Texto que se tornou embrionário na cultura ao flertar com os modelos estabelecidos anteriormente na literatura, no teatro e demais artes que antecederam o surgimento dos filmes, a crítica de cinema passou por um longo processo de transformação durante o profícuo século XX, era do estabelecimento da modernidade, acumulando uma jornada de momentos fortes e fracos que a tornaram um ponto de referência para a interpretação do que se produzia culturalmente, estruturando historicamente as narrativas cinematográficas e fornecendo dados para a compreensão estética e contextual destas produções. Não demorou, outro movimento importante se fez presente no campo da interpretação, a metacrítica, um exercício que, em linhas gerais, se refere ao processo de análise que se configura como a “crítica da crítica”. Assim, além dos filmes refletidos em textos veiculados no jornalismo cultural impresso, na internet e nas redes sociais e aplicativos, temos também a possibilidade de analisar os discursos sobre produtos culturais, além de melhor entender como determinadas narrativas ganham olhares distintos por parte de seus interpretadores, indivíduos que carregam em suas observações, posturas ideológicas, pessoais, afinal, como reforçou Oscar Wilde, toda crítica é uma biografia.
Para o exercício em questão, selecionei para os leitores uma amostragem de dez críticas de cinema do clássico slasher Halloween: A Noite do Terror, dirigido e escrito por John Carpenter, numa parceria com a roteirista e produtora Debra Hill. A produção, responsável por nos apresentar ao universo de Michael Myers, expandido em continuações, refilmagens, bem como documentários retrospectivos e filmes realizados por fãs, é considerada como um dos pontos de partida para a exaltação industrial do slasher na década seguinte ao seu lançamento, um fenômeno cultural complexo, cheio de peculiaridades e manancial para diversos caminhos de interpretação. Na trama, que de certa maneira dispensa apresentações, melhor detalhadas em suas críticas específicas por aqui, nos coloca diante dos horrores no subúrbio ameno de uma cidade pacata, lugar onde o medo e o assombro se estabelecem com a chegada de um psicopata mascarado que aniquila as suas vítimas na noite do Dia das Bruxas, o tradicional Halloween.
Todos os textos analisados, oriundos de críticas em língua portuguesa, publicadas no Brasil, são integrados ao profícuo espaço da esfera virtual, produzidos recentemente, em exercícios diacrônicos que refletem sobre o filme muitos anos após a sua estreia, tendo assim, um extenso caminho pavimentado por outras interpretações, realizadas desde 1978, por críticos de diversos veículos de comunicação. Em sua maioria, as críticas se dedicam ao aspecto conteudista, dando ênfase ao que acontece na história, destacando o seu potencial estético e dramático, num processo que delineia os pontos fortes e fracos da trama concebida pela direção firme de John Carpenter. Há consideráveis altos e baixos entre as reflexões selecionadas para amostragem, pois como as abordagens analíticas de alguns textos se dispersam em curiosidades e informações de bastidores, pecando por deixar de lado uma compreensão mais detida do filme em si, tendo em vista atender aos anseios daqueles que buscam o Making-of.
Com nota 04 numa escala máxima de 05, Halloween: A Noite do Terror ganha uma análise míope pelo crítico Karlos Eduardo da página CN42, um texto de boas intenções, mas que perde a chance de refletir o filme como fenômeno cultural e fica apenas na superfície interpretativa, num posicionamento que versa sobre o legado da franquia, apontando que este é o filme precursor do subgênero slasher, além de tecer alguns comentários sobre o orçamento mínimo diante da exorbitante bilheteria, a atuação de Jamie Lee Curtis e o minimalismo estético de John Carpenter em sua composição visual e sonora para a narrativa que, de acordo com seu ponto de vista, peca pelo roteiro com um grande abismo na importância de Dr. Loomis, interpretado por Donald Pleasence, uma opinião que ultrapassa alguns limites e deturpa, de certa maneira, o posicionamento do personagem na trama, expondo-se como uma crítica bastante impressionista, mas de pouquíssima densidade. Já Douglas Santos, do Fórum Nerd, entrega uma sinopse e uma expressiva linha fina antes de sua crítica, numa reflexão que parece um fluxo oral, como se o seu texto fosse uma transcrição de um podcast ou entrevista, frágil também enquanto crítica de cinema para aqueles que buscam textos mais embasados. Há contínuas repetições de vocábulos, com opiniões sobre as mortes bobas e o visual datado para o público contemporâneo, bem como um destaque para a produção como um marco no subgênero em questão. Sua nota: 8,5.
No site Leitura Fílmica, o crítico Eduardo Kaneco pontua Halloween: A Noite do Terror com 09 pontos de 10, alegando que ao revisitar o clássico slasher, teve uma sensação de frescor cinéfilo, numa análise que privilegia a composição visual de John Carpenter na abertura, dando também destaques para pontos elucidativos da trama. Em seu percurso, o texto traça a importância da máscara sem rosto de Michael Myers e versa sobre este recurso como um objeto máximo do subgênero slasher, algo que nós veríamos nas produções subsequentes. Por fim, classifica o filme como um fenômeno cultural obrigatório para qualquer interessado em slasher, numa reflexão que fica bastante acima da média, principalmente se comparada aos textos anteriores. Na crítica de Matheus Bonez, membro integrante da ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul), também jornalista especializado em Cinema Expandido pela PUCRS, temos um bom texto, prejudicado pelo excesso de links e quebras ao longo de sua leitura. Cada vez que o nome de um ator é mencionado, um extenso link chega para se tornar obstáculo para a fluência da leitura. Em sua análise, temos destaque para o impacto cultural de Michael Myers e o surgimento dos slashers posteriores, numa produção apontada como pecaminosa com seus excessivos furos de roteiro, mas também interessante por sua preocupação com a execução, não necessariamente com as mortes. Para o autor, que não pontua a crítica, John Carpenter aprendeu bastante com Hitchcock na dosagem e lapidação da violência.
Curiosamente, neste texto, a imagem que encabeça a crítica é proveniente de Halloween 5: A Vingança de Michael Myers. No famoso Cinema com Rapadura, o filme de 1978 ganhou nota máxima em sua avaliação, assinada por Robinson Samuel Alves, crítico que aponta a figura do assassino imbatível como parte integrante do nosso imaginário, delineando o legado e a gênese d antagonista, além da eficiência do cineasta na criação do medo no bojo da narrativa. Sua reflexão também destaca a tensão do tema principal da trilha, a observação da dinâmica entre presa e algoz, o clima de Tubarão que privilegia o foco na trama e não nos ataques, juntamente com as ressonâncias de O Massacre da Serra Elétrica e Noite do Terror, os filmes que fincaram as bases do slasher, aprimorado em sua temática com a sanha assassina de Michael Myers. Diferente do primeiro texto selecionado para este exercício de metacrítica, o autor fornece dados suficientes para compreendermos a função assertiva de Dr. Loomis para a dinâmica interna do filme. Em linhas gerais, é uma crítica com mais profundidade, tal como a análise do crítico e historiador Luiz Santiago, aqui no Plano Crítico, interpretação que fornece a nota 04 de 05, num breve panorama sobre o terreno dos filmes de terror, bem como a abordagem dos anos 1970 para o gênero e as peculiaridades de John Carpenter em sua abertura considerada primorosa. Considerado um ótimo filme, dentro de um potencial contexto, Halloween: A Noite do Terror é questionado sobre o seu status de obra-prima, sendo apontado apenas como muito bom, mas nada excepcional.
O crítico Neto Ribeiro, do site Sessão do Medo, também fornece a nota máxima ao filme, delineando as ressonâncias de Noite do Terror na trama, o orçamento baixo em comparação ao amplo sucesso nas bilheterias, o lado assustador de uma história que causou furor em sua época de lançamento, citando o lance da babá perseguida como herança de uma lenda urbana que circulava na época, também a respingar em Mensageiro da Morte, refilmado como Quando Um Estranho Chama. Sua descrição é conteudista, dando destaque também aos elementos que precisamos elencar para ter em mente o filme, isto é, a trama como um slasher não convencional, focado na atmosfera, com coordenação de um diretor que trabalha todos os aspectos estéticos possíveis, em prol do desenvolvimento narrativo, além da não especificidade de Michael Myers na busca por suas vítimas e a queda da mitologia do antagonista com o surgimento das sequências. Já no site Cine Medo, o filme analisado pelo crítico Guilherme Soares ganhou nota 8,6. Basicamente, seu texto reflete sobre a produção como estabelecedora do slasher tal como conhecemos atualmente, numa trama que aposta na sugestão para assustar o público. A matança, apenas para o final, surge como observação, juntamente com o desfecho de incertezas da trama, elogiada por sua direção de fotografia e trilha imersiva, posicionamento crítico que lembra Luiz Santiago no Plano Crítico, a classificar o filme como “muito bom”, mas não “perfeito”.
Ótimo crítico para abordagens ensaísticas, Gabriel Carvalho desenvolve uma análise que alerta os leitores para o manancial de spoilers e amplia o tom crítico para um texto bastante fluído, dando destaque para passagens pouco comentadas no campo das reflexões sobre Halloween: A Noite do Terror. Em suma, dos textos brasileiros selecionados aqui, é a linha mais fora da curva, pendente apenas de maior observação dos aspectos estéticos das passagens que analisa. Tal como o texto do Cinema com Rapadura, o autor destaca a importância de Dr. Loomis para a construção da trama, expõe a falta de direcionamento na obsessão de Michael Myers em seus assassinatos, analisa profundamente os personagens, compara com a retomada de 2018, resgata memórias cinéfilas e até mesmo contextualiza com os assassinos em série Ted Bundy e Gacy, dando um olhar sofisticado para a exposição da mitologia do antagonista mascarado. Para encerrarmos este percurso, temos a única análise assinada por uma mulher, Juvenatrix, do site Boca do Inferno, um respeitado portal brasileiro de catalogação de filmes de terror, importante enquanto espaço para registro cuidadoso de filmes, inclusive os desconhecidos.
O problema, no entanto, se estabelece quando mais da metade da crítica se dedica a enumerar os demais filmes das biografias dos atores e elencar, maciçamente, as curiosidades, deixando de lado a análise em prol da cultura do fã e suas inserções pelo Making-of, algo que prejudica o texto em sua qualidade crítica. A autora fornece informações sobre detalhes sobre o andamento da trama, denomina Halloween: A Noite do Terror como um clássico do terror, destaca seus numerosos furos de roteiro, em especial, o fato de Michael Myers saber dirigir, evocando ainda Norman Bates e algumas associações do filme de John Carpenter com outros slashers. Ademais, ela também traz as referências constantes do cineasta aos seus clássicos do cinema, num texto que poderia investir mais na reflexão diacrônica de um filme largamente analisado ao longo de sua história na cultura cinematográfica. Em linhas gerais, podemos observar que todos os textos críticos selecionados investem numa exposição da trama, dos seus pontos positivos e negativos, tendo como foco principal, em sua totalidade, o reforço do legado e do impacto cultural da produção em seus 40 anos de existência. A metacrítica, então, funcionou aqui para nos permitir compreender melhor a vivacidade deste slasher que ressoa até a contemporaneidade, haja vista o recente desfecho da nova trilogia iniciada em Halloween (2018), continuada em Halloween Kills: O Terror Continua e encerrada em Halloween Ends, em 2022.