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Entenda Melhor | O Gótico Literário: Polidori e o Vampiro Antes de Drácula

Um antecessor de Drácula: o gótico no século XIX pelo viés de Polidori.

por Leonardo Campos
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Já é senso comum a ideia do romance Drácula, de Bram Stoker, ser considerado o livro “definitivo” para a concepção do vampiro desde sua publicação em 1897. Em sua clássica composição literária, o escritor irlandês estabeleceu parâmetros emulados posteriormente em outras narrativas, não apenas no campo da literatura, mas especialmente no cinema, fluxo que se transportou para as histórias em quadrinhos, séries televisivas, dentre outros suportes. Personagem pastiche, o Conde Drácula mescla um amontoado de referências históricas, bem como folclóricas, de outras culturas, na formação de sua impetuosa presença como monstro. Os acontecimentos do livro, tal como a figura que intitulada o romance, traz em seu arcabouço o percurso prévio destes seres noturnos conhecidos por sugar a energia alheia, tendo em vista garantir a sua longevidade. Como dito em Vampiros: A Sede Pela Verdade, “toda cultura tem o seu vampiro”. E, ciente desse potencial, Bram Stoker desenvolveu a sua obra-prima com base em densas pesquisas e outras literárias do século XIX, em especial, Carmilla: A Vampira de Karnstein, de Sheridan Le Fanu, e O Vampiro, de John William Polidori.

Aqui, em nosso breve percurso sobre o vampiro antes de Drácula, versarei sobre o clássico conto de Polidori, bem como a trajetória do gótico na literatura. Vamos nessa?

Publicado em 1819, O Vampiro é um conto fluente e interessante, com uma história polêmica envolvendo a sua composição, lançamento e críticas que chega a ser mais densa que o próprio conteúdo literário. Eis, aqui, um ótimo caso para se discutir estética da recepção e correlatos. John William Polidori era o médico particular de Lord Byron, um dos grandes nomes da literatura romântica do século XIX. Tido como o primeiro material em prosa sobre vampiros em língua inglesa. Na abordagem gótica, a figura folclórica em questão é transformada num personagem aristocrata que trafega pela alta sociedade, algo que veremos posteriormente nas transições do Conde Drácula por Londres. Com elementos considerados ainda rudimentares na formação dos vampiros tal como conhecemos hoje, o conto de Polidori nos apresenta a jornada de Aubrey, um jovem rapaz fascinado pelo Lorde Ruthven.

Misterioso, o alvo de admiração de Aubrey exala sensualidade. Após se conhecerem, o lorde lhe faz um convite: ser acompanhante em uma viagem. Ele aceita. No percurso, observa tudo detidamente até a chegada em Roma. Uma peculiaridade que logo chamou à atenção do jovem foi o rastro de imoralidade e destruição que era deixado por onde Ruthven passava. Isso é algo que lhe deixa alerta, apreensivo, mas ainda assim, fascinado. Neste processo, há uma série de acontecimentos ainda mais conturbados: a sedução da filha de um amigo em comum, a chegada de Ianthe, figura feminina que lhe narra um amontoado de lendas sobre vampiros, histórias encaradas com ceticismo pelo rapaz, mesmo que os detalhes da narração dialoguem perfeitamente com situações vivenciadas durante a viagem que marca para sempre a sua vida. Tanto a moça quanto os habitantes locais evitam certos lugares em determinados horários, justamente pelo temor diante do que para Aubrey é puro folclore. Jonathan Harker, um dos principais personagens de Drácula, age da mesma maneira, em semelhanças que reforçam o quão Bram Stoker bebeu na fonte do conto O Vampiro, de John William Polidori, para a composição de sua história. Desprotegido, o jovem é atacado por uma figura de força sobrenatural nunca antes imaginada para o rapaz. Ele tenta socorrer uma jovem aos gritos e não demora a perceber que a pessoa é Ianthe, personagem que já era alvo de sua admiração. Com marcas vampirescas em seu corpo, ela morre. Adoecido, Aubrey recebe os cuidados do Lorde Ruthven. Após a sua recuperação, fazem a viagem de retorno para o lar, quando são atacados. O lorde acaba por falecer, mas antes de sua partida, pede que o moço guarde a situação em silêncio por um ano e um dia. Respeitoso, o amigo respeita a solicitação.

O espanto, então, o toma por um arrepio intenso quando, ao chegar em Londres numa determinada circunstância, encontra o personagem vivo, vampiro intenso que reforça a sua imortalidade. No desenvolvimento, a irmã de Aubrey é seduzida e se casa com o misterioso homem que espera apenas a noite de núpcias para sugar toda a vitalidade da virgem. Antes disso, o protagonista deixa uma carta que nunca chega para a sua familiar. Ele acaba morrendo antes da consumação dos festejos. O conto se encerra com o sumiço do lorde, figura que continuou a deixar um rastro de morte em prol de sua vida, por onde quer que tenha passado. Para alguns especialistas, há uma tensão no relato literário que permite afirmar que Aubrey e Ruthven são, respectivamente, representações de Polidori e Byron. Tal fio tenso que embala esta história entre os dois é embasado na “treta” entre os dois, pois apesar da história ter sido publicada com nome de Byron na capa, o conteúdo era de Polidori, situação que estabeleceu muitas polêmicas e foi devidamente resolvida apenas após a morte do autor aos 26 anos, vítima de suicídio. O então médico, demitido pelo badalado poeta, teve uma trajetória breve, muito diferente do personagem que demarcou a sua principal composição literária.

Para melhor compreensão do estabelecimento da atmosfera de horror em O Vampiro nas demais histórias vampirescas subsequentes, torna-se necessário entender os elementos do estilo gótico na literatura. Ambientes decrépitos, nebulosos e distantes, sinais de assombro, histórias antigas que retornam para o presente, tendo em vista retaliações: as características do que se convencionou a chamar de gótico na literatura são vastas, mas ainda assim é possível flertar com tal estética de maneira panorâmica e permitir que você, caro leitor, consiga compreender a abordagem e como as narrativas literárias mencionadas por aqui se embasam neste segmento para construção de suas histórias arrepiantes. O gótico é um estilo associado aos godos, povos originados de duas tribos: Ytar e Gutar. Ambas habitavam as margens do Mar Báltico em tempos a.C. Unidas pelos mesmos segmentos religiosos, os godos eram tidos como bárbaros pelos romanos, afinal, tal como os gregos, a sua cultura desconsiderava qualquer povo que não falava as suas línguas. Guerreiro, primitivo e supersticioso: eis algumas das características que demarcaram o imaginário em torno deste povo.

Ao longo da História da Arte, o termo gótico, pejorativo durante determinado período, foi utilizado para definir um estilo arquitetônico do século XII, considerado como manifestações primitivas conforme os códigos dos adeptos ao Renascimento. Os arcos ogivais, as abóbadas de nervuras e a decoração cuidadosamente delineada tinha uma aparência que chocava na época. O termo, segundo historiadores, foi utilizado de maneira a não associar exatamente a arte em questão com a tribo dos godos. Foi algo como “tal arte só pudera ter sido inventada pelos godos”. Neste contexto, então, o gótico ficou associado ao que era contrário aos padrões estéticos do clássico, se tornando sinônimo de tenebroso, anormal, etc. As coisas só mudaram com o avanço do pensamento. O traço gótico tinha como pretensão, expressar uma relação harmônica com o divino: havia verticalidades nas linhas, pureza das formas e renovador processo de técnicas de construção. Torres lanceoladas, com gárgulas instaladas com propósitos diversos, dentre eles, escoar a água da chuva e expulsar espíritos malignos.

Estes cenários possuíam um forte simbolismo religioso, costumeiramente trabalhado em narrativas ficcionais que dialogam com a temática gótica em outros suportes, além do arquitetônico. Na literatura, as paisagens góticas delineiam uma reação aos ideais excessivamente racionalistas, provenientes das correntes filosóficas que mudaram as linhas de pensamento ocidental antes do século XIX. Ao surgir para chacoalhar as estruturas realista, as histórias góticas encenavam medos, destacando os temores que mexiam a burguesia em processo de ascensão. No século XVIII, o gótico era utilizado para definir uma estrutura literária em formato de novela ou romance de terror, sendo este segundo o maior veículo de circulação desta modalidade de literatura. Presenças demoníacas, medo excessivo, dentre outras sensações: o estilo em questão estabelecia o sobrenatural e provocava os valores vigentes, promovendo rupturas com a moral e a razão iluminista. Transgredindo os padrões de composição literária, os adeptos ao gótico publicaram histórias nebulosas, situadas no mundo das sombras, com imagens fortes, presença do grotesco, numa exagerada manifestação das emoções.

Temos, na maioria das histórias góticas do período trabalho por aqui, isto é, a era do vampiro antes de Drácula, as narrativas se apresentam com tramas imbricadas, possíveis mudanças de narradores, descobertas de manuscritas e demais documentos reveladores, personagens mergulhados em paisagens sombrias, oníricas e arrepiantes, ressurgimento de figuras cadavéricas, conexão com espaços subterrâneos misteriosos e perigosos, revelações do passado que surgem para desestabilizar o presente, densa descrição de espaços, contraste entre luz e sombra, sonoridades noctívagas, desespero diante do limiar entre os vivos e os mortos. Ademais, temos melancolia, sensação de incapacidade na realização de uma meta em prol da salvação de determinado indivíduo por outro, haja vista as constantes interrupções do inimigo numinoso, numa inserção da irracionalidade em nosso mundo racional, focado em lucidez e organização.

De volta ao clássico conto de Polidori, importante reconhecer que apesar do tom rudimentar para a mitologia dos vampiros em sua publicação, o autor foi um dos colaboradores na construção de outro imaginário para as criaturas da noite. Apresentado com nobreza, elegância e postura sagaz, pertencente aos códigos civilizatórios, o vampiro do conto é um galanteador, mesmo que em seu interno, seja uma fera que estabelece um passo retrogrado ao que posteriormente, Charles Darwin ia designar em sua teoria evolucionista. Assim, qualquer traço de retrocesso ao animalesco seria concebido por demonização, ojeriza, etc. Anteriormente, os vampiros eram criaturas bestiais, fétidas, brutas e pertencentes ao ambiente rural. Aqui, em Carmilla: A Vampira de Karnstein, no brasileiro A Nevrose da Cor, bem como no clássico mais comumente mencionado sobre estas criaturas, Drácula, de Bram Stoker, os sugadores de vitalidade aparecem acompanhados de riqueza, nobreza, sofisticação, numa construção de imaginário literário e cultural que ainda hoje é tema para reflexões.

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