Game of Thrones é uma experiência cinematográfica! Assim a ação promocional de lançamento da primeira temporada da série em DVD vendia o seu produto. Com um pouco de maturidade teórica em simbiose com práticas de análise audiovisual, o espectador conseguirá observar os esquemas que engendram a construção de elementos simbólicos na composição visual da série que encerra a sua trajetória na sua oitava temporada. O que faz, no entanto, de Game of Thrones, uma ilustração digna para o terreno dos enquadramentos, da movimentação e dos ângulos de câmera?
O “quadro dentro do quadro”, os planos que parecem pinturas: o papel criador da câmera em Game of Thrones é eficiente até mesmo quando o roteiro não consegue dar conta do recado dramático ao longo de suas oito temporadas.
A sua qualidade cinematográfica, caro leitor, visivelmente estampada nos episódios produzidos com excelência na condução da iluminação, dos planos que emolduram os personagens em suas ações e na destreza dos diretores de fotografia na condução dos caminhos percorridos pelo roteiro, mesmo quando dramaticamente frágeis entregam imagens deslumbrantes. Em meio aos diversos ambientes/reinos e suas respectivas amplitudes de cenários para captação, Game of Thrones é um exercício audiovisual elegante, produzido numa era contemporânea aos deslumbres fotográficos de Breaking Bad, House of Cards, etc.
O artigo “Direção de Fotografia no Cinema” já esclareceu algumas questões sobre o campo de atuação, tendo em vista delinear as funções e principais passos dos profissionais desta área de produção. Estão entre as atividades do setor, cuidar da iluminação, enquadrar, acompanhar os movimentos de câmera dos personagens, dentre outras tarefas. Iremos excursionar, desta vez, pelas molduras em movimento em nossas telas, tendo em vista compreender as escolhas narrativas que empregam sentidos aos enquadramentos audiovisuais, sendo o geograficamente amplo mundo de Westeros o nosso direcionamento.
Informações basilares: algumas convenções da imagem em audiovisual
(03 trechos com planos gerais: enquadramentos que situam o espectador no espaço da narrativa)
O quadro apresentado na tela de cinema, TV, celular ou computador é o veículo de transmissão das imagens de uma produção narrativa audiovisual. A maneira como tais imagens estão dispostas para o espectador é parte da organização do setor responsável pela fotografia. Há, dentro deste segmento, algumas convenções básicas que não devem ser encaradas como regras absolutas para quem produz/consome audiovisual, mas são mecanismos que tornam as narrativas parte de um sistema de símbolos concatenados em busca de significação para as suas mensagens.
Importante conhecer a regra de Hitchcock, noções de profundidade de campo, campo de visão, a regra dos três terços, as composições balanceadas/não balanceadas, a regra dos 180° graus, as proporções de tela, a função dos ângulos altos e baixos, etc. Não significa que as denominações apresentadas tenham que ser seguidas detidamente numa produção audiovisual, mas são partes integrantes de um sistema de imagens que pode ser subvertido, a depender das necessidades narrativas de cada realizador, mas que no entanto, precisam ser compreendidas, pois fazem parte de uma arte que não evoluiu do nada, como veremos no próximo tópico, O Papel Criador da Câmera em Game of Thrones.
Com elementos que emularam a linguagem do teatro, da pintura e da literatura, as imagens no audiovisual contemporâneo demonstram a fluidez simbiótica das linguagens do cinema, do videoclipe, da publicidade e da televisão, isto é, um longo e vasto percurso histórico-cultural acompanhado por relações intersemióticas constantes. Antes de adentrar na análise específica dos enquadramentos, tendo em vista ilustrar o que é e como funcionam os planos gerais, americanos, médios, bem como os contra-planos, plongèes, zenitais e outros ângulos, torna-se necessário fazer um breve panorama das regras básicas citadas anteriormente.
(03 imagens elucidativas: uma ilustração das proporções de tela, o esboço de produção demonstrativo da regra dos 180º na direção de fotografia de John Toll para o drama de guerra Além da Linha Vermelha, de Terrence Malick, e uma didática ilustração sobre o campo de visão, todos extraídos do elucidativo O Olhar do Cineasta, de Gustavo Mercado)
Por que é preciso conhecer as proporções de tela? Importante que o realizador tenha em mente a proporção da tela onde sua narrativa será transmitida quando finalizada. Em alguns casos, torna-se fundamental que o espectador também saiba ao selecionar o filme que pretende assistir, pois há alguns casos curiosos, como o apresentado no artigo anterior sobre Direção de Fotografia, referente ao DVD do filme Premonição 2. Lançado no Brasil em Fullscreen, a imagem veiculada na mídia perdia detalhes importantes das extremidades, pois os aparelhos populares já estavam adaptados em sua época ao modelo Widescreen, próximo ao da exibição na tela de cinema no formato estadunidense, geralmente uma tendência adotada globalmente.
Sendo assim, observa-se que é fundamental que o realizador conheça as proporções para que as escolhas narrativas de seus enquadramentos não deixem de preservar os seus significados durante a exibição. Conhecida como a largura e altura do quadro, as proporções mais comuns são nomeadas por 1,66:1 (padrão europeu de tela de cinema), 1,78:1 (padrão HDTV), 1,85:1 (padrão estadunidense de tela de cinema, também conhecido como “flat” ), 2,39:1 (o formato anamórfico). Observe a ilustração anterior ao tópico e visualize tais dimensões que induzem muitos significados no processo de exibição da narrativa pronta para consumo.
(A regra dos três terços aplicada para um plano médio de Daenerys. Na segunda imagem, a regra de Hitchcock é aplicada quando o trono, motivo de lutas e intrigas em Westeros, encontra-se no meio de um diálogo importante entre os despóticos Cersei e Joffrey Lannister)
Regra dos Três Terços: uma convenção absoluta? Oriunda da junção de convenções seculares no campo da arte imagética, a regra dos três terços é didática e funciona muito bem para a condução narrativa. Divide-se o quadro em três partes iguais, na altura e na largura. A ideia é criar um guia composicional para as articulações entre os diversos membros envolvidos numa produção, uma espécie de cartografia da imagem. Com a imagem dividida desta maneira, os realizadores podem fazer estudos de maneira que todos dialoguem dentro de uma mesma perspectiva na escolha de movimentos, elementos e demais questões conectadas ao que se constrói dentro de determinado plano narrativo.
O que é e para que serve a regra de Hitchcock? O mestre do suspense foi um realizador que deu ao cinema uma vasta colaboração no campo da composição visual. No famoso livro Hitchcock/Truffaut, uma publicação “obrigatória” para todo cinéfilo e simpatizante da sétima arte, o cineasta dos clássicos Psicose, Janela Indiscreta, Os Pássaros, dentre outras obras-primas afirma para o diretor francês que o tamanho de um objeto em cena deve estar direcionado para a sua importância na história no momento em que é captado. Além da possibilidade de criar tensão e alimentar a condução do suspense, a regra em questão possibilita que o espectador tenha o objeto como ênfase visual e o interprete, mesmo que de maneira inconsciente, como parte simbólica do trecho em que é explicitado.
Como compreender o campo de visão e os eixos dos quadros? Um quadro é uma unidade geométrica bidimensional, definido por dois eixos, x (horizontal) e y (vertical). Sendo assim, na busca por planos mais dinâmicos, a profundidade de campo é encontrada quando estamos diante do eixo z, definidor de significação narrativa na seara em questão. Para compreender melhor os eixos, faz-se necessário entender também sobre o campo de visão, isto é, a quantidade de espaço ao longo dos eixos x e y. As objetivas são as captações com distâncias focais mais curtas, o que permite a criação de ângulos amplos, diferente das teleobjetivas, forma de captação com distancia focal mais longa, o que culmina num campo de visão menor. A exclusão ou inclusão de elementos visuais numa produção depende da compreensão destas regras.
(03 trechos com sobreposições que destacam a busca pela tridimensionalidade do quadro)
A Profundidade de Campo é mesmo relevante? A criação de profundidade permite que o cinema supere a bidimensionalidade dos seus quadros e permitir que a espacialidade da narrativa seja apresentada de maneira mais dinâmica, isto é, com tridimensionalidade verossimilhante. A sobreposição de objetos é um dos recursos mais comuns, tendo em vista permitir que possamos perceber o intervalo de distância ao longo do eixo z. As mudanças da câmera em relação ao tema abordado é uma opção, o que torna a manipulação narrativa/simbólica da cena um recurso de alta expressividade numa produção audiovisual.
(03 excertos com os ângulos baixos utilizados no formato clássico, isto é, na transmissão da ideia de poder e glória momentânea de personagens importantes em Game of Thrones)
Ângulos altos e baixos: o que isso indica narrativamente? A altura da câmera em relação a um tema pode ser usada para manipular o relacionamento entre o tema e os espectadores. Uma câmera baixa, por convenção, passa a ideia de confiança, poder e controle, tais como alguns trechos dos momentos de glórias dos protagonistas de Cidadão Kane, Malcolm X e Gravidade, produções renomadas de Orson Welles, Spike Lee e Alfonso Cuarón, respectivamente. Os ângulos altos, por sua vez, indicam fraqueza, impotência ou passividade diante de algo/alguém opressor, regras que não são, como já apontado anteriormente, absolutas, mas apenas um padrão narrativo clássico que pode ganhar novos significados a depender de quem os utiliza.
Como diferencio composições balanceadas e não balanceadas? Basicamente, as balanceadas são composições uniformizadas, ilustrativas de momentos carregados de predeterminação e ordem, em oposição aos momentos não balanceados, segmentos narrativos inquietos e cheios de tensão, geralmente propositais, a depender do tema e do clima narrativo, criados para causar estranheza. Como sabemos, no geral, cada objeto presente em cena carrega a sua responsabilidade visual. Por isso, espera-se que estejam devidamente organizados para os momentos de equilíbrio narrativo e desorganizados quando a ideia é expor que as coisas estão narrativamente fora do seu devido lugar.
Há quem produza não balanceamento por falta de competência, mas em muitos casos, alguns realizadores pretendem mesmo é subverter as normas clássicas, o que não apresenta problema, desde que seja bem feito e não crie “ruído” narrativo desnecessário. As nomenclaturas, presentes no livro de Gustavo Mercado, não pretendem hierarquizar, apenas criar códigos para que possamos dialogar.
É preciso mesmo obedecer a Regra dos 180°? Basta assistir ao filme A Cartomante, de Wagner Assis e Pablo Uranga, adaptação de um dos melhores contos do escritor Machado de Assis. Conforme os manuais básicos, a regra foi projetada para que possamos manter a continuidade espacial que deve existir sempre que alguns temas interagem diante de uma cena. A regra não é complexa. Pede-se apenas que a câmera fique posicionada na linha imaginária do olhar ou do movimento estabelecido nos planos de maior amplitude. Como as demais regras, não significa que sejam imutáveis, mas é preciso conhece-las para subverte-las adequadamente. Como na imagem ilustrativa, a sequência de planos com diálogos precisa manter a linha imaginária para que haja verossimilhança no direcionamento dos olhares dos personagens, tendo em vista evitar falhas/lacunas na condução da narrativa.
Diante deste conjunto de regras, nos encontramos no sistema de imagem, agrupamento de planos com carga simbólica dentro de um filme/série/videoclipe, reconhecíveis durante o seu processo interpretativo. Como sabemos, a câmera possui um papel criador fundamental para o panorama de significados no audiovisual. É como a base para a pintura de uma obra de arte, as palavras de um romance literário, em suma, um suporte básico para a existência do cinema e da televisão. Alguns de seus enquadramentos serão delineados no tópico seguinte, tendo como foco a adaptação televisiva da HBO para o universo fantástico do escritor George Martin.
O Papel Criador da Câmera: Um recorte Analítico de Game of Thrones
Plano Geral: é um enquadramento situacional. As nomenclaturas, cabe ressaltar, modificam-se a depender do manual de linguagem audiovisual adotado, mas o importante é perceber que precisamos encontrar similitudes para que todos dialoguem com o mesmo código. O plano geral possui como uma de suas funções narrativas, situar o espectador no espaço dramático, tendo em vista captar o máximo de informações para que possamos, além de nos situarmos, compreendermos a composição visual da cena e os seus significados. Junto ao ângulo zenital, o plano geral é um dos maiores aliados de Game of Thrones.
Plano Médio: é um enquadramento mais fechado que o geral, interessado em captar o personagem ou algum objeto, sem necessariamente deixá-los como elemento único da cena, mas ao menos centralizá-los dentro da dinâmica interna visual. Em Game of Thrones é muito utilizado com um personagem centralizado, em ação frenética ou durante algum diálogo mais ameno. Em outras mídias, tal como o jornalismo televisivo, é utilizado com alguma frequência.
Primeiríssimo Plano: conhecido por ser quase um close-up, o primeiríssimo plano capta emoções numa cena dramaticamente relevante. As três personagens femininas que aparecem no excerto estão em momentos de profunda reflexão, cada uma à sua maneira, durante determinadas passagens da série.
Plano Detalhe: é muito próximo do conceito adotado pela regra de Hitchcock. É o momento de captação de um detalhe do personagem ou objeto que ao longo da cena, possui função de extrema relevância. O selo que demarca o envio de uma correspondência importante, o olhar de um personagem traído que reconhece o amargo destino que o aguarda, bem como a arma branca responsável por ceifar uma das numerosas vidas dizimadas em Game of Thrones fazem parte do excerto em destaque.
Contra-plano e “outros planos”: conhecido também como over the shoulder, muito utilizado em entrevistas, no cinema, nas séries e em especial, ao longo de Game of Thrones, é utilizado para cenas de diálogos intensos, o que permite dinamismo na composição visual interna da narrativa. Aponto Crash – No Limite, de Paul Haggis, como um dos melhores usos de contra-plano já contemplados ao longo de minha relativamente recente trajetória cinéfila. Há muitos outros exemplos igualmente valiosos, mas creio que este seja um dos mais memoráveis em meu ponto de vista. O “outro plano” descrito no título do tópico não fica definido como um ponto de vista, pois só podemos adotar a nomenclatura se caso houvesse um personagem dentro do bueiro. Neste caso, é um ousado e sofisticado plano, sendo que nós podemos ser o personagem, então funciona como um ponto de vista.
Plongèe e Contra-plongèe: o plano do poder por excelência. Ideal para Game of Thrones. Pode ser subvertido, mas no geral, indica as observações apontadas no tópico sobre ângulos altos e baixos da primeira parte do artigo. A sua tradução do francês significa “mergulho”. Mergulho e contra-mergulho. Muito comum em cenas de poder e vigor quando utilizado de baixo para cima, tal como podemos ver nas imagens acima, e ao contrário, indica passividade e opressão. Podemos perceber a afirmação quando nos colocamos no lugar das pessoas que observam os personagens acima. Jaime, no excerto central da segunda linha de planos está oprimido em relação ao ambiente que acaba de visitar, pois o ângulo também pode ser utilizado quando apresentamos casas, igrejas ou qualquer local em situação de exaltação. Em Horror em Amityville é frequentemente abordado na contemplação da amaldiçoada casa.
Zenital: ângulo ideal para cenas de tensão, o zenital é uma das abordagens mais poderosas de Game of Thrones. Permite que possamos ter uma visão geral das questões narrativas de um olhar privilegiado. Muito comum em cenas de batalha, constantemente utilizado em The Walking Dead na chegada de alguma horda de zumbis, bem como na guerra dos tronos para os momentos de combate. Também conhecido por plongèe absoluto, capta-se quando colocado no alto do cenário e apontado diretamente para baixo. Seu nome é oriundo do ponto central do céu, ao olharmos diretamente para ele. Nas cenas em destaque, o ângulo é mais uma demonstração de que a planificação em audiovisual é um processo em etapas de ampla significação, não sendo apenas, como já sabemos, um conjunto de escolhas aleatórias no bojo de uma narrativa.
Leituras Adicionais. Quer saber mais sobre o assunto?
BROWN, Blair. Cinematografia: teoria e prática. Trad. Edson Furnankiewiez. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
MARTIN, André Luiz. A luz no cinema. Dissertação (Mestrado). Belo Horizonte, 2004. Escola de Belas Artes. Universidade Federal de Minas Gerais.
MARTIN, Marcel. O papel criador da câmera. In: A Linguagem Cinematográfica. Tradução: Paulo Neves. 2ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 2011.
MERCADO, Gustavo. O olhar do cineasta: aprenda (e quebre) as regras da composição cinematográfica. Trad. Edson Furnankiewiez. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
MOURA, Edgar. 50 anos: Luz, Câmera e Ação. 5ª ed. São Paulo: Editora SENAC, 1999.
WOLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015.