Um dos clássicos de literatura mais traduzidos para a linguagem cinematográfica, Drácula, romance epistolar do escritor Bram Stoker é uma história que atravessou diversos ciclos e ainda hoje é constantemente retomado como ponto de partida para novas versões de sua estrutura narrativa. Publicado em 1897, o livro traz, por intermédio do interessante olhar dos personagens que trafegam pelo espaço de ambientação gótica, uma série de discussões sobre orientalismo, metáforas para a sífilis, em alta na época, haja vista a transmissão sanguínea e por fluídos, isto é, o contato sexual, além de versar sobre o papel da Nova Mulher, numa era de declínio para o império britânico em diversas perspectivas. Fruto de uma extensa pesquisa realizada por seu autor, o livro já gerou um manancial de interpretações de cunho acadêmico, promove debates em documentários, podcasts, dentre outros, sendo um objeto de culto constantemente relido em nossa sociedade. Tendo em vista contemplar algumas de suas principais versões para o cinema, selecionei alguns filmes para despontar com esta análise breve, mas creio que elucidativa. O texto, caro leitor, radiografa aspectos de quatro traduções do romance: Drácula, de Tod Browning; O Vampiro da Noite, de Terence Fisher (1958); Drácula, de John Badham (1979); e Drácula de Bram Stoker, de Francis Ford Coppola (1992). Aqui, a ideia também é versar sobre as imersões de Bela Lugosi, Christopher Lee, Frank Langella e Gary Oldman como a criatura da noite mais icônica da literatura e, consequentemente, da história do cinema.
Vamos nessa?
A Universal e o Império de Horror: Bela Lugosi como Drácula
Dois filmes, um só estúdio. O foco da Universal era iniciar um longo e rentável ciclo de monstros clássicos e, para isso, desenvolveu Drácula por duas vias, em língua inglesa e espanhola. A sábia ideia capitalista era globalizar o seu domínio diante desta arte que apaziguava um mundo em profunda crise e também em transformações vertiginosas. Aqui, dedico-me ao personagem interpretado por Bela Lugosi, a primeira grande referência no audiovisual para o Conde Drácula, sem contar a versão não autorizada de F. W. Murnau e sua equipe em Nosferatu, o polêmico clássico expressionista que foi considerado uma adaptação não autorizada e, por isso, sofreu represálias judiciais por parte da viúva de Bram Stoker. Lançado em 1931, Drácula, dirigido por Tod Browning, é repleto de limitações, em especial, por sua época ainda restrita no que tange ao avanço do cinema enquanto linguagem mais autêntica. Há um charme elegante na longa capa preta e no cabelo devidamente penteado para trás, mas no quesito terror, o filme é morno, tendo em vista também o contexto de seu lançamento. As pessoas não estavam preparadas para jorros de sangue e sexualidade, algo concebido posteriormente, com o ciclo da Hammer. O mote, nesta narrativa, é o estabelecimento do império de Drácula na cidade grande, após a sua obsessão pela mulher que considera a chave para apazigua a sua existência solitária.
No período, a Universal tinha iniciado a sua relação com o terror em O Corcunda de Notre Dame (1923), ainda não sonoro, e com O Fantasma da Ópera, intensificando os processos e incluindo a tecnologia da sonorização em 1931, com Drácula. A década de 1920, profícua para comédias populares, adiou o estabelecimento deste ciclo potencializado mais próximo do desfecho do decênio. O Homem Invisível, Frankenstein, A Múmia e outros filmes vieram na esteira do sucesso de bilheteria. O ator húngaro, não tratado como primeira opção no processo, atuou como o famoso vampiro e criou a imagem consolidada no imaginário, tal como conhecemos e contemplamos ainda hoje. Ele foi uma importante contribuição para o legado e o impacto cultural de Drácula. Para assegurar as continuações, o estúdio apostou no grau de parentesco. Após a produção de 1931, em preto e branco, realizaram A Filha de Drácula, em 1936, O Filho de Drácula, em 1943, além de trazer o personagem em junção com outros monstros em A Casa de Frankenstein (1944) e A Casa de Drácula (1945). Todos com evidente queda de qualidade dramática e estética.
Empreitada de Sangue: Christopher Lee é o Conde Drácula
O primeiro de uma panorâmica jornada para o personagem de Bram Stoker. O Vampiro da Noite é uma produção de um contexto complicado para o cinema, colapsando em seu domínio de entretenimento por causa da popularização da televisão. Com Anthony Hinds e Michael Carreras como base para engrenagem do projeto, o filme de 1958 traz Christopher Lee como o vampiro que dominaria sua carreira nos anos seguintes, numa longa jornada de narrativas que exauriram a imagem do conde sanguinolento e ameaçador. Sem grande intensidade, mas com momentos marcantes, esta tradução do romance marcou época e hoje é um clássico muito reverenciado por uma extensa base de fãs. Apesar de não aparecer tanto em cena como esperamos, o personagem de Christopher Lee consegue um magnetismo incrível com a câmera, se apresentando como aterrorizante e convincente. A abertura lembra em partes o preâmbulo da versão de 1992, de Francis Ford Coppola, o que me levou a interpretar que o cineasta também tomou O Vampiro da Noite como parte de sua pesquisa e inspiração para conduzir a sua trama estilosa. Atmosférica, esta leitura do final da década de 1950 traz uma narração imersiva logo em seus primeiros momentos, nos mostrando um vampiro ambíguo, ora sedutor, ora violento.
Colorido, revigorando o que a Universal tinha feito em seu ciclo de monstros, ainda em preto e branco, o recurso tecnológico do estúdio britânico Hammer trazia o vampiro em sua sanguinolência vibrante, revestido por uma aura sensual de sexualidade latente. Era tudo muito mais chocante, em especial, por causa do contexto de produção e lançamento. Hoje estamos habituados ao sangue escorrendo por nossas telas, por meio de espetáculos de violência viscerais, mas na época as plateias não estavam acostumadas, ocasionando um choque tremendo para o público. Ver Drácula se decompor no desfecho ou contemplar os seus olhos ensanguentados eram algo inovador. Ademais, ao ampliar as dimensões do personagem em seu desempenho dramático, o intérprete do vampiro alargava os limites estabelecidos por seu antecessor, Bela Lugosi, dando nova visibilidade para o icônico monstro. Aqui, Jonathan Harker não é um agente imobiliário, mas um bibliotecário que vai assumir a catalogação do acervo de seu cliente, para depois descobrir, da pior maneira, os reais interesses do vampiro.
O clima gótico em O Vampiro da Noite é estabelecido pela direção de fotografia e design de produção, assinados por Jack Asher e Bernard Robinson, respectivamente, setores responsáveis por pavimentar a caminhada dos personagens em direção à ruína ao ter que lidar com uma criatura tão nefasta quanto o vampiro impiedoso. James Bernard, o compositor da trilha sonora, criou aqui uma base para alguns ajustes nas sequências do vampiro lançadas pela Hammer: O Príncipe das Trevas, O Perfil do Diabo, As Noivas do Vampiro, O Sangue de Drácula, As Cicatrizes de Drácula, Drácula no Mundo da Minissaia, Os Ritos Satânicos de Drácula e A Lenda dos Sete Vampiros. Ademais, na trama, quem assume o papel de Van Helsing é Peter Cushing, ator que retornaria em todas as demais empreitadas em torno do Conde Drácula, até mesmo na versão não assumida por Christopher Lee. Em linhas gerais, O Vampiro da Noite pode não ser a melhor tradução de Drácula para a linguagem cinematográfica, mas cumpre com sua eficiência a missão de entretenimento, além de estabelecer padrões adotados por filmes posteriores. São 82 minutos de situações envolvendo personagens em perigo, gritos, ataques com mordidas que escorrem sangue, um vampiro com sua estilosa capa preta longa e muitos outros acontecimentos vertiginosos que demonstram o potencial do livro ponto de partida para a abordagem audiovisual.
As Dimensões Românticas de Drácula, Interpretado por Frank Langella
A década de 1970 foi bastante profícua para as traduções do romance de Bram Stoker. Além da continuidade do quase interminável ciclo da Hammer, Werner Herzog assumiu a refilmagem de Nosferatu e outros diretores produziram versões mais independentes do clássico. Mesmo com esse cenário de desgaste, é possível contemplar Drácula, de 1979, como um filme brilhantemente realizado. Ainda sanguinário, mas com um tom mais romântico que reflete a sua sina solitária, este filme dirigido por John Badham, cineasta que tem como base o roteiro de Hamilton Deane, W. D. Richter e John L. Balderston apresenta o conde pela interpretação do sedutor Frank Langella, alterando alguns pontos de partida do livro e mantendo a tradução com um direcionamento mais ousado que os padrões adotados por versões anteriores. Donald Pleasence, o eterno nêmesis de Michael Myers, aqui assume o papel de Dr. Seward, após negar a oferta para interpretar Van Helsing, personagem destinado ao ator Laurence Olivier. Tela escura, uivos e um morcego demarcam a cena de abertura, impactante e atmosférica. Um castelo distante e a imponência da lua deixam o espectador ciente do tom gótico da narrativa. Trovões e relâmpagos constantes dão continuidade ao que é estabelecido neste primeiro momento. Partindo de uma referência ao capítulo que delineia a viagem do Deméter, o filme já começa com a chegada do vampiro em Londres.
Charmoso e educado, ele faz várias amizades e consegue trafegar por espaços prestigiados da sociedade, sendo rejeitado apenas por Van Helsing, personagem que insiste na estranheza deste misterioso homem recém-chegado ao local. Frank Langella, ator que já tinha dominado o conde nos palcos teatrais, cumpre bem a sua missão ao sair da esquisitice e do tom de repulsa, deixando o seu Drácula exalar charme, carisma e uma sensualidade hipnótica, algo que deixa as suas vítimas, em específico, as mulheres, encantadas com a sedução. Tão interessante quanto aos demais bons filmes do universo inspirado no romance de Bram Stoker, há muito rigor no desenvolvimento narrativo, bem como a exposição de uma estética eficiente. A direção de fotografia e o design de produção, assinados por Gilbert Taylor e Peter Murton, respectivamente, conferem a atmosfera gótica esperada deste tipo de narrativa. Os figurinos de Julie Harris também é outro trunfo. Ademais, ao longo de seus 109 minutos, somos brindados pela textura percussiva do veterano John Williams, outro acerto da produção, trilha sonora que embala as aventuras do vampiro condenado ao doloroso processo da eternidade. Há, inclusive, numa cena de chegada de trem em uma estação, uma parte da composição sonora que em muito nos remete ao clássico trabalho do músico em Tubarão.
Retorno ao Básico: Coppola e Seu Drácula Estiloso
Apesar de toda tecnologia já disponível em 1992, o cineasta Francis Ford Coppola, na época, já estabelecido no ramo do entretenimento, preferiu aderir aos recursos das antigas para conceber a sua versão cinematográfica do livro de Bram Stoker. Na composição de sua narrativa, o diretor utiliza elementos das bases do cinema, tendo em vista dar um tom diferenciado para a sua tradução do romance que, na juventude, tinha sido um marco em suas experiências formativas de leitura. Para a condução da trama, teve Keanu Reeves como Jonathan Harker, Anthony Hopkins como Abraham Van Helsing, Winona Ryder como Mina Murray e Gary Oldman como o Conde Drácula, todos muito qualificados em seus desempenhos dramáticos. No desenvolvimento, o realizador tomou algumas liberdades com o roteiro de James V. Hart, ajudando no reordenamento de personagens, mudança de perspectivas na icônica história que serve como ponto de partida, mas ainda assim, mantendo aquilo que os acadêmicos abominam, no entanto, costumo chamar de “essência”: o romance de Stoker, traduzido, ainda está lá em sua base, eficientemente adaptado pela proposta do diretor que mescla bem terror e romance.
Tal como Stoker fez em sua jornada para composição do romance, Coppola mergulhou profundamente em pesquisas para realização do filme. Logo na abertura há um maravilhoso teatro de sombras, nos conduzindo para a pavimentação da jornada solitária de Drácula. Após batalhar por seu reino, ele descobre uma traição e a morte de sua esposa, negando a relação com a igreja e dedicando sua existência ao nefasto. Elisabetha (Winona Ryder), após 400 anos, é reencarnada em Mina, interpretada pela mesma atriz. Agora, tendo em vista estabelecer seu império, ele convida o agente imobiliário Jonathan Harker para a Transilvânia, enredando o personagem nos perigos de seu castelo, deixando-o por lá enquanto parte para Londres em busca de uma nova concepção para a sua trajetória solitária. Perseguido por Van Helsing, o vampiro estabelece um clima lúgubre e aterrorizante por onde passa, mas ainda assim, não deixa o lado romântico de lado, a todo custo exaltado diante da presença de Mina. Com um manancial denso de referências e estilo que mescla bastante cinema com pintura, Drácula de Bram Stoker é um filme ousado, sensual, dinâmico e muito atrativo. É a minha adaptação predileta, talvez pelo viés didático e possibilidade de associação num tom educacional, afinal, quem vos fala também é professor e trabalha constantemente com cinema em suas metodologias de ensino.
Há muitos méritos nesta tradução do romance de Bram Stoker para o cinema. A trilha sonora, dentre todos, é um dos elementos mais sensacionais da trama. Composta pelo polonês Wojciech Kilar, a textura percussiva da narrativa é um trabalho excepcional no âmbito da música. Funciona muito bem dentro do filme, mas é uma experiência de audição perfeitamente cabível para momentos diletantes de quem admira e acompanha produções instrumentais. Ademais, em seus 128 minutos, Drácula de Bram Stoker nos apresenta um espetáculo visual deslumbrante, estabelecido pela excelente direção de fotografia de Michael Balhaus, precisa e eficiente nos enquadramentos concebidos para a inserção dos efeitos visuais supervisionados pela equipe de Leslie Huntley, como já mencionado, evocativo dos primórdios do cinema, algo que deixa o filme com um aspecto artesanal. Greg Cannom também promove um verdadeiro espetáculo no quesito maquiagem, um dos pontos altos da tradução. Os figurinos de Eiko Ishioka demonstram o quão cuidadosa foi a jornada de pesquisa e testagem da concepção visual do filme, produção que também goza dos privilégios de ter um ótimo design de produção, assinado por Thomas E. Sanders, responsável por conduzir a direção de arte e a cenografia pela perspectiva gótica que domina o universo de Drácula, personagem definidor da mitologia vampírica.
Drácula em Perspectiva: Outras Versões do Icônico Monstro
Antes de ser um herói espartano, Gerard Butler já tinha desempenhado o papel do vampiro no cinema. Em Drácula 2000, de Patrick Lussier. Depois que um grupo de ladrões rouba a caixa onde Abraham Van Helsing enclausurou o vampiro no passado, reviravoltas fazem o monstro retornar para saciar a sua sede de sangue em plena cidade grande. Com estranhamento, o conde precisa lidar com as mudanças sociais, o ritmo frenético das noites, não mais góticas como o século XIX, mas efervescentes no quesito sexo e drogas, num filme que faz uma tentativa de atualizar o mito para a virada do milênio. O resultado não é dos piores, mas o amontoado de subtramas e o desenvolvimento agitado demais ocupam espaços que poderiam ser de mais delineamento dos personagens diante da proposta ousada. Por falar em irreverência, em 2020, o serviço de streaming Netflix lançou uma minissérie em três episódios, trazendo o vampiro para mais uma releitura, desta vez, na interpretação eficiente de Claes Bang. Envolvente, a produção traz o icônico personagem literário para uma jornada de sangue e horror, mas também com desdobramentos irônicos que transformam a narrativa numa divertida e, eficiente, renovação de Drácula para a contemporaneidade.
Alguns anos antes, o bonitão Jonathan Rhys Meyers também foi o Conde Drácula numa atmosférica série de 13 episódios que trouxe um olhar interessante sobre o contexto de publicação do livro, sem deixar, por sua vez, de investir na atmosfera gótica associada com a sensualidade de suas figuras ficcionais. No irregular Drácula: A Última Viagem do Deméter, de André Øvredal, o filme traz como abordagem apenas o capítulo da travessia do vampiro para Londres, sendo o personagem pouco expressivo no quesito desempenho dramático, haja vista o excesso de efeitos visuais. Quem o interpreta é Javier Botet, um ator que não teve oportunidade de se entregar mais ao personagem. Ademais, tais ilustrações, caro leitor, são apenas parte de um panorama não totalizador. Há muitas versões do Conde Drácula no cinema, na televisão, bem como em outros suportes narrativos. A ideia aqui não é esgotar, até porque seria uma missão impossível. Trouxe, para você, o meu repertório.
Mas, agora, deixo um questionamento: qual o melhor Drácula do cinema em sua opinião?