A invisibilidade é um recurso narrativo que exerce poder diante das histórias que decidem utilizá-la como proposta para os seus desdobramentos dramáticos. Desde a publicação do romance O Homem Invisível, de H. G. Wells, em 1897, muitas obras literárias e cinematográficas tornaram a capacidade de se tornar invisível um poderoso meio de desenvolvimento ficcional. Com o lançamento do filme de 1933, parte integrante do ciclo dos monstros da Universal, diversas releituras do enredo e do personagem foram desenvolvidas. Com legado extenso na cultura pop ao longo do século XX, as habilidades de Griffin, já presentes na mitologia grega, por meio de outros recursos que não foram os avanços tecnológicos do contexto de Wells, apresentaram-se em séries, filmes, livros, quadrinhos, etc. Traçamos aqui alguns featurettes que documentam o legado especificamente no cinema, tendo com foco três versões pontuais, haja vista os seus destaques tecnológicos e dramáticos: O Homem Invisível (1933), O Homem Sem Sombra (2000) e O Homem Invisível (2020).
Agora Você Pode Vê-lo: Revelando o Homem Invisível
Documentário exibido na TV fechada e disponibilizado nas edições especiais de O Homem Invisível, de 1933, a produção faz uma análise panorâmica da chegada de James Whale na Universal e os desdobramentos do filme em questão, tendo em vista radiografar os impactos do terror para a geração dos Monstros da Universal, bem como na carreira dos envolvidos, em especial, o cineasta Whale e o ator Claude Rains, interprete do memorável personagem. Retomado em diversos filmes de terror posteriores, o tema da invisibilidade é uma alegoria das pessoas que estão à margem da sociedade, conta David J. Skal, Historiador de Cinema, responsável pelo desenvolvimento da análise do clássico. Tratado como pai da ficção científica moderna, H. G. Wells teve uma experiência não satisfatória com uma adaptação de A Ilha do Dr. Moreau e pediu que os executivos da Universal fossem mais cuidadosos com o seu material literário.
Cenas de O Homem Invisível (1933)
Com vários direcionamentos, Agora Você Pode Vê-lo: Revelando O Homem Invisível é um documentário ora disperso, ora didático, pois caminha pela breve biografia dos envolvidos, passeia pela história dos efeitos especiais no cinema, um dos pontos mais altos do filme, haja vista as inovações no processo de prévio e de pós-produção, numa observação rápida e panorâmica que engloba George Mélies e seu clássico Viagem à Lua, repleto de trucagens, além de O Mundo Perdido e seus dinossauros que anteciparam o investimento de Steven Spielberg no tema quase muitas décadas depois. Rebelde e revolucionário, o protagonista de O Homem Invisível, do livro e do filme, é uma criatura que pensa na quebra de paradigmas diante da ordem social vigente, opressora e desfavorável para todas as classes sociais.
Sem seguir exatamente a linha do cientista louco que fez de Frankenstein, sucesso anterior de James Whale, um sucesso absoluto de público, segundo depoimentos, O Homem Invisível guarda muitas similaridades com o clássico monstro que o antecipou. Por ser uma tradução intersemiótica, os realizadores criaram novos personagens, deram uma noiva para Griffin, além de investir em cenas que não fossem descritas conforme a leitura literária, apenas um ponto de partida. Acompanhamos os bastidores, a neva artificial com blocos de gelo jogados de uma plataforma para a criação das pegadas do ser invisível, além de detalhes sobre o processo de captação da imagem do “monstro” para a inserção dos efeitos especiais. Sem o final feliz de Frankenstein, desfecho obrigatório exigido pelos executivos dos estúdios da Universal, desta vez, o cineasta James Whale conseguiu um final mais realista e mórbido, “sem filtros”.
HBO Apresenta: Anatomia de Um Suspense
Documentário exibido na TV fechada e depois disponibilizado nas edições especiais de O Homem Sem Sombra, o envolvente Anatomia de Um Suspense é um aprofundamento nos bastidores de realização do filme dirigido por Paul Verhoeven, produção que se apropria dos elementos literários de H.Q. Wells, mas curiosamente não oferece os créditos na ficha técnica do filme. Aparentemente composto com base na junção de vários featurettes, o material contempla uma análise dos desdobramentos da pesquisa gerenciada por Sebastian Caine e sua equipe. O grupo desenvolve um soro para a invisibilidade como parte dos estudos financiados pelos Estados Unidos, sempre em busca de novas estratégias para as suas invasões seguidas de guerras imperialistas.
Cenas de O Homem Sem Sombra
Protagonizado por Kevin Bacon, o inicialmente herói arrogante que se acha “um astro pop da ciência” se torna um problema para a sociedade depois que não consegue reverter o experimento que fez durante uma sessão onde desejou “entrar para a história”, ser o “primeiro homem invisível”. Ele perde o equilíbrio e comete atos indevidos, tal como estupro e assassinato, haja vista a intoxicação pelo poder da invisibilidade, seduzido por algo que o torna um monstro. Como esperado nas narrativas comandadas pelo holandês dentro do sistema hollywoodiano, a violência e o sexo são duas cargas de tensão que servem como combustíveis dos dramas desenvolvidos na história que marcou a história dos efeitos visuais e especiais na virada do milênio.
Várias informações interessantes são compartilhadas com o público. Os atores, mesmo diante de um personagem invisível após os efeitos de pós-produção, atuaram com Kevin Bacon o tempo todo, ator que trajou roupas na cor azul, verde e preta, tendo em vista atender as necessidades da equipe técnica, responsável pela transformação do que seria apresentado na versão finalizada do filme, com o “monstro” inconsequente atuando em diversos cenários, da piscina de um investidor ao complexo de pesquisa que se transforma num tabuleiro onde todos os demais envolvidos precisam lutar, tal como uma narrativa slasher, por suas respectivas sobrevivências. Após seu corpo ter sido digitalizado para que a equipe de efeitos visuais copiasse todos os seus movimentos, Kevin Bacon ainda passou por outros processos para se tornar invisível em cena, mas presente no desenvolvimento de cada cena, anterior e posterior ao seu surto psicótico definitivo.
Cenas de O Homem Sem Sombra 2 (a continuação inevitável)
Em alguns trechos, os atores contam, de maneira humorada, as coisas sombrias que fariam ou já pensaram em fazer se um dia fossem invisíveis. Paul Verhoeven, tratado pelos depoimentos como um cineasta passional e intenso, é tratado pela equipe como um diretor firme, que força todos os limites quando o tópico em questão é sexo e violência. Presente de corpo e alma em cada cena do filme, Verhoeven alega que se não tiver o que oferecer, não se estabelece no desenvolvimento de uma história. Com isso, ele reafirma a sua assinatura e reforça que os filmes que comanda podem até alcançar algum problema em sua condução, mas nada que seja voltado para a sua suposta ineficácia como orquestrador de narrativas como O Homem Sem Sombra, cheia de efeitos visuais deslumbrantes, mas nada que atrapalhe as questões dramáticas que a envolvem. Em suma, são elementos complementares de uma linguagem que é a mixagem de tantas outras numa só, afinal, é por isso que o cinema foi tratado como a sétima arte, não é mesmo?
O Retorno de H.Q. Wells em 2020: O Homem Invisível
A versão mais recente de O Homem Invisível é protagonizada por Elisabeth Moss, atriz bastante talentosa e envolvida em diversas produções que deflagram o papel e a presença da mulher a tecer seu próprio destino num tecido social machista e opressor. A trama nos permite uma leitura da invisibilidade voltado ao perigo, ao medo que pode ser sentido, mas não pode ser visto. Sob a direção de Leigh Whannel, também responsável pelo roteiro, acompanhamos uma jornada orquestrada por quem entende de claustrofobia social e pavor, pois o diretor também é ator e protagonizou o primeiro filme da franquia Jogos Mortais. Ele é um dos infelizes que está acorrentado para o jogo macabro de outro monstro do cinema, Jigsaw.
Elisabeth Moss em ação nos trechos de O Homem Invisível (2020)
No featurette intitulado Por Detrás das Cenas de O Homem Invisível, acompanhamos cenas de bastidores intercaladas aos depoimentos dos realizadores e do elenco, em especial, de Elisabeth Moss, protagonista desta aterrorizante jornada. Ela conta da importância de dar o máximo de “humanidade” ao seu personagem, espécie de busca pelo realismo para tornar a história atual e magnética. É a busca de uma mulher por trilhar o seu próprio caminho, longe dos abusos de um relacionamento nocivo. Perseguida por essa ameaça que se torna invisível, a protagonista ganha vida no desempenho de uma das atrizes mais talentosas de sua geração, alguém que segundo o produtor do filme, o antenado Jason Blum, conseguiu assumir o papel com muita garra.