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Entenda Melhor | Norman Rockwell Como Antítese do Slasher

As ilustrações do artista estadunidense como antítese das propostas narrativas do slasher.

por Leonardo Campos
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Cinéfilo inveterado e crítico que só teve como conhecer alguns clássicos do cinema com o advento do DVD, numa era ainda dependente das produções exibidas na televisão aberta, só tive acesso ao famoso O Massacre da Serra Elétrica, dirigido por Tobe Hooper, também roteirista, ao lado de Kim Henkel, muitos anos depois de ter conhecido as franquias Sexta-Feira 13, A Hora do Pesadelo e Halloween. Enquanto assistia, inebriado pelas imagens repugnantes e assustadoras, percebi, especificamente, na cena de aflição envolvendo a final girl Sally (Marilyn Burns), uma possível conexão com uma imagem já vista em algum lugar, mas que na época, não conseguia recordar. Teria sido uma propaganda de produto alimentício? Uma pintura presente nalgum dos livros didáticos da escola ou artigo acadêmico lido para debate em algum componente curricular da graduação? Foi diante do feixe de perguntas de cunho indagador que decidi investigar para descobrir que, propositalmente ou não, os realizadores da história de Leatherface e seu clã canibal tinha se inspirado, de maneira subversiva, numa das quatro ilustrações da coleção Quatro Liberdades, assinadas por Norman Rockwell, bastante representativas na cultura estadunidense.

Elaboradas com riqueza de detalhes e cenas que evocam uma considerável sensação de nostalgia, estas imagens se originaram da criatividade de Norman Rockwell, pintor e ilustrador que realizou em torno de 320 capas para a renomada revista The Saturday Evening Post, ao longo de quatro décadas da publicação, artista que também assinou diversas telas com cenas da vida cotidiana dos estadunidenses em situações diversas nas pequenas cidades do país. Conhecido por seus métodos meticulosos, Norman Rockwell deixou o seu nome na história da arte do século XX por tratar as suas criações com exatidão de traços e cores, esboçadas parcialmente, para depois compor um todo. Dentre as suas principais características, temos a captação de expressões faciais, como podemos contemplar nas Quatro Liberdades, em especial, em Freedom for Want, foco da análise proposta neste artigo, produção que nos expõe uma visão idealista da realidade, ovacionada por muitos, mas critica por outros tantos que viam em seu legado uma deturpação dos valores de um país imperialista constantemente envolvido em conflitos bélicos e questões diplomáticas complicadas.

Produzida em 1943, Freedom for Want é uma pintura a óleo, com dimensões de 116,2×90 cm, criação inspirada no discurso de Franklin Roosevelt, de 1941, conteúdo que teve como objetivo, retratar as quatro liberdades fundamentais que todas as pessoas do mundo deveriam desfrutar: liberdade para expressão, liberdade religiosa, liberdade de viver sem penúria (também conhecida por liberdade dos desejos) e liberdade de viver sem medo. Na época do discurso, o país enfrentava as ressonâncias da Segunda Grande Guerra Mundial, tendo sofrido um ataque surpresa pomposo pelos japoneses em Pearl Harbor, onze meses antes. Desta maneira, o presidente massificou o seu discurso, tendo em vista ampliar o senso de patriotismo da nação, encomendando as ilustrações de Norman Rockwell para distribuição no formato pôster. A ideia era dizer que mesmo diante das celeumas bélicas, as coisas iam ficar bem e ninguém precisaria se preocupar com o futuro, afinal, eles eram os Estados Unidos da América.

A terceira liberdade tematizada na ilustração em questão expõe, em linhas gerais, a ideia de um mundo com equilíbrio econômico, onde todas as nações poderiam desfrutar de uma vida saudável, situadas num contexto de paz, fartura e felicidade. Na imagem, Norman Rockwell nos apresenta uma matriarca de avental que serve um peru, numa mesa com toalha especial indicando, provavelmente, o Dia de Ação de Graças. Aipo, picles e frutas numa travessa de prata também compõem a mesa luxuosa, com pratos vazios, à espera do alimento das pessoas brancas e sorridentes que desfrutam de um momento único em suas existências. Ironizada num momento específico, próximo ao desfecho de O Massacre da Serra Elétrica, esta ilustração ganhou uma poderosa sátira aos encaminhamentos de uma nação perturbada, disfuncional, mergulhada no caos de suas relações exteriores que ressoavam no interior das famílias, antíteses do ideal de felicidade proposto pela imagem de Norman Rockwell, resgatada da década de 1940 para o contexto em questão, numa falsa venda de ideais abstratos que estavam muito longe da realidade, como podemos ver na cena do jantar, onde a protagonista Sally é levada para jantar ou ser o alimento dos canibais, dentre eles, a figura monstruosa do avô catatônico.

Nesta cena, relativamente breve, mas bastante significativa, a personagem é inserida num jantar macabro, barulhento, angustiante, regido para ser entregue aos espectadores por meio da justaposição da assertiva direção de fotografia de Daniel Pearl, do detalhista design de produção de Robert A. Burns e da angustiante trilha sonora de Wayne Bill. Ademais, o tópico temático da disfunção familiar, contrária aos ideais de Freedom for Want, não esteve apenas no controverso filme de Leatherface, mas também está fixada na estrutura dramática de Psicose, tradução intersemiótica de Alfred Hitchcock para o romance homônimo de Robert Bloch, histórias que tem como paralelo, a inspiração na saga psicótica de Ed Gein, assassino em série que também se encontra no personagem pastiche Buffalo Bill, de O Silêncio dos Inocentes, premiada narrativa da década de 1990. Ademais, a ilustração de Norman Rockwell também funciona como antítese do slasher, ao menos quando a comparamos com as tramas de Comunhão, Feliz Aniversário Para Mim, A Hora do Pesadelo, Halloween: A Noite do Terror, Noite do Terror, Os Anfitriões, Sexta-Feira 13, Shadow Woods: O Pesadelo, dentre tantos outros, inclusive Pânico, narrativa de uma fase mais próxima da contemporaneidade, mas que também reforça que segredos do passado envolvendo o ambiente familiar podem ser mortais e gerar situações conturbadas, catalisadoras de tragédias sanguinárias por longas épocas.

Os realizadores de O Massacre da Serra Elétrica juraram, em depoimentos diversos, que sequer pensaram na trama como uma crítica ao tempestuoso envolvimento do país na Guerra do Vietnã, mas as imagens não nos permitem dissociar. Numa época em que havia uma baixa cada vez maior dos membros alistados no serviço militar estadunidense, bem como a Crise do Petróleo, os movimentos pela liberdade sexual e feminina, bem como os impactos da cultura hippie, a parte tradicionalista da sociedade vendia uma imagem de apaziguamento e nacionalismo, reverberado na retomada constante das imagens de Norman Rockwell, numa tentativa de reforçar que estava tudo bem e que a fartura e a felicidade habitavam todos os lares da “América”. Ao longo da narrativa, podemos perceber que mesmo não tendo criticado o Vietnã e o contexto histórico dos anos 1960 que ressoava com suas consequências na década de 1970, era inevitável encarar a narrativa como algo além do entretenimento, como é de fato toda obra dentro de um determinado contexto histórico, contaminada pelas questões políticas e sociais que gravitam no cotidiano.

Munido com a sua motosserra barulhenta e assustadora, Leatherface e sua sanha assassina, apoiada pelo clã de canibais que forma a sua família, igualmente assassina, exala reflexões contextuais por todos os poros da estrutura dramática. Observamos isso logo no começo, com a narração gutural que pretende dar ao filme uma perspectiva de documentário. Mais adiante, os jovens precisam parar para abastecer e encontram dificuldades ao não encontrar combustível. Na época, com a crise causada pelo fechamento das portas da OPEP, diversos setores industriais dos Estados Unidos atravessaram uma crise ferrenha, haja vista os embates entre a nação imperialista e seus negociantes orientais. É este, por sinal, o elemento catalisador que leva os personagens para a casa afastada da família de Leatherface, em busca de combustível para continuarem a viagem, num inevitável encontro com a morte. Eles são jovens, usam drogas, comportam-se dentro dos elementos que designam a cultura hippie, figuras ficcionais indesejadas por uma parte da sociedade que considerava os movimentos da época muito acima da visibilidade merecida, por isso, representantes desta modernidade, eles precisavam ser aniquilados, para a desejável limpeza social.

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