mergulhados em redomas solitárias ou em existências empobrecidas, sem os privilégios dos abastados que podem curtir a magia natalina sem a opressão de seus lugares de fala. Há também, neste panorama, histórias que investem num lado obscuro do Natal, servindo elementos do terror como abordagem para uma reflexão totalmente distanciada dos clichês de plena felicidade para trazer o clima natalino como tema ficcional. Sendo assim, na construção deste artigo breve, mas panorâmico e elucidativo, apresento ao leitor dez histórias entre os clássicos e os contemporâneos, publicações lidas e analisadas para o livro Natal Como Narrativa, produção que reflete o período por meio de filmes, documentários, séries televisivas, dentre outros.
Vamos nessa?
Para começarmos, apresento Uma Canção de Natal, de Charles Dickens, clássico da literatura que de acordo com alguns especialistas, definiu o período natalino não apenas como formato a ser trabalhado na ficção, mas em nossa cultura de modo geral. Desta maneira, podemos pensar que por meio deste renomado conto, o escritor “inventou o Natal”. Publicado em 1843, o conto nos apresenta Ebenezer Scrooge, um homem avarento, emburrado e muito egoísta. Na véspera de Natal, ele recebe a visita sobrenatural que mudará a sua vida. O fantasma do seu sócio falecido, Jacob Marley, surge para lhe dizer que três manifestações espirituais aparecerão para lhe trazer mensagens: os fantasmas do Natal passado, do presente e do futuro. Cada um com sua abordagem. Chegam sucessivamente e o levam numa viagem temporal e espacial que o fará refletir sobre as coisas que realmente valem à pena e também mudar sua concepção sobre o período natalino. Com linguagem simples nas diversas traduções em língua portuguesa, o conto traz sim o moralismo proveniente da cultura cristã, mas versa sobre temas considerados universais, tais como amizade, bondade e generosidade, tópicos que se encontram presentes em praticamente todos os filmes, séries e programas especiais contemporâneos sobre o Natal.
Publicado em 1956 numa revista e hoje espalhados em diversas antologias, no conto Memória de Natal, de Truman Capote, o estilo intimista do escritor nos leva por uma jornada emocionante, com o narrador a nos compartilhar as suas histórias de amor e companheirismo no período natalino. Com simplicidade, os personagens desenvolvem os preparativos para os festejos como se aquilo tudo fosse um acontecimento singular em suas trajetórias. Interessante observar que aqui, a amizade empolgante que se desenvolve é entre um menino e uma senhora. Buddy, provavelmente uma referência ao próprio Truman Capote, nos conta as suas experiências no Alabama, onde criou um emotivo vínculo com Sook, uma pessoa idosa com o que podemos chamar de “espírito infantil”. Logo em suas primeiras linhas, ele descreve o esfriamento, a proximidade do desfecho de novembro e a chegada em breve do Natal. Ele conta que aquele período é esperado durante o ano inteiro. Situado nos anos 1930, podemos perceber a sutileza na qual o escritor demonstra a amizade fofa entre os dois personagens, num espaço único, a casa onde ambos dividem os seus momentos, local que nos deixa entender a passagem de outras pessoas, personagens que não interferem em parte alguma do conto. Amizade, companheirismo, amor e sinceridade são alguns dos temas deste envolvente conto natalino.
A caridade e o amor ao próximo é um dos principais tópicos temáticos do conceito natalino, abordado em diversos formatos dos gêneros literários, como podemos contemplar em O Natal é Uma Época Triste Para os Pobres, de John Chiever. No conto, temos Charlie como protagonista, um personagem que nos faz questionar o seu tom pessimista, se é algo ideal para o Natal. Convenhamos, para o ascensorista, a resposta é um sonoro sim. Ele não é um abastado como os demais habitantes do prédio em que trabalha. Enquanto todos gozam dos privilégios de suas ceias fartas com muito luxo e riqueza, o profissional tem que lidar com o seu sanduíche como única opção, além da impossibilidade de confraternizar com sorriso largo no rosto, tal como os tantos passantes do elevador que lhe desejam, na saída, “Feliz Natal”. Na escrita também envolvente do escritor, observamos um homem que lamenta constantemente, até ser contemplado pela bondade das pessoas que começam a lhe oferecer presentes e comida de qualidade para lhe acender a luz da magia natalina. Dinâmico, preciso e com tom autobiográfico, o conto revela o lado caridoso do protagonista que diante de tantas ofertas, reflete sobre o quão este período é hipócrita em determinadas circunstâncias. Felicidade natalina? Sim, para quem tem o que e como comemorar. Ao ver crianças pobres na rua, ele distribui a sua ceia e até compartilha alguns presentes. Em linhas gerais, um clássico da literatura natalina.
Outros dois contos refletem a questão da pobreza e do abandono: A Pequena Vendedora de Fósforo (1845), de Hans Christian Andersen e O Presente dos Magos (1906), de O. Henry. O primeiro é considerado um clássico do tema e se passa na noite de Ano Novo, mas é costumeiramente adaptado para versões natalinas. Retrata uma garota desamparada e descalça que tenha vender, em meio ao clima gélido de sua região, palitos de fósforo, sem sucesso, morrendo abandonada depois de muitos instantes de alucinação a cada um destes itens acendidos para diminuir a dor do frio, simbólico aqui para falar também de solidão e falta de calor humano, sem o idealismo comum aos tantos clássicos de abordagem natalina. Lido na adolescência, até hoje é um conto marcante, emocionante, breve e conciso em sua reflexão crítica. No outro, temos a história de Jim e Della, um casal com problemas financeiros em Nova York no começo do século XX. Ambos querem conceder um presente de Natal, mas as condições não são nada favoráveis. Aqui, encontramos outra emocionante lição de valores natalinos, com críticas aos valores associados ao período, originalmente não vinculados ao consumismo que pode causar transtorno, sofrimento, dentre outros sentimentos de impotência numa cultura que prega a necessidade de presentear e ser presenteado para agradar e ser agradado.
Jostein Gaardner, de O Mundo de Sofia, também contribuiu com a literatura natalina em seu instigante O Mistério do Natal, saga de Joaquim, um jovem que faz uma viagem durante 24 dias e neste processo, descobre e nos ensina, em suas passagens, detalhes curiosos sobre a concepção do Natal como um período cheio de especificidades. Ao longo do trajeto traçado para a viagem do protagonista, o escritor faz críticas ao consumismo e aos sentidos perdidos do Natal em sua evolução histórica. Integrante de uma linha chamada de Literatura de Conhecimento, o romance traz personagens em busca do “saber”, levados a filosofar em suas jornadas e, em especial, nesta história, a contemplar roteiros especiais e conexões com Belém, Papai Noel, Mira, dentre tantas outras palavras-chave da história natalina dispersa em tantas mitologias e símbolos sobre o Natal presentes em nossa cultura. Muito parecida com a jornada de Sofia, a existência literária de Joaquim traz para nós leitores um texto interessante por mesclar elementos literários com traços filosóficos típicos deste escritor, num formato muito semelhante ao romance que o tornou um autor mundialmente famoso. Em sua incursão na literatura natalina, ele entrega aos leitores uma história com final feliz, com personagens que redescobrem os valores do Natal.
Na mesma ocasião de leitura deste clássico moderno, conheci também o tão comentado O Quebra-Nozes, citados em muitos filmes e séries estadunidenses. Na versão de Alexandre Dumas, releitura com mais detalhes do clássico alemão de E.T.A. Hoffman, mais sombrio, contemplamos o tom idílico natalino, com famílias abastadas e mesas fartas, com personagens a fugir de suas realidades para evitar as tristezas de suas respectivas épocas de existência. Mais extenso e com trechos que muitas vezes se detém exaustivamente aos detalhes, Dumas nos dá o tom do livro logo no prefácio, quando decide contar uma história para os insistentes convidados de uma festa. Na sua narração, ele conta que na véspera de Natal, uma menina chamada Maria se encanta com um Quebra-Nozes no formato de boneco. Guarda-o com todo carinho e durante a sua noite tranquila de sono, é despertada por ruídos estranhos no armário onde o objeto foi acomodado. Ao conferir, ela contempla boquiaberta uma batalha entre o tal boneco e um grupo de ratos liderados por um astuto mentor. Reinos, feitiços e muita magia, numa história que flerta entre magia e realidade, estruturam este clássico da literatura que curiosamente não abre espaço para a mitologia do Papai Noel, um ícone do período natalino.
Uma versão com tom sarcástico para os festejos natalinos foi publicada em 1934 por Agatha Christie, a rainha do crime na literatura de suspense. Em O Natal de Poirot, romance lançado no Brasil pela editora Nova Fronteira, somos inseridos numa redoma de violência, humor e muito requinte literário, com todo aquele clima de Sherlock Holmes. Na trama, Simon Lee morre na véspera de Natal. Ele é o patriarca da família e a situação deixa a todos boquiabertos. Abalados, os convidados para a mansão precisam lidar com uma vítima degolada, debruçada numa enorme poça de sangue. A grande questão é que não estão todos de luto, pois cada um dos convidados possuía motivações para assassinar o tirano chefe deste clã familiar. Próximo da localidade, haja vista o seu projeto de passar os festejos natalinos com um amigo, está Hercule Poirot, figura ficcional que decide investigar o mistério por detrás deste crime hediondo. Num desenvolvimento que envolve o leitor até as suas últimas linhas, a sábia escritora ironiza o período natalino, flerta com personagens esféricos e até cita Shakespeare: “quem jamais poderia imaginar que o velho guardasse tanto sangue dentro de si?”. Nesta referência ao clássico da dramaturgia renascentista, temos o tom do romance que deixa diversas pistas ao longo de seus capítulos, culminando num desfecho instigante e uma abordagem diferenciada no Natal na literatura.
Muito conhecido na cultura popular por sua versão cinematográfica com Jim Carrey no filme O Grinch, na verdade este personagem é parte do imaginário literário publicado em 1957 por Dr. Seuss, no divertido e também sarcástico Como o Grinch Roubou o Natal. Na história, temos um personagem verde e com traços de Sr. Scrooge, o ranzinza protagonista do conto clássico de Charles Dickens. Ele é avesso ao período natalino e não aguenta mais eras de tanta cantoria e felicidade na cidade de Whoville. Diante disso, resolve sabotar as comemorações da cidade que se prepara com todo gás para celebrar os valores natalinos. Para isso, se veste de Papai Noel e resolve roubar todos os presentes, tendo em vista estabelecer o desânimo necessário para que as festas percam todo o sentido. Lá do topo da montanha onde vive, traça o seu plano e o põe em prática. Nada de felicidade, abraços, presentes trocados ou mesas fartas. O problema é que mesmo diante de seu audacioso projeto, os habitantes de Whoville decidem continuar os festejos, levando em consideração o espírito natalino, totalmente contrário ao ponto de vista do Grinch. Assim, nesta história divertida e leve que vai de encontro aos clássicos natalinos que focam na felicidade extrema e no consumismo de pessoas abastadas, o livro demonstra que mesmo diante das adversidades, a população daquela cidade leva em consideração a fraternidade, o respeito mútuo e a vontade de “estar junto”. O velho padrão do “um contra todos”.
No bojo da literatura estrangeira contemporânea, temos também Os Delírios de Natal de Becky Bloom, de Sophie Kinsella. Sou um fã confesso da adaptação feita para o cinema em 2009 de Os Delírios de Consumo de Becky Bloom, uma comédia romântica que diverte e ainda funciona como aula para debates sobre educação financeira, mas tudo que veio depois no âmbito literário acabou desgastando a imagem da personagem. Em sua versão natalina, a protagonista traz todo aquele manancial de exageros de sempre, agora incumbida de ser a anfitriã do festejo, no lugar de sua mãe. Extenso demais para o fiapo de história, o romance é a décima publicação da série lançada no Brasil pelo selo editorial da Record. Suas trapalhadas natalinas são engraçadas? Sim, mas o livro estica demais algo que caberia melhor, talvez, no formato conto. Aqui, as canções natalinas e a reunião familiar demarcam todos os clichês deste tipo de narrativa, com a personagem mais uma vez seduzida pelas promoções com frete grátis disponibilizadas na internet, bem como as atrações do seu cotidiano, haja vista diante de passagens pela rua para comprar os itens da ceia natalina. São vitrines brilhantes e convidativas, ideais para levar aqueles que são frágeis diante da cultura consumista. Para dar conta do Natal perfeito, Becky Bloom envolve todos aqueles que gravitam ao seu redor em peripécias diante do seu perfeccionismo.
Para encerrarmos este panorama, um estudo realizado em Harvard e publicado em 2019 não trouxe resultados amarrados, mas delineou as motivações que fazem as pessoas se sentirem mais solitárias e predispostas ao sentimento de melancolia no Natal. Como problema de saúde pública, a solidão, aqui em conexão com a depressão, nos mostra o quão a humanidade desenvolveu tecnologias para aproximação e afastamento de sentimentos do tipo, mas que ainda assim, não conseguem sustentar a chegada de algo tão devastador. A solidão possui ligação com as táticas de regulação emocional do nosso psiquismo para lidar com a forma com a qual vivemos. Os pesquisados sentiam mais solidão quando utilizavam determinadas estratégias para lidar com as emoções em situações complicadas, tais como culpar a si, culpar os outros, ruminação (pensamentos negativos recorrentes), catastrofização (enfatizar a natureza ou trágica de uma situação), bem como a não expressão de seus sentimentos ou rejeição de apoio social. Ademais, conforme os resultados analisados neste estudo, os indivíduos com maior sensação de solidão eram menos propensos ao ato de se enquadrar suas experiências, isto é, ver o lado bom das coisas, tal como os personagens dos contos, poemas e livros analisados por aqui.