“Começar do começo“, quando a gente fala de noir, é basicamente nem começar. Porque o começo deveria ser a contextualização do gênero e, como é fartamente estabelecido na literatura cinematográfica, o noir não se constitui, de fato, um gênero. É mais uma abordagem regrada, aliada a uma atmosfera e um espírito temático cujas características podem mesclar-se com muitos outros gêneros, lembrando imediatamente suas origens estético-narrativas (Expressionismo Alemão e Realismo Poético Francês) e seguindo por um caminho de desenvolvimento que as regras do noir não permitiriam chamar de noir. No entanto, a gente gosta de dar nomes, definir, classificar, refletir pormenorizadamente sobre algo. Aqui não poderia ser diferente.
O nome, film noir, surgiu em 1946, cunhado pelo crítico francês Nino Frank, e falava desse estilo visual (ou ciclo, tom, atmosfera, movimento, perspectiva quanto à existência humana e a sociedade ou modo de se fazer cinema) como um filho da crise. Tanto as influências sombrias de movimentos anteriores quanto a crise no ambiente histórico em que surgiu colaboraram para moldar a ideia geral do noir, alimentada também pela literatura policial, principalmente de autores como Dashiell Hammett, Raymond Chandler e James M. Cain.
Podemos dar uma visão genérica daquilo que o espectador vai encontrar nesse Universo: uma construção de roteiro onde um personagem central é assombrado por algo que fez no passado ou que precisa esconder no presente. Os diálogos tendem a ser rápidos, num estilo de confronto que, anos mais tarde, os filmes policiais incorporariam em sua base — adicionando gírias e outros vícios de linguagem (assim como o noir) vindos dos filmes de gângster dos anos 1930. Ambientes urbanos são os favoritos desse tipo de obra, e a representação da cidade é uma mescla de claustrofobia e opressão, como uma personagem cheia de sombras, lixo, névoa e umidade que prende seus indivíduos. Planos por janelas do tipo veneziana também são frequentes e, dentro desses ambientes, vemos o esperado submundo do crime: vícios (cigarro e álcool são os principais), agressão, suborno e personagens que não sabemos ao certo qual é o seu alinhamento moral. A dubiedade é uma peça-chave no noir.
No plano estético, já é bastante conhecida a expressão desse Universo, privilegiando o amplo contraste entre luz e sombra, constantemente encobrindo parte do rosto dos personagens (planos em que se iluminam apenas os olhos, com uma faixa horizontal de luz, são bastante populares) ou ângulos indicativos de perturbação emocional (destaque para os inclinados). Além do detetive imperfeito usando um chapéu fedora, de uma femme ou homme fatale e de bandidos ou homens da lei perseguindo alguém.
Quanto a temporalidade desse tipo de filme, raramente há algum consenso. Uma boa parte dos estudiosos consideram que o Noir Clássico vai de 1941 a 1958, enquanto alguns veem um melhor momento para marcar o início do estilo em 1940, com Dentro da Noite, de Raoul Walsh e O Homem dos Olhos Esbugalhados, Boris Ingster, ambos estreando em agosto daquele ano. Já em relação ao final do momento clássico, não tenho posições fortes a respeito. Gosto bastante da visão que utiliza 1958 como o ano de encerramento desse movimento, mas há versões que consideram o fim apenas em 1959. A partir de 1960, já estamos falando de neo-noir, o que é papo para um outro artigo…
A propósito, para uma tira-teima e inclusões críticas de algumas obras, usei o Film Noir Guide: 745 Films of the Classic Era, 1940-1959, de Michael F. Keaney. Embora eu não concorde com todas as indicações do autor nesse guia, o volume é um ótimo ponto de partida para conhecer obras e discutir temas dentro desse estilo. De todo modo, discordâncias nesse tipo de classificação são constantes e isso é a base de qualquer filmografia classificada em um movimento, tema, estilo, gênero ou escola.
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O Noir Francês (Polar)
Herdeiro natural do Realismo Poético, o noir francês, também chamado de film policier ou poliziesco noir (polar, para os íntimos) é igualmente fruto de uma sopa de referências. Esteticamente bastante parecido com a versão americana (talvez com um pouquinho mais de luz) e tendo uma igual base no Expressionismo Alemão, além de referências literárias nacionais, como Honoré de Balzac, Victor Hugo, Georges Simenon e Pierre Mac Orlan, o noir francês se estendeu do final dos anos 1930 (existe uma certa divergência se em 1937 ou 1938) e perdurou até 1979. O neo-noir dos franceses, portanto, é a partir de 1980.
A essência do personagem masculino do noir francês foi cunhada pelo ator Jean Gabin, com seus personagens condenados pelo destino, um tipo de anti-herói de origem humilde, solitário, alienado, de poucas palavras e sofrendo as consequências de querer mudar de vida ou de uma situação complicada, mas muitas vezes não podendo fazer isso. Note que o fatalismo do Realismo Poético passa refigurado para o noir francês. Ou seja, estamos falando de um drama policial com pitadas de romance, mistérios (às vezes do tipo “quem matou?“, mas tendo uma formal investigação) e atmosfera com personagens sombrios que formam a base desse estilo na França. Em seu didático artigo sobre o tema, escrito para o BFI, Andrew Male dá conta de que no futuro, atores como Jean-Paul Belmondo e Alain Delon dariam sequência à tradição representativa de um “homem noir” para a França, embora com abordagens dramatúrgicas distintas: Belmondo iria por um caminho mais leve, irônico, quase cômico e Delon iria por um caminho mais macabro, sinistro.
O tratamento para as mulheres (as vamps) nesses filmes, que já não era dos melhores no Realismo Poético, muda bastante após a ocupação da Alemanha à França, formalizada em junho de 1940. Vítimas de muitas situações de violência e representação física e simbólica dos males do mundo, as mulheres são sempre personagens “causadoras“, e já na fase final do clássico polar, seriam muitas vezes escanteadas de todo. A ocupação da França pelos nazistas seria também um marco de mudança nas temáticas do estilo, com fortalecimento do cinismo, da noção de futilidade, de um forte sentimento de culpa e do existencialismo (ancorado em Albert Camus).
Assim como no caso do noir, classificarei aqui apenas o polar clássico, que vai até 1979. Os filmes a partir desse momento serão trabalhados em abordagens, diferenças e desconstruções em um outro momento.
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- 1940 - 1943
- 1944 - 1945
- 1946 - 1947
- 1948 - 1949
- 1950 - 1951
- 1952 - 1953
- 1954 - 1955
- 1956 - 1959
- Noir Francês (Polar)
A Sombra de uma Dúvida |
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Shadow of a Doubt |
Alfred Hitchcock |
1943 |
Um Retrato de Mulher |
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The Woman in the Window |
Fritz lang |
1944 |
Almas Perversas |
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Scarlet Street |
Fritz lang |
1945 |
Curva do Destino |
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Detour |
Edgar G. Ulmer |
1945 |
Interlúdio |
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Notorious |
Alfred Hitchcock |
1946 |
Os Assassinos |
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The Killers |
Robert Siodmak |
1946 |
Gilda |
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Gilda |
Charles Vidor |
1946 |
A Dama de Xangai |
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The Lady from Shanghai |
Orson Welles |
1947 |
Fuga do Passado |
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Out of the Past |
Jacques Tourneur |
1947 |
Emboscada |
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Lured |
Douglas Sirk |
1947 |
Fatalidade |
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A Double Life |
George Cukor |
1947 |
O Segredo da Porta Fechada |
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Secret Beyond the Door… |
Fritz Lang |
1948 |
Entre Dois Fogos |
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Raw Deal |
Anthony Mann |
1948 |
Apaixonados |
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Shockproof |
Douglas Sirk |
1949 |
Na Teia do Destino |
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The Reckless Moment |
Max Ophüls |
1949 |
O Terceiro Homem |
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The Third Man |
Carol Reed |
1949 |
Punhos de Campeão |
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The Set-Up |
Robert Wise |
1949 |
Pânico nas Ruas |
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Panic in the Streets |
Elia Kazan |
1950 |
No Silêncio da Noite |
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In a Lonely Night |
Nicholas Ray |
1950 |
Crepúsculo dos Deuses |
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Sunset Boulevard |
Billy Wilder |
1950 |
Chaga de Fogo |
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Detective Story |
William Wyler |
1951 |
Pacto Sinistro |
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Strangers on a Train |
Alfred Hitchcock |
1951 |
Cinzas Que Queimam |
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On Dangerous Ground |
Nicholas Ray, Ida Lupino |
1951 |
A Gardênia Azul |
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The Blue Gardenia |
Fritz Lang |
1953 |
Desejo Humano |
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Human Desire |
Fritz Lang |
1954 |
A Morte Num Beijo |
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Kiss me Deadly |
Robert Aldrich |
1955 |
A Morte Passou Por Perto |
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Killer’s Kiss |
Stanley Kubrick |
1955 |
O Mensageiro do Diabo |
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The Night of the Hunter |
Charles Laughton |
1955 |
O Homem Errado |
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The Wrong Man |
Alfred Hitchcock |
1956 |
A Maleta Fatídica |
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Nightfall |
Jacques Tourneur |
1956 |
O Grande Golpe |
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The Killing |
Stanley Kubrick |
1956 |
Um Corpo Que Cai |
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Vertigo |
Alfred Hitchcock |
1958 |
O Assassino Mora no 21 |
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L’assassin habite… au 21 |
Henri-Georges Clouzot |
1942 |
Cartas Anônimas (Sombra do Pavor) |
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Le Corbeau |
Henri-Georges Clouzot |
1943 |
Grisbi, Ouro Maldito |
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Touchez Pas aus Grisbi |
Jacques Becker |
1954 |
As Diabólicas |
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Les diaboliques |
Henri-Georges Clouzot |
1955 |
O Batedor de Carteiras |
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Pickpocket |
Robert Bresson |
1959 |
Acossado |
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À Bout de Souffle |
Jean-Luc Godard |
1960 |
Atirem no Pianista |
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Tirez Sur le Pianiste |
François Truffaut |
1960 |
Alphaville |
|||
Alphaville |
Jean-Luc Godard |
1965 |
Z |
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Z |
Constantin Costa-Gavras |
1968 |
A Sereia do Mississípi |
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La Sirène du Mississipi |
François Truffaut |
1969 |