As mulheres fatais nos acompanha há eras da história evolutiva da humanidade. Das representações mitológicas ao Filme Noir, passando pela retomada destas Belas, Sensuais e Fatais, tais personagens constantemente retornam para reforçar o potencial dramático deste profícuo subgênero do cinema. Agora é a vez de ler um pouco sobre bastidores e compreender como alguns destes clássicos modernos foram realizados. Este é um convite para você, leitor, embarcar no fechamento de um ciclo de reflexões sobre o tema que nos acompanha há algum tempo. Vamos nessa?
Eternamente Fatal, Atração Social e Atração Visual: Os Featurettes de Atração Fatal
Um clássico moderno que reestabeleceu o lugar da femme fatale no cinema mais atual e criou uma série de polêmicas em sua época de lançamento. Atração Fatal, dirigido por Adrian Lyne, teve Michael Douglas em sua primeira empreitada como vítima de uma viúva-negra do cinema, tendo enfrentado depois Sharon Stone e Demi Moore, em Instinto Selvagem e Assédio Sexual, filmes que compõem o que costumo chamar de “Trilogia de Michael Douglas” quando ministro alguma palestra ou escrevo algum texto sobre o assunto. Na produção lançada em 1987, ele interpreta um homem que se envolve com a personagem de Glenn Close, durante o final de semana que a sua esposa viaja com a filha. O que seria uma rápida diversão se torna um caos em sua vida, depois que a mulher insistentemente o persegue, cobrando-o pelos sentimentos desenvolvidos, não nutridos pelo pai de família “errante” que deseja algo apenas passageiro.
O legado é extenso, como sabemos, com produções posteriores que apresentam praticamente a mesma estrutura dramática, tais como Fixação e Obsessiva. Glenn Close, atriz que relutou diante das escolhas dos produtores para manter o desfecho original, teve que retornar para filmar o novo rumo delineado para a história. Na versão inicial, ela comete suicídio com a faca que contém as digitais do amante. Ele é levado preso, numa escolha pessimista que alguns envolvidos acreditaram ser o direcionamento errado em relação ao final feliz esperado pelo público. Após negociações, ficou decidido que a personagem de Close, em muitas cenas, com visual que a remetia ao mito de Medusa, seria aniquilada num encerramento apoteótico, com toques do cinema de Alfred Hitchcock, em especial, Psicose. Nos featurettes do relançamento da produção em DVD, temos uma faixa de comentários em áudio bizarra, narrada pelo cineasta responsável pela produção. O conteúdo, apesar de um pouco elucidativo, traz a contribuição preguiçosa de Adrian Lyne dizendo que não é muito bom para a missão proposta, pois a sua memória não é lá muito boa. Quem aguenta com isso? Pois bem, ainda assim, entre comentários desleixados e algumas observações relevantes, conseguimos extrair alguma coisa enquanto cinéfilos, críticos estudiosos ou até mesmo aqueles curiosos que adoram bastidores.
Ele comenta a relação com o elenco, com os demais membros da equipe técnica, descreve que a crítica às vezes é muito deturpadora de sentidos, destacando especialmente o seu close no porta retrato da família, no final do filme, algo que determinados textos interpretaram como “família que mata unida permanece unida”. Ele considera um equívoco e uma análise descuidada por parte de quem destacou esse ponto de vista. Sherry Lansing, produtora, conta que ficou obcecada pelo curta-metragem que inspirou Atração Fatal, uma história que terminava justamente no momento que o telefone toca e o coração do marido infiel dispara, em pânico diante da possibilidade de ser a amante entregando tudo. No filme, a cena é bem trabalhada, uma das partes mais icônicas e inclusive escolhida para ser a abertura do menu do DVD e do Blu-ray. Junto aos depoimentos do elenco que fala do magnetismo da equipe, temos cenas do filme em montagem alternada, como ilustrações do que é destacado pelos entrevistados.
O cineasta conta também que achou o material tão empolgante que leu tudo em apenas 90 minutos, após o texto ter chegado em suas mãos. Os produtores tinham assistido 9 ½ Semanas de Amor e se interessado pela perspectiva sensual do diretor. Anne Archer revela que o filme sobre sexualidade, infidelidade e relacionamentos frustrados foi um projeto desafiador em sua carreira, depoimento sucedido por Michael Douglas narrando as suas intrusões como ator que também trouxe opiniões e foi devidamente atendido, num duplo papel que o destacou como colaborador dos pertencentes ao posto de produtor. Glenn Close comenta sua experiência também desafiadora, diferente do que já tinha recebido enquanto material dramático para interpretar, tendo as cenas do seu teste como complemento da fala que também analisa a vulnerabilidade da personagem com sérios desequilíbrios emocionais, alguém que em seu ponto de vista, é tida como uma vilã aterrorizante para muitos, mas é uma figura também vítima do processo apresentado pela história desenvolvida em Atração Fatal.
Sem efeitos visuais e especiais como muleta, o filme é um marco histórico na carreira de todos os envolvidos e surpreendeu com as polêmicas que gerou, além da receptividade positiva nas bilheterias e nas cerimônias de premiação, em especial, o desejado Oscar. Críticos de cinema e pesquisadores do mundo acadêmica reflete a reação feminista da época, revoltada com a representatividade da mulher solteira e socialmente destacada no mercado de trabalho, tida como vilã, algo que todos confessam compreender, mas não ter percebido até que o problema fosse realçado pelos comentários na mídia. Atração Fatal também é um marco ao ter impactado muitos homens em casamentos tradicionais, pessoas que confessaram o medo dos desdobramentos de uma traição, preocupados com a possibilidade das mulheres fatais como a personagem de Glenn Close, existentes na vida real. A produção acabou se tornando uma fábula moral sobre relacionamentos, com aviso claro: se você trair a sua esposa, pode encontrar alguém tão voraz e fatal, capaz de lhe dar muito transtorno. É como a reação ao filme de Steven Spielberg, Tubarão, narrativa que ocasionou o medo de muita gente de tomar banho de mar.
Em linhas gerais, a história de infidelidade e suas possíveis consequências promoveu debates sobre sexo ser algo perigoso, em especial, fora do casamento, e ainda mais tenso, na era em que a AIDS não tinha sido compreendida como atualmente é por cientistas e pela sociedade em geral. Psicanaliticamente analisando, o marido infiel aqui contrai o equivalente a uma doença venérea, afinal, o personagem de Glenn Close é perigosamente mortal, como uma celeuma de saúde contraída por sexo inseguro. Como desfecho, os featurettes sobre a parte técnica abordam como os setores técnicos foram importantes para o sucesso estético de Atração Fatal. Ellen Mirojnick, Richard Dean, Howard Atherton e Mel Bourne, nos figurinos, na maquiagem, na direção de fotografia e no design de produção, respectivamente, contam como realizaram os seus trabalhados, depoimentos também associados com cenas do filme que ajudam na ilustração daquilo que é destacado. O visual sensual não apenas de Glenn, mas da esposa de Archer, igualmente atraente, o estilo adotado para Michael Douglas, longe da perspectiva de astro do cinema e da imagem pública do ator, os enquadramentos com ângulos baixos e os cenários que mesclavam tom urbano com ambientes de trabalho, focados em mergulhar os espectadores na casa/rua por onde transitam os personagens deste suspense intenso. Traços de uma narrativa bem planejada e concebida com esmero. Comentários da inesquecível trilha sonora de Maurice Jarre deixam uma lacuna nos featurettes. Paciência, não é mesmo?
Entrevista com Paul Verhoeven, Testes de Tela e Loira Fatal: os featurettes de Instinto Selvagem
Além das faixas de comentários com Paul Verhoeven e Jan de Bont, diretor e diretor de fotografia, respectivamente, de Instinto Selvagem, o conteúdo extra do clássico moderno traz uma análise da polêmica ensaísta acadêmica Camille Paglia, pesquisadora que se desdobra diante do processo de análise dos pormenores simbólicos da produção. É um material importante para os interessados no tema, bem como para os estudiosos de cinema. Verhoeven aparece também em uma entrevista longa, panorâmica e com pontuações específicas sobre diversos filmes seus, bem como opiniões sobre o andamento da indústria cinematográfica, em sua opinião, muito veloz, focada no puro entretenimento e sem conceitos mais firmes, tampouco tempo para melhor desenvolvimento de ideias. O diretor responde sobre as acusações de depravado, pervertido e antissocial, algo tido como visões superficiais de seu estilo, destacadas por críticos moralistas que não compreendem a sua visão em relação aos temas abordados em suas narrativas.
Um dos pontos mais interessantes da entrevista é a sua fala sobre o fato de Sharon Stone saber exatamente o que fazia na famosa cena da cruzada de pernas. Em tom de deboche, ele versa sobre o talento da atriz e do envolvimento do elenco nos bastidores, reforçando ainda que uma continuação seria pertinente se a história fosse bem desenvolvida. Nessa época, a sequência fracassada ainda não tinha sido lançada. Ademais, os featurettes de Instinto Selvagem abordam os testes de tela, com alguma passagens famosas, tais como a cena do interrogatório, e no breve Loira Venenosa, os atores comentam sobre os seus personagens e destacam as características que definem o fascínio do público diante de situações tão sujas e amorais, parte da teia da perigosa Catherine Tramell. São featurettes elucidativos, complementares das faixas excepcionais de áudio.
Love or Murder: Os Bastidores Do Equivocado Corpo em Evidência
Uma cópia pouco interessante de Instinto Selvagem? Bem isso. Corpo em Evidência é um desastre de grandes proporções. Todos estão péssimos, perdidos no roteiro ruim, na história que se alonga demais e no clima de quase plágio da mais interessante e sofisticada trajetória de Catherine Tramell, personagem de Sharon Stone, dirigida por Paul Verhoeven. Madonna também não está em seu melhor momento e como antagonista do filme, perde constantemente o fôlego na condução da enigmática, vulgar e manipuladora Rebecca Carlson. A artista participa do featurette brevíssimo, mas com diversos depoimentos que sintetizam o clima dos envolvidos, pessoas que de fato acreditaram na possibilidade desta narrativa funcionar, o que não aconteceu. A loira fatal conta, de maneira humorada, como amar pode ser terrível, ressaltando a complexidade do perfil interpretado, difícil de ser concebido. Willem Dafoe também comenta o seu personagem, num material superficial, quase parecido com um trailer, mas com exposições do diretor Uli Uedel e da atriz Anne Archer, esta última, já veterana em lidar com mulheres emocionalmente instáveis e manipuladoras, afinal, ela já tinha sido ameaçada por Glenn Close no eficiente Atração Fatal, filme que ecoa ainda hoje no bojo dos filmes com mulheres fatais.
Fixação, Uma Versão Menor e Equivocada do clássico moderno Atração Fatal
Uma garota de realidade distorcida, com posturas psicóticas e perfil perigosamente egoísta. Essa é Madison Bell, personagem de Erika Christensen em Fixação, uma versão para 2002 do clássico moderno analisado no tópico anterior. Na trama, ela adota a mesma postura de seu ponto de partida inspirador, Glenn Close, para infernizar a vida do jovem Ben Cronin, interpretado por Jesse Bradford. Ele é um rapaz exemplar, campeão do time de natação e tem uma namorada doce e gentil, em suma, o padrão de pessoa invejada por muitos. As coisas mudam após conhecer essa enigmática garota perigosa. Eles flertam rapidamente num breve incidente nas imediações da instituição de ensino onde a história se desenrola e após alguns truques e pressões, uma relação sexual se estabelece e o que vem depois disso é um espiral de obsessão e horror. No featurette, o elenco comenta sobre os seus personagens, o diretor John Polso delineia que seu filme é uma versão de Atração Fatal para uma geração mais jovem e destaca o desempenho dramático da antagonista, psicótico e exagerado, bem de acordo com as suas intenções narrativas. Fraco, o material de bastidores revela obviedades e é um reflexo do filme em si, uma produção com potencial desperdiçado, um tanto morosa e repetitiva.
Entrevistas sobre O Preço da Traição: Uma Conversa com
Amanda Seyfried e Julianne Moore
Na entrevista com Amanda Seyfried, a jovem atriz conta, maravilhada, como foi inspirador trabalhar com Julianne Moore e Liam Neeson, atores de outra geração, talentosos e capazes de entrar e sair dos seus personagens com muita destreza. Em sua concepção, O Preço da Traição foi o filme que lhe trouxe o papel mais desafiador até então, isto é, em 2010, ano de lançamento do suspense que fracassou, grifo meu, por motivos dramáticos, mas também pela direção pecaminosa, além do desenvolvimento anticlimático de seu texto. Em sua fala, Amanda Seyfried destaca os elementos que compõem o perfil psicológico de Chloe e seu estilo de viver. Engraçado observar que os depoimentos da atriz parecem vir de alguém tenso, um pouco atrapalhada, sabe-se lá por qual motivo de bastidores. É uma das entrevistas para featurettes de cinema que mais se destaca pelo estado emocional tenso da depoente. Ademais, ela revela que o olhar foi um dos pontos mais trabalhados, pois Chloe consegue transmitir o que necessita apenas com alguns enquadramentos mais detalhistas da direção de fotografia do filme.
Os figurinos a ajudaram no deslocamento mais fluente entre as cenas e os momentos de erotismo, bastante desafiadores, permitiram que ela conseguisse ir além do que já tinha executado dramaticamente em outras ocasiões. Em sua entrevista, Julianne Moore conta que a cena erótica com a mais jovem foi desafiadora, tal como qualquer outra abordagem do tipo, momentos de vulnerabilidade, etc. Admiradora do trabalho de Atom Egoyan, diretor do filme, a atriz conta que sempre teve vontade de trabalhar com o realizador. O Preço da Traição foi a sua oportunidade. Interessada em lógica e realismo, Julianne Moore revela que deu pitacos no desenvolvimento da produção e que o diretor foi muito solícito no desenvolvimento de seu personagem. Na breve, mas elucidativa entrevista, ela conta como o mundo da figura ficcional que interpreta e o de Chloe são distintos, num embate que gera muita emoção entre todas as partes envolvidas. Para quem não conhece, no filme, a atriz interpreta uma esposa que contrata uma garota de programa para seduzir o seu marido e compreendê-lo, sem saber que a tentativa arriscada traria consequências aterrorizantes para o seu cotidiano.
Jogando Junto: Os Bastidores de Obsessiva
Não é preciso muito esforço para perceber que Obsessiva, protagonizado por Idris Elba, Beyoncé e Ali Larter é uma narrativa inspirada no clássico moderno Atração Fatal, com a diferença para o desenvolvimento da psicopatia originada apenas da imaginação fértil da loira fatal, apaixonada por seu chefe, mas sem receber qualquer sinal de desejo por parte da figura masculina que aqui, não se relaciona sexualmente com a sua contratada. Dentre os participantes dos featurettes, temos o roteirista, o diretor e os membros do elenco principal. William Packer, responsável pelo texto, reforça que já vimos essa história antes, mas por um viés diferente. Ele assume o ponto de partida inspirador, seguido do depoimento de Beyoncé sobre Sharon, a esposa que não tinha muito destaque na primeira versão do texto, reformulada depois que a intérprete solicitou mudanças, haja vista o seu lugar também como produtora do filme. Em suma, o conteúdo promocional do filme em questão versa sobre os seus atributos estéticos na construção dos elementos dramáticos que engendram a narrativa contada noutras numerosas vezes.
Quem já assistiu Obsessiva consegue fazer ilações com o telefilme Presença de Elena, enredo com propostas dramáticas similares, mas com desfecho distinto. Um dos pontos de maior destaque do material é a concepção dos figurinos, setor que evita o visual desinteressante da dona de casa, geralmente menos atraente que as tentações das mulheres que encarnam o arquétipo da femme fatale neste tipo de história. Ali Larter, trajada com os clássicos vestuários de alguém no ambiente de trabalho, traz um tom de linhas sensuais, com seus saltos altos, peças justas e formuladas conforme o desenvolvimento de suas curvas. É um excesso de sensualidade que evita cair na vulgaridade e tornar a sua imagem cafona demais. Idris Elba também é um personagem estiloso, trajado por peças sofisticadas que dialogam com o seu padrão de vida, isto é, alguém que tem o conforto e o luxo como elementos de composição de seu cotidiano. Todos os personagens, devidamente conectados entre moda e perfil físico, social e psicológico, ganham uma abordagem assertiva, graças também ao bom trabalho da direção de fotografia.
Entre Lençóis: Instinto Selvagem 2
Um filme de deduções e ambiguidades. Assim é Instinto Selvagem 2, produção analisada com otimismo nesse featurette produzido antes do seu lançamento e da catastrófica recepção da crítica e do público, todos uníssonos nas comparações com o primeiro, uma obra-prima, narrativa que teve o seu discurso trocado por um feixe de diálogos e situações vulgares. Quem vos escreve tem um sentimento culposo com a continuação da saga de Catherine Tramell, mas reconhece a queda na qualidade dramática nesta nova história, proposta que se não fosse associada ao filme de 1992, poderia tranquilamente ser um painel de personagens e acontecimentos independentes, sobre uma mulher fatal, doentia e manipuladora, deliciosamente irônica e mordaz. A cena da cruzada de pernas, 14 anos depois, é rememorada, um mito do cinema moderno, desafio para os realizadores conseguirem transpor as expectativas de quem aguardou tanto pelo retorno da viúva-negra interpretada por Sharon Stone.
Montado com depoimentos dos atores, produtores, roteirista e diretor, Entre Lençóis reflete o tom de sensualidade e provocação, deduções e ambiguidades, tensão sexual e ética nos relacionamentos humanos que debandam para a selvageria quando a escritora Catherine Tramell se encontra em um novo turbilhão de emoções diante da morte de um homem famoso, pessoa pública que pode ser mais uma de suas vítimas, aniquiladas sem culpa pela loira fatal que sempre tem como álibis, uma série de itens planejados, desde a mesma situação descrita no romance aos personagens manipulados que acabam se tornando possíveis suspeitos, sombreando a sua culpabilidade. Questões enigmáticas foram propostas pelo roteiro, como afirmam os realizadores, focados em trazer a história para Londres, numa perspectiva diferente das narrativas cinematográficas filmadas neste espaço cênico. Os policiais ingleses, os ônibus vermelhos e o Big Ben são trocados por cenas noturnas focadas na parte sensual da arquitetura desta capital que na história, esconde os segredos mais tenebrosos da loira mortal.