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Entenda Melhor | Metacrítica: Interpretações de Frankenstein

Uma análise do percurso interpretativo sobre um dos monstros góticos mais icônicos da literatura e da cultura.

por Leonardo Campos
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Como realizado na edição passada do Outubro do Terror, focado em Drácula, dessa vez, teremos mais um panorama metacrítico. Agora, embarcaremos numa panorâmica análise de alguns estudos em torno de Frankenstein, de Mary Shelley, e seus desdobramentos na literatura e na cultura. Vamos nessa?

O primeiro artigo da nossa jornada é Imaginário, Horror e Monstruosidade: O Caso Frankenstein, dos pesquisadores Gustavo de Castro e Verônica Guimarães Brandão. As palavras-chave norteadoras do texto interessante, mas ligeiramente desorganizado das ideias são imaginário, imaginação e, claro, Mary Shelley, a autora da narrativa literária analisada. No artigo, somos apresentados aos conceitos de imaginário, isto é, algo comparado ao fantástico, ao irreal e aquilo que não é prático. Numa sociedade que valoriza o utilitário e o real, o termo acaba causando muitas reflexões, pois pode ser tudo aquilo que não existe, um mundo oposto à realidade dura e concreta. Logo na abertura, a dupla de autores descreve que imaginação é a linha que nós utilizamos para tecer conhecimento. E, por meio da imaginação, adentramos no terreno das representações. Ao trazer filósofos iluministas e um manancial de referências de autores consagrados no mundo acadêmico, tais como Edgar Morin, Noel Carroll, Gilles Deleuze, dentre outros, eles trafegam pela biografia da escritora, pelo contexto histórico da tessitura e recepção do romance clássico, destacando os elementos góticos que aparecem na obra, agora distantes dos fantasmas sobrenaturais, mas sim, voltados para a relação de assombro e fascinação da humanidade diante dos avanços tecnológicos, neste caso, as descobertas diante da eletricidade e suas aplicações no cotidiano. Versam sobre criador (Victor Frankenstein) e sua criatura, numa escrita repleta de pontos reflexivos interessantes, mas que carecem de uma fluência melhor na disposição das ideias e na costura das referências, se tornando um artigo mais receptivo para aqueles que já estão acostumados diante da leitura de artigos científicos.

O segundo texto da nossa jornada investigativa é O Monstro e a Ciência: O Horror da Transgressão e da Alteridade em Frankenstein, de Mary Shelley, artigo publicado por Thiago Leonello Andreuzzi, orientado por Mario Luiz Frungillo. O texto traz em seu resumo uma explicação sobre o interesse dos pesquisadores em analisar a trajetória do fantástico na estrutura gótica de Frankenstein, um romance escrito em um contexto de revoluções sociais e industriais que mudaram cenários e instalaram muitas incertezas. No desenvolvimento inicial, a dupla explica a estrutura do livro, delineando como os personagens são apresentados e como Victor Frankenstein se porta em sociedade, numa busca incessante por se manter como membro firme da elite intelectual. O interessante é que a análise faz uma travessia panorâmica e bem mais didática que o texto anteriormente ressaltado por aqui, resumindo peculiaridades do gótico literário e demonstrando que diferente das assombrações fantasmagóricas comuns ao segmento, com o romance em questão nós leitores lidamos com uma criatura que é a bricolagem de corpos, afronta, ameaça aos padrões do que é socialmente aceitável. Ao longo das notas de rodapé, os autores preenchem lacunas históricas contextuais, algo que deixa o artigo mais completo, proposta que tem em suas reflexões, associações com o Mito de Prometeu, comparações com o maligno da poesia de John Milton, além de um arcabouço teórico que traz considerações de Michael Foucault sobre o biopoder, isto é, ao ter seu corpo semi-humano ganhando forma, a criatura adentra pelas instâncias da ciência reguladora dos corpos individuais e sociais. E, ainda sobre o filósofo, traz considerações sobre corpos e aparências utilizando Microfísica do Poder, tendo em vista versar sobre os choques entre ciência, sociedade e corpos transgressores.

A terceira reflexão desta empreitada metacrítica é o artigo Frankenstein: A Narrativa de Mary Shelley no Cinema, de Francisco Romário Nunes e Francisco Carlos Carvalho da Silva. Publicado pela primeira vez em 1818, o romance da escritora em questão ganhou diversas adaptações para o suporte cinematográfico, alcançando um número de traduções menos expressivo que Drácula, de Bram Stoker, mas ainda assim muito proeminente em suas versões para a cultura de massa. Apesar de fazer um breve panorama sobre as representações cinematográficas destes icônicos personagens, juntamente com um embasamento teórico sobre linguagem e estética do cinema, o texto se finca em duas traduções do romance: Frankenstein (1931), de James Whale, e Frankenstein de Mary Shelley, de Kenneth Branagh, de 1994, narrativas que emulam o conteúdo literário por meio de perspectivas distintas, em especial, por causa de seus contextos históricos repletos de especificidades. É interessante o jogo comparativo dos autores, ao analisar os filmes que se diferenciam na estética e na abordagem da história, em diálogo com suas respectivas épocas. Enquanto a narrativa de 1931 é mais breve e expõe os primeiros passos da Universal Pictures no bojo dos filmes de terror, com traços do Expressionismo Alemão e do Filme Noir, a produção dos anos 1990 é carregada de um tom mais violento e de mais dramaticidade no desenvolvimento do roteiro. É um artigo satisfatório, que mapeia a presença de Frankenstein no itinerário da cultura em eras distintas, entregando ao leitor também um breve passeio pelos caminhos pavimentados pelo romance em seu contexto de lançamento, uma época conhecida pela insistência do movimento gótico em ir de encontro ao discurso racionalista estabelecido pelos filósofos na fase de exercício intelectual da escritora Mary Shelley.

Em O Mito de Frankenstein: O Amor Negado e Denegado, de Roberto Ramos, nós leitores atravessamos uma escrita ensaística de um autor que demonstra maturidade nas reflexões, ao trazer o romance de Mary Shelley para uma perspectiva psicanalítica. Ele explica que a paisagem humana tem se transformado constantemente nos mais diferentes cenários históricos, mas diante destas mudanças, uma coisa sempre se mantém como palco para os acontecimentos cotidianos: a família. Ao versar sobre o humano ser, por excelência, subjetivo e voltado para a sociabilidade, o ensaio analisa os impactos dos paradigmas entre as interações do individual com o coletivo, demarcando como a construção da subjetividade é um processo e, por ser um esquema processual, é repleta de conflitos, nas palavras do autor, “uma espécie de maratona de uma dinâmica de ganha e perde incessante”. Ao trilhar os caminhos pela busca de um crachá de sujeito, altos preços são pagos, com desejos constantemente sepultados, numa rotina que não abre o devido espaço para a solenidade das lágrimas. Para analisar o Mito de Frankenstein, o artigo primeiro reflete brevemente sobre o contexto de publicação do romance, depois passeia, também panoramicamente, pelas diversas traduções cinematográficas ao longo do século XX, para nos permitir melhor entendimento sobre a presença do clássico em nossa cultura. Em linhas gerais, o texto traz como questionamento as próprias indagações do cientista que, no livro, alcança o status de “Deus”. Mas, afinal, “quem sou eu?”, questiona-se o monstro, criado por um homem que não ocupa o seu lugar de pai. A sua alma é uma incógnita, pois criado por meio de retalhos alheios, a criatura é precária de dados, de um nascimento tradicional, em suma, uma massa de subjetividades. E, por causa desta gênese confusa, desenvolve um painel de situações trágicas que culminam em um desfecho catártico para todos os envolvidos na sombria história.

A quinta reflexão desta empreitada metacrítica é o artigo O Prometeu Moderno: A Revolução Técnico-Científica em Frankenstein, de Mary Shelley, pesquisa desenvolvida por Raphael Matheus de Morais Ribeiro, transformada em dissertação para o Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2022. O texto versa sobre o advento da modernidade, junto aos impactos sociais da Revolução Industrial, dando enfoque para as obsessões em torno do progresso científico, representada em especial pela figura de Victor Frankenstein, o catalisador da tragédia ao longo do romance. Sem a devida revisão para publicação, com marcas da análise da orientadora do projeto, o texto tem um direcionamento interessante, ao tratar dos desdobramentos políticos da época no desenvolvimento da obra, recheado de notas de rodapé que pavimentam um excelente caminho de referências para consultarmos diante de um estudo sobre o clássico. Um dos pontos de maior destaque é a relação da história com o que o autor chama de terror corporal, uma abordagem que podemos encontrar mais atualmente em narrativas de David Cronenberg, por exemplo, algo contemplado no romance por meio da monstruosidade da criatura gerada pelo cientista, um ser cujo corpo é um apanhado de cadáveres, responsável por gerar muito horror e desconforto. A perspectiva gótica, geralmente trabalhada em torno de criptas antigas e locais abandonados para causar medo, em Frankenstein, tem como cenário o próprio corpo, com suas mutilações e deformações.

Equivocado em algumas partes, mas com dados interessantes para quem pesquisa sobre o romance em questão, o trabalho Frankenstein: O Precursor dos Mortos-Vivos na Literatura Fantástica, de Jéssica Paola Oliveira Silva é uma monografia apresentada ao curso de Letras, situado na Universidade de Santa Cruz do Sul, pesquisa defendida em 2015. Um grande problema dos trabalhos acadêmicos, nalgumas situações, é focar a análise em pontos que são grandiosas reflexões sobre o corpus, mas que não dialogam com a proposta do trabalho. Por qual motivo a autora precisou trafegar pelo Mito de Prometeu em suas páginas, transformado em tópico de destaque, se a sua abordagem é o subgênero “zumbis”, uma das partes integrantes do terror? Compõem a base estrutural do trabalho: literatura fantástica, subdivisões do gênero em fantasia, horror e ficção científica, além de uma panorâmica análise do romance, para subsidiar o capítulo final, focado nos mortos-vivos, bem como uma boa contextualização da época, com menções aos clássicos O Castelo de Otranto e O Médico e o Monstro, de Horace Walpole e Robert Louis Stevenson, histórias que saíram do século XIX e ganharam desdobramentos no cinema ao longo do século XX, tornando-se mais populares, tal como Frankenstein. Apesar de suas possíveis conexões, considero a associação do morto-vivo de Mary Shelley com os zumbis do cinema uma proposta que força demais para se tornar coesa. Há algumas semelhanças, mas a pesquisa não enfoca nisso, dando para a criatura monstruosa o status de precursor das estratégias narrativas das tramas com zumbis, uma reflexão que precisava de um texto mais amarrado, com coesão e coerência, para o estabelecimento de sua tese.

No artigo Frankenstein: A Trajetória Errante de Um Monstro Narrativo, os pesquisadores Ricardo Jorge de Lucena Lucas (Doutor em Jornalismo) e Felipe Lima Rodrigues (Mestre em Comunicação) desenvolvem uma assertiva reflexão sobre as múltiplas traduções do romance do século XIX, tendo como foco de análise a transtextualidade, abordagem estruturada em Palimpsestos, de Gerard Genette, além da teoria da tradução de Linda Hutcheon, presente em Uma Teoria da Adaptação. O artigo traz em seu preâmbulo um panorama do romance de Mary Shelley, trafegando pela sua relação com o mito de Prometeu, bem como um painel de seu contexto histórico. Rico em ilustrações, a publicação de 2017, veiculada na revista Passagens, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará, interliga observações do romance com traduções para outros suportes narrativos mais recentes, mesclando teorias que subsidiam um maior entendimento do leitor sobre o legado e o impacto cultural de Frankenstein. Há, em especial, um tom bastante didático na descrição transtextualidade proposta em cinco tópicos da teoria de Gerard Genette: intertextualidade, paratextualidade, metatextualidade, arquitextualidade e hipertextualidade. Dividido em três níveis, o romance traz em sua primeira linha as cartas de Walton para a sua irmã, em seu segundo nível, ao relato de Victor Frankenstein para o Capitão Walton, e, em sua terceira dimensão de nível, as cartas de Elizabeth para Victor Frankenstein, as Cartas de Alphon para seu filho Victor e os relatos do monstro para o seu criador. Da seleção metacrítica, este é um dos textos mais interessantes, com propostas coesas para reflexão sobre o clássico gótico da literatura ainda presente no contemporâneo, por meio de suas traduções em narrativas audiovisuais, etc.

Publicada em 2010, a dissertação de mestrado Frankenstein: Uma Releitura do Mito de Criação, de Alessandro Yuri Alegrette, chegou ao processo de seleção de textos de metacrítica do clássico literário em questão depois que percebi a sua presença, como referencial teórico, em outras reflexões reservadas para o projeto. Vários autores o mencionam, e com toda credibilidade, pois o pesquisador analisa os pormenores do romance de maneira lúcida, dialogando com as teorias sem transformar a sua reflexão numa alegoria ao monstro do livro, isto é, um amontoado de referências soltas, sem a devida conexão com a proposta de pesquisa. No primeiro capítulo, o trabalho pavimenta um caminho em torno do gótico na literatura, sem deixar de contextualizar o romance e tratar de aspectos do sublime e do grotesco, “essenciais” para compreensão da narrativa. Logo adiante, investiga as raízes míticas utilizadas por Mary Shelley, antecipação da excelente análise sobre a herança literária do livro, num texto que ilustra as suas relações com Paraíso Perdido, de Milton, o poema A Balada do Velho Marinheiro, de Samuel T. Coleridge, dentre outros. Há também uma perspectiva analítica de Frankenstein e sua experiência com a maternidade, as metáforas políticas presentes no enredo, a relação com o vanguarda romântica e as conexões com Blade Runner: O Caçador de Androides, de Ridley Scott. Em linhas gerais, uma pesquisa basilar para compreensão de Frankenstein e suas ressonâncias contemporâneas.

E, para encerrar a nossa jornada metacrítica, temos a dissertação A Medonha Imagem do Homem: Ciência e Monstruosidade em Frankenstein, defendida em 2016, pela pesquisadora Mayara Cristina Bignani Silva, na Universidade Federal de São Paulo, no Programa de Pós-Graduação em Letras, com ênfase em Estudos Literários. O texto traz o habitual panorama sobre o enredo do romance clássico e seus processos de composição, com uma apresentação da escritora Mary Shelley, para contextualizar a pesquisa. Logo mais, adensa pelas peculiaridades da literatura gótica, conhecida por expor personagens em conflitos diante de suas indagações internas. O foco da autora é delinear a monstruosidade e o duplo em Frankenstein. E, para isso, analisa as raízes míticas do romance, dando destaque para vertentes da literatura fantástica que permitem o estabelecimento do duplo no livro. Em linhas gerais, a duplicidade pode ser definida como uma temática antiga, mas com muita força nas publicações românticas do século XIX, uma terminologia que retrata algo que é originado por meio de um indivíduo, adquirindo projeção e posteriormente sobrevive ao lado do sujeito que fundamentou a sua gênese, tornando-se autônomo. Além de Frankenstein, podemos contemplar a sua presença em O Retrato de Dorian Gray e O Médico e o Monstro, de Oscar Wilde e Robert Louis Stevenson. Em narrativas mais contemporâneas do cinema, por exemplo, conhecidas por abordar antagonistas psicopatas, o duplo encontra forte terreno para se manifestar. E, no livro de Mary Shelley, mantém-se ao longo de suas assustadoras páginas, conhecidas por enfatizar a relação de estranheza entre nós, o mundo que nos cerca e o “monstro”, neste caso, a criatura grotesca gerada por Victor Frankenstein, um cientista que decide brincar de Deus e catalisa uma intensa tragédia não somente para si, mas para todos aqueles que gravitam em torno de sua existência.

E esse foi o nosso percurso. Conhece algum outro estudo para complementar? Deixe nos comentários, combinado?

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